Como Jales Mendonça assumiu o IHGG ‘fechado’ e o transformou em uma das maiores instituições culturais de Goiás

Em 1838, o Brasil recém-emancipado de Portugal trabalhava na consolidação de uma identidade nacional. Para a tarefa, três instituições foram criadas no intervalo de um ano — o Colégio Pedro II, o Arquivo Imperial (hoje Arquivo Nacional) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O Colégio Pedro II padronizou o ensino secundarista, ensinando a versão oficial da história do país; o Arquivo teve a função de preservar a história nos documentos públicos; o IHGB foi encarregado de escrever a nova história nacional. 

Um exemplo de como o IHGB definiu a forma como o Brasil pensa sobre si próprio é o modelo das três raças. Em 1846, o Instituto abriu um concurso a intelectuais que se dispusessem a elaborar um manual sobre como escrever a história do Brasil. O vencedor foi o pesquisador e viajante alemão Carl Von Martius, que propôs a ideia de que índios nativos, brancos europeus e negros africanos cooperaram harmonicamente na construção da nação. O monumento das Três Raças celebra essa ideia no marco zero de Goiânia, a Praça Cívica.

O IHGB, naturalmente, privilegiava a história das províncias centrais — Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Para suprir a demanda pela historiografia regional, institutos estaduais surgiram nos anos seguintes. Goiás foi um dos últimos estados a criar seu próprio Instituto Histórico e Geográfico, em 1932. Em 1938, o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG) deixou a cidade de Goiás pela nova capital. Em 1939, foi construída a Casa Rosada, sede do Instituto, na Praça Cívica, sendo a primeira construção do Setor Sul.

Com uma função oficial, é natural que o Instituto tenha surgido com natureza pública. Em Goiás, a Casa Rosada e a nova sede, de 1999, foram construídas pelo Estado. Porém, em algum momento, o modelo administrativo do financiamento estatal falhou.  “O prédio estava caindo”, conta Jales Guedes Coelho Mendonça sobre a situação da Casa Rosada em 2021, quando tomou posse como presidente do IHGG.

Jales Mendonça e Nilson Jaime diante da fachada do IHGG | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

“Eu fiquei apavorado; pensei: ‘se o prédio cair, vou ter que responder’”, afirmou Jales Mendonça, em entrevista ao Jornal Opção concedida na sede do Instituto. “Eu não havia deixado as coisas como estavam, não era e não sou remunerado por presidir o IHGG, mas a responsabilidade era minha.” 

A decisão de mudar o modelo de financiamento do Instituto partiu da constatação de que o modelo “pires na mão para o Estado” tinha levado o IHGG à situação em que se encontrava: fechado para a sociedade, dilapidado e inativo. Em 2021, nem mesmo a biblioteca funcionava porque, embora os livros estivessem presentes, o computador com a base de dados do acervo havia sido roubado. 

“No começo, pensei em fazer o que outros presidentes fizeram: lutar por verbas do governo e emendas parlamentares”, disse Jales Mendonça. “Mas como prestaria contas, sem estrutura, contador ou advogado? Se faltasse um parafuso, eu seria apontado como corrupto. Sou promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás  (MPGO), sei como o MP é rígido.” 

Jales Mendonça ganha a vida como promotor de justiça, mas se preparou para ocupar a presidência do IHGG: é mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (sua dissertação foi sobre a Assembléia Constituinte Goiana de 1935) e doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás (a tese tem como tema a mudança da capital para Goiânia). O historiador tinha uma visão para o Instituto. 

Jales Mendonça usou seus contatos e habilidade política. O primeiro investidor foi José Carlos Garrote de Souza, fundador da São Salvador Alimentos, que detém a marca Super Frango e custeou as despesas do Instituto em 2021. A parceria não existe mais, mas foi produtiva, segundo Jales Mendonça: “Quando viram que a Super Frango apoiava, outros empresários perceberam que devia valer a pena apoiar a cultura.” 

