‘Ainda estou aqui’: quão cruel pode ser a falta de respostas?

Acabei de sair do cinema, após assistir “Ainda estou aqui”, filme baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva.

E ao contrário da personagem Eunice, interpretada por Fernanda Torres, que precisa conter o choro diante do absurdo da perda sem notícia, corpo ou resposta, tanto o livro quanto o filme conseguiram me inundar.

Li “Ainda estou aqui” em meados de 2017 e ainda me lembro dessa sensação de angústia e choro contido em cada página, que só foi extravasado ao final do livro.

A angústia permaneceu ao ver o filme, mas o choro não foi mais contido, foi extravasado ao longo da trama, quando, infelizmente, já sabemos do fim trágico, doloroso e cruel.

Quando, em junho de 2022, peguei o livro “K.” para ler, não tinha a menor ideia do que se tratava, coisa rara, pois sempre fico curiosa e dou uma folheada ou pesquisada ao ter o livro em mãos.

Tal não foi minha surpresa quando vi as semelhanças entre as duas histórias. Ambas baseadas em casos reais, ambos buscando por respostas, por uma vida, por um corpo, por alguém que amavam.

Em “K.”, quem conta a história é Bernardo Kucinski, que narra a história de seu pai, procurando incansavelmente pela filha desaparecida durante a ditadura militar brasileira. Professora da USP, Ana Rosa Kucinski, a irmã de Bernardo, foi sequestrada e assassinada pelo regime, em 1974.

O livro foi escrito sobre forma de autoficção, e temos a perspectiva do pai do autor.

Como disse, mesmo sabendo o desfecho dessa triste história, a leitura segue com choro e respiração suspensos, pois mesmo sabendo o final arrasador, assim como o pai, alimentamos nossa esperança a cada pista falsa, a cada telefonema e busca infrutífera.

Em “K.”, foi muito doloroso ver o quanto os familiares de Ana Rosa, além de sofrer com o desaparecimento dela pelo estado, ainda sofriam as tentativas de extorsão por agentes do DOI-CODI. A tortura psicológica as quais também eram submetidos os familiares das vítimas, dos desaparecidos.

O livro vai revelando as diversas camadas cruéis de um desaparecimento.

O autor, assim como Marcelo Rubens Paiva em “Ainda estou aqui”, nos faz pensar sobre memória coletiva, questões políticas e a ferida aberta que ainda é a ditadura militar brasileira.

Viver o luto, sentir a dor, foram sentimentos procurados e compartilhados entre o pai do narrador e Eunice Rubens Paiva, sentimentos que eles e muitos outros não tiveram pelo desaparecimento de pessoas e a falta de um corpo para se despedir.

É emocionante e triste demais, saber que a ditadura brasileira foi uma das mais cruéis, ao “sumir” com corpos de forma tão absurda.

Somos um país incapaz de lembrar (talvez por ser conveniente? não sei!), então termos essas histórias, espalharmos elas por aí, é uma forma de não as repetir.

Diante desse silenciamento e a falta de punição de quem desapareceu e assassinou violentamente pessoas, um silêncio que assombra o Brasil, vimos as consequências nas eleições de 2018.

As histórias da ditadura durante muito tempo ficaram no campo do imaginado, do que será que aconteceu, e assim como a família de Rubens Paiva, a família Kucinski só veio a saber a verdade, poder encarar o que de fato aconteceu, graças a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014.

Graças ao esforço de Dilma Rousseff de criar a Comissão Nacional da Verdade para esclarecer, o que de fato, houve.

O quanto de crueldade pode conter em não ter respostas? Em não saber o que de fato aconteceu aquela pessoa? Em não ter um corpo para enterrar?

As comparações que Bernardo faz no livro, da ditadura brasileira com o nazismo, que os militares brasileiros simplesmente sumiam com todo e qualquer vestígio daquelas pessoas, fazendo um total apagamento e silenciamento, enquanto os nazistas, mesmo com toda sua crueldade, ainda assim mantinham registros dos seus mortos, dando a cada familiar ao menos o direito de saber onde estavam.

Outra questão que permanece comigo, ao ler relatos sobre a ditadura brasileira e que acho especialmente difícil, é ver como algumas instituições foram coniventes com a ditadura, e até mesmo se beneficiando dela.

O que acontece com o Brasil, de ainda termos essa ferida aberta, a negação de muitas pessoas sobre o quão cruel essa ditadura militar foi, é o fato de que não houve, de fato, uma punição efetiva, institucionalizada simbolicamente, erguidos murais, paredes e dito em alto e bom som o absurdo do Estado sumir com pessoas. O reconhecimento público, privado, do quão barbárie foi essa mancha na história nacional.

 O fato de ainda ter quem não foi punido, dados e pessoas ainda desaparecidos e ocultados, ajuda na manutenção dessa ideia errônea e absurda de que só eram presos “bandidos” e a falsa ideia do crescimento econômico do país.

Esse desmemoriamento coletivo, seletivo e conivente, é isolado pelo fato de que o grosso da sociedade brasileira vivia, nos anos de chumbo, o oposto do terror, a falsa euforia do milagre econômico. Isso explica a indiferença ainda hoje em relação a esses desaparecidos e assassinados.

Acredito que ninguém escapa ileso dessas duas histórias: “Ainda estou aqui” e “K.” Então se você gostou do filme e/ou livro de Marcelo Rubens Paiva, vale a pena dar uma olhada em uma história parecida, mas de uma outra perspectiva, tão triste e desoladora quanto.

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