Quase 328 mil pessoas vivem nas ruas no Brasil; Goiânia tem mais de 2,5 mil sem moradia

O número de pessoas vivendo nas ruas no Brasil aumentou quase 25% em 2024, passando de 261 mil em dezembro de 2023 para quase 328 mil no fim do ano passado. Os dados são de um levantamento divulgado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais.

De acordo com o levantamento, o número é 14 vezes maior que o registrado em 2013, quando 22.922 pessoas viviam nas ruas do país. A Região Sudeste é a mais afetada, com 204.714 pessoas vivendo em situação de rua.

Em Goiânia, são ao menos 2,5 mil pessoas em situação de rua, segundo estimativa feita Coordenação de Apoio Técnico Pericial do Ministério Público de Goiás (Catep), feita em maio de 2024. De acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (Sedhs), porém, não é possível precisar o número atual da população de rua em Goiânia. Isso se deve justamente pela falta de realização de um censo que, segundo a Secretaria, não foram realizados “por conta da Pandemia de Covid-19”.

Para o secretário executivo do Movimento Nacional de População de Rua do Rio de Janeiro e coordenador da pauta da população de rua no G20, Flávio Lino, a falta de políticas públicas é a principal causa do problema. “O número de pessoas em situação de rua tem crescido tanto por causa da falha de execução e elaboração de políticas públicas, que não vão de encontro com o que a população em situação de rua busca”, diz.

“Políticas públicas para reverter essa situação são políticas de habitação, seja ela social, com acompanhamento psicossocial, seja ela social, sem acompanhamento psicossocial, seja ela habitação imediata. Não se ressocializa nenhum ser humano na rua”.

O levantamento foi feito com base nos dados do CadÚnico, que reúne os beneficiários de políticas sociais, como o Bolsa Família e o BPC, e serve como indicativo das populações em vulnerabilidade para quantificar os repasses do governo federal aos municípios.

O estudo apontou, ainda, que sete em cada dez pessoas em situação de rua no país não terminaram o ensino fundamental, e 11% encontram-se em condição de analfabetismo, dificultando o acesso dessas pessoas às oportunidades de trabalho.

Falta de dados oficiais atrapalha trabalho de ONGS

A falta de um estudo que precise o número de pessoas nesta situação atrapalha, principalmente, instituições que ajudam essa população. De acordo com a assistente social Maylla Rigonato, uma das responsáveis pela Associação Tio Cleobaldo, que dá assistência à população de rua, a falta de um estudo atrapalha no planejamento e, consequentemente, no número de alimentos e cobertores que a associação pode oferecer à pessoas em situação de rua.

“O Censo é a nossa base, e tivemos o último dado oficial em 2019 e um que não é oficial em 2023. Mas esse número parece não refletir a realidade. Em nossas entregas [de alimentos], vemos filas cada vez maiores e a falta de dados atrapalha nossa preparação. Fazemos 30 mil marmitas por mês e não conseguimos atender a todos que precisam”.

Maylla afirma que a maioria das pessoas nesta situação estão lá por conta de ciclos familiares quebrados. “O maior motivo é a quebra desses vínculos familiares, falta de oportunidade de emprego, drogas e álcool, mas também existe uma minoria que gosta de morar na rua. Elas pedem dinheiro e acabam ganhando uma certa quantidade por dia. Então são dois lados da moeda”, afirma.

Hoje, a instituição sobrevive através de doações e de emendas parlamentares, o que muitas vezes depende da execução por parte da prefeitura de Goiânia. “Quando a Prefeitura faz mutirões, produzimos os alimentos, então temos essa parceria. Hoje fazemos encaminhamentos para CRAS e para o CRES. Fazemos o trabalho de três secretarias da Prefeitura. Mas ainda assim nosso orçamento vem de emendas de vereadores. Batemos na porta dos 35 até conseguir algum que possa nos ajudar”, completa.

