Patti Smith e Annie Ernaux — À celebração de universos particulares

Tenho pensado nesses pequenos (grandes?) momentos da vida, tão corriqueiros, comuns, mas que moldam e mudam totalmente nossa visão de mundo. Ou, ainda pior (ou melhor?), nosso próprio mundo.

E nesses momentos, me volto para duas escritoras fantásticas, que souberam se colocar nesse lugar de ver o mundo através da perspectiva individual, mas que pelas suas letras, se tornaram universais: Patti Smith e Annie Ernaux.

Duas autoras que associam imagens aos seus textos, abrindo espaço para exercitar a memória na busca por reflexões individuais e/ou coletivas, criação literária e principalmente viagens em torno de si mesmas, se colocando no centro das narrativas.

Em “Só garotos”, Patti Smith conta sobre a relação com o fotografo Robert Mapplethorpe. Um livro fruto da promessa de Patti para Robert, antes da morte dele por complicações do HIV, e conta a trajetória de duas pessoas tentando viver da e pela arte.

Aqui, Patti Smith nos deixa com vontade de conviver com ela e os múltiplos artistas aos quais topou ao longo da vida: Janis Joplin, Susan Sontag, a amizade com William Burroughs… e à medida que vamos lendo, acabamos por nos sentir íntimo dessa que é uma artista no sentido mais amplo da palavra.

Ter convivido com grandes nomes deve ter sido um privilégio. Aliás, ainda ter Patti circulando no mesmo mundo e mesmo tempo, é um privilégio.

Para mim, ler Patti Smith é lugar seguro: é ir em cafés, ter a companhia de um livro ou do velho caderno de escritos. É vontade de viajar, referências sutis de quem sabe ler e sentir o mundo.

Annie Ernaux foi uma das autoras responsáveis por uma vontade minha de olhar para si e se desnudar, escrever sobre aquilo que está ali, debaixo de camadas de “desobservações”, que só chegam a luz por mãos habilidosas de escrita e perspicácia de apreciação social.

Narrativa enxuta, direta, crua da Ernaux é de uma personalidade na escrita sem igual. Isso que ela tem, de transformar pequenos (?) fatos particulares em questões universais, é de uma beleza, que olha… não sei escrever aqui.

Sou encantada com Annie: sua linguagem sincera, direta, objetiva e livre de sentimentalismo nos premia com uma prosa cortante.

Gosto como ela consegue delimitar muito claramente os momentos de transição da sua vida. De quando esses momentos passam de fatos corriqueiros para uma situação que muda seu (nosso?) mundo.

Essa delimitação de ficção para autoficção, é a limitação da nossa própria memória: tanto Annie quanto Patti escrevem sobre si, sobre suas leituras de mundo. Porém, elas deixam muito claro que não se pode confiar em suas próprias memórias para nos contar os fatos e episódios.

A capacidade de narrar o cotidiano e nos apresentar outra forma de ver esse mesmo corriqueiro, é comum as duas.

Assim como Patti, Annie tem uma escrita precisa, direta, crua. Sua prosa é profundamente humana, e Ernaux não se exime de narrar nossas misérias e trazer à luz nossas culpas e vergonhas.

As duas tem livros sobre devaneios de escrita, processo criativo e impressões de leitura: “Devoção”, de Smith e “Escrita como faca”, da Ernaux. Gosto disso, de ver mentes criativas, pulsantes, pensando o ato de escrever, e como suas visões de mundo extrapolam o individual para alcançar o universal.

Ao ler seus livros, nos parece que temos nas mãos seus diários, e nos damos conta da paixão de ambas por nos narrar a vida, a arte, a visão de mundo aos quais elas foram moldadas e agora nos moldam também.

A celebração do pequeno, mas que colocam a lupa nesse detalhe que acaba por ampliar nossa visão de mundo, com reflexões nunca óbvias, mas sempre ao nosso alcance.

Tanto Annie quanto Patti escrevem para entender as dores, traumas e fatos que, de alguma maneira, as moldou. Escrevem como uma espécie de desabafo, desaguamento.

Annie deixa muito claro que o verdadeiro objetivo de sua vida é que tudo o que acontece na sua vida é para que ela conte sobre isso: que seus pensamentos, seu corpo e suas sensações se tornem escrita.

Patti também demonstra que sua vida é pela arte: poeta, cantora, fotografa, compositora e escritora, sua vida é dedicada a arte. Em transformar o mundo que observa em arte.

Patti e Annie possuem leituras fascinantes. E são daquelas autoras que eu gostaria de ler até a lista de compras.

Mas sugiro que você, leitor, comece Annie Ernaux por “O lugar”: para mim, sem dúvida, sua obra essencial. E Patti Smith por “Linha M”, que é um daqueles livros que saímos com vontade de sentar em um café com todos os títulos que ela nos sugere.

Ambos estão disponíveis na Livraria Palavrear, aliás, a dica do dia é: passe por lá, escolha uma delas – por quê não as duas? – peça um café, e passe a tarde devaneando sobre as duas.

Annie Ernaux, Nobel de literatura de 2022 | Foto: Reprodução

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