Entre a aldeia e a universidade: Eunice Pircodi Tapuia, primeira professora indígena da UFG, encontrou refúgio no estudo

Eunice Pircodi Tapuia nasceu em 1984 na aldeia Carretão, dos povos Tapuia, próximo de Nova América, a 280 km de Goiânia. Hoje, ela é mãe, liderança indígena, professora e pesquisadora. Eunice é docente da Universidade Federal de Goiás (UFG),  e é a primeira mulher de origem indígena a alcançar a posição. Ela, que diz ter encontrado um refúgio