O segundo apoiador foi a cooperativa de crédito Sicoob UniCentro Br. O vice-presidente do IHGG é o médico Hélio Moreira, que apresentou o Instituto a seus colegas (o Sicoob hoje é aberto a toda sociedade, mas nasceu voltado ao setor médico). A cooperativa se ofereceu para restaurar completamente o edifício do IHGG, com a contrapartida de que a Casa Rosada abrigasse uma sede do Sicoob.

Mesmo após a restauração da sede, o modelo de parceria com o segmento privado ampliou, passando a compor as mostras do Instituto. Um dos espaços do IHGG é voltado para exposições de grandes personalidades goianas; em 2024, foram três: dom Tomás Balduíno, Jalles Machado de Siqueira e Otávio Lage — todas produzidas pelo Instituto com financiamento privado. 

As grandes exposições começaram por dom Tomás Balduíno. O sobrinho do religioso é o empresário João Carlos Balduino Ala, sócio (ao lado de Gusttavo Lima) da empresa BaladApp, que contribuiu com a mostra do bispo e com instalação de um elevador para acessibilidade no prédio. A segunda foi a de Jalles Machado de Siqueira, pioneiro na construção de usinas hidrelétricas e deputado federal por quatro mandatos, que lutou pela transferência da capital nacional para Brasília.  A mostra foi financiada pela empresa agrícola Jalles. A terceira, que ainda está em curso, homenagea o centenário do engenheiro e ex-governador Otávio Lage de Siqueira, com colaboração do Grupo Otávio Lage.

Biblioteca Irmãos Oriente conta com 16 mil volumes. Estantes foram cedidas pelo TJGO | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

“A gente fez uma transição”, disse Jales Mendonça. “Nos tornamos uma instituição independente. Isso você credibiliza a entidade. A ideia é fazer uma gestão diferente, gerar um modelo para os outros institutos estaduais. O poder público não pode mesmo ficar sustentando a mesma entidade como a nossa. Essa dependência é muito ruim para todo mundo”. Hoje, o IHGG é mantido 100% com recursos privados — desde o financiamento das publicações à manutenção da biblioteca e hemeroteca; mesmo os servidores deixaram de ser cedidos pelo Estado. 

O diretor falou com animação sobre os próximos passos do instituto: “O Sesc comprou o prédio vizinho ao IHGG; queremos torná-lo um espaço Sesc Cultural. Agora, estou tentando convencer nossa parceira Unimed a comprar a casa de Bariani Ortêncio (a casa também é vizinha ao instituto). Tenho medo de que ela seja comprada por um empreendedor que não reconheça o valor de um dos maiores escritores goianos e resolva demoli-la. Além de ser um museu, é um projeto do arquiteto goiano Eurico Godói.”

Os diretores do IHGG ocupam o cargo por quatro anos, e podem ser reeleitos. Questionado se acredita que o novo modelo será mantido por seus sucessores, Jales Mendonça afirmou: “Nosso maior objetivo hoje é fazer com que os empresários entendam a importância de preservação da história de Goiás e o valor da doação de acervos. Se cumprirmos isso, acredito que o modelo vai se manter.”

Jales Mendonça enumerou algumas razões pelas quais empresas e fundações escolheram apoiar o IHGG. “Estamos digitalizando todo o acervo de Otávio Lage, doado pela família. Resgatamos e registramos personagens históricos como Jalles Machado de Siqueira, figura importantíssima, mas em esquecimento. Mantemos disponível para consulta on-line três jornais que doaram seus arquivos (5 de Maio, Folha de Goiás e Diário da Manhã), além de estarmos no processo de higienizar e digitalizar 160 mil fotografias históricas doadas pelo Diário da Manhã. Tudo isso enquanto nos aproximamos da sociedade.”

O que o IHGG faz hoje

Na entrada da Casa Rosada, um café realiza exposições quinzenais com obras de artistas da Associação Goiana de Artes Visuais (Agav). A Biblioteca Irmãos Oriente conta com 16 mil volumes e mais de 40 mil documentos (já catalogados novamente após o roubo da base de dados do acervo). Além do espaço para a Exposição Personalidades, o IHGG realiza exposições bimestrais sobre a vida e obra de escritores goianos — 14 já foram retratados. Há as exposições permanentes, na sala Jarbas Jayme, e murais de Patrícia Lobo e Henrique Manuel. Mais de 2.500 estudantes visitaram o Instituto em 2024. 

Entretanto, dois projetos do IHGG merecem menção especial. A Hemeroteca Digital disponibiliza gratuitamente os acervos de 108 jornais e periódicos de 31 cidades. Há documentos valiosos para a pesquisa documental em História — das cartas entre a Princesa Isabel e Dom Pedro II de fevereiro de 1868 aos exemplares da Matutina Maiapontense, o primeiro jornal de Goiás, de 1830. 

Também merece destaque o projeto editorial Goiás +300. O projeto prevê a publicação de 18 livros sobre diversos aspectos da memória, geografia, ciência, artes e cultura goiana. O esforço de coordenar 90 autores é de Nilson Jaime, que atua também como editor-geral. Nilson Jaime destaca que a ideia das publicações é usar o tricentenário da entrada das bandeiras em Goiás para refletir sobre os 13 mil anos de ocupação humana do território — desde os primeiros povos indígenas até os dias de hoje. 

Nilson Jaime e Jales Mendonça exibem box do Goiás + 300 | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Nilson Jaime usou o caso de São Paulo para falar sobre a importância do papel do IHGG: escrever a história e refletir sobre a própria historiografia. “Em 1951, os 400 anos de São Paulo foram ocasião da fundação da Comissão Quarto Centenário, que criou por exemplo a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Em Goiás, sinto que a data foi perdida. Goiás poderia ter refletido melhor sobre si mesmo, determinando novos rumos para onde quer ir. Nesse sentido, o projeto Goiás +300 tem a função de registrar para as gerações futuras a forma como os goianos de hoje entendem o mundo.”

‘Goiás quer representação’

Jales Mendonça: “Goiás sempre foi subrepresentado em todos os órgãos e estruturas privadas ou públicas de poder” | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

Nilson Jaime toma posse no dia 14 de janeiro como sócio do Colégio Brasileiro de Genealogia (CGB) e Jales Mendonça toma posse no dia 15 como sócio do IHGB. Para ambos, o ganho de representantes goianos nas instituições nacionais tem uma importância especial, que ultrapassa suas carreiras. 

“Goiás sempre foi subrepresentado em todos os órgãos e estruturas privadas ou públicas de poder”, lembrou Jales Mendonça. “Nunca tivemos presidente da república; o Mato Grosso já teve dois (Jânio Quadros e o Dutra). Goiás não teve nem vice. Nunca tivemos presidente da Câmara e nem do Senado. Tivemos apenas um ministro no Supremo Tribunal Federal (Guimarães Natal) e só um membro da Academia Brasileira de Letras (Bernardo Elis)”.

Apenas três goianos fizeram parte do IHGB — o último foi Manoel Telles, na década de 1970. No CGB, o último goiano deixou a cadeira em 1968. Por isso, ambos mobilizam nomes de peso para comparecerem a posse, em um recado de que Goiás quer ter voz nas esferas nacionais. Olavo Noleto (secretário de Relações Institucionais do governo federal), João Caetano (cantor e compositor), Tarcísio Bonfim (presidente da Conamp), Ronaldo Caiado (governador de Goiás) foram alguns dos que publicaram vídeos afirmando que estarão presentes na posse de Jales Mendonça. 

“Estou ligando para as pessoas e articulando, para gente ver se mostra essa vontade que Goiás tem de aumentar sua participação”, afirmou Jales Mendonça. “Quero mostrar que eu não cheguei lá sozinho. Estou chegando com dez entidades culturais, com a Universidade Federal de Goiás, a Universidade Estadual de Goiás, a Pontifícia Universidade Católica. Acredito que, se assumirmos essa vontade e responsabilidade, vamos conquistar representação e reconhecimento.” 

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