Segundo a professora de psicologia da Universidade Federal de Goiás, Gardenia Lemos, uma intervenção é urgente. “É necessário lembrar e garantir que pessoas em situação de rua são sujeitos de direitos. É preciso construir autonomia, protagonismo e emancipação que podem levar a superação da situação de rua. Isso é feito por meio de serviços públicos de oferta continuada para que seja criada uma concepção de trabalho”, explicou.

Para a professora, as ações ofertadas devem estar em sintonia com a realidade específica das pessoas em situação de rua. “Se deve considerar o território, a dinâmica socioespacial e as relações das pessoas em situação de rua, as dificuldades, as potencialidades. Para isso, é necessário resgatar ou minimizar os danos de violências e abusos; garantir a preservação de sua identidade, integridade e história de vida; possibilitar acesso a benefícios e às demais políticas setoriais, como moradia, o que pode incidir na retomada de vínculos familiares”, diz.

Hoje, em Goiânia, a Praça Dr. Carlos de Freitas, no Centro da capital, é o local onde muitas dessas pessoas vivem. A praça fica em frente ao Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), que da alimentos e auxilia a população.

No local, encontramos Edivaldo da Silva, 26 anos, que mora nas ruas desde 2020. Maranhense, Edivaldo veio à Goiânia em 2019 para tentar uma vida nova mas, com a pandemia no ano seguinte, perdeu seu emprego e, consequentemente, foi despejado em casa.

“Eu não era viciado. Tive que vir para as ruas por não ter mais onde morar. Fui despejado bem no início da pandemia e ninguém fez nada. Consegui alguns outros lugares temporários mas no fim tive que vir para a rua”, relata.

Agora, o homem vive na praça por conta da proximidade com o local que presta apoio às pessoas nessa situação. “Eu fico aqui, me alimento. Depois ando pelas ruas em busca de um pouco de dinheiro para comprar uma coisinha ou outra. Algumas pessoas ajudam mas a maioria ignora”.

Em novembro do ano passado, o repórter Raphael Bezerra, do Jornal Opção, contou relatos de como algumas dessas pessoas perderam sua casa. A reportagem conta a história, inclusive, de Rebeca Teixeira, à época aos 30 anos. Rebeca veio de uma família evangélica. Casou-se aos 16 anos e abandonou os estudos. Da relação que durou por mais de 10 anos, ela teve uma filha, hoje com 13. Ela conta que passou a viver em situação de rua após iniciar um relacionamento com um morador e usuário. Ele, viciado em drogas e álcool, “ensinou” a mulher a ter apreço pela falta de um teto e de responsabilidades. “A rua vicia, tem a questão da dificuldade, tem. Mas você não tem o compromisso de todo mês pagar aluguel, água, energia, isso te deixa mais aliviada”, conta.

O ‘amor’ que a levou às ruas quase tirou sua vida em diversos momentos de surtos de ciúmes ou enlouquecido pelo abuso das drogas. Rebeca, cuja filha mora com o pai, revela que o relacionamento começou há cerca de dois anos e que nem viu quando estava morando na rua com o namorado.

Rebeca explica que apesar de ter abrigo, e de não ter se envolvido com drogas ou bebidas alcóolicas, não se arrepende de ter saído de casa.

O gênio forte, o convívio difícil com a madrasta e os três irmãos fazem com que ela não consiga “ficar dentro de casa”.

Nesses dois anos de vivência perambulando por ruas e praças da cidade, Rebeca viu e foi vítima de violência e abusos. Uma noite, enquanto dormia no Lago das Rosas, dois homens se aproximaram e forçaram sexo com ela. “Veio um noiado e como eu tava um dia sem dormir eu apaguei. Ele chegou com uma faca e falou que se eu não ficasse com ele, ele ia me matar. Ele fez sexo comigo sem eu querer duas vezes. Foi um trauma muito grande, eu peguei gonorreia e sífilis dele e fiz o tratamento depois com antibiótico”, conta.

As violências também são cometidas pelo homem com quem ainda se relaciona. Ela lembra que durante um dos muitos surtos do companheiro, ele a agrediu com um soco e seguiu com ameaças de morte. “Vou te matar, sua vagabunda”, lembra.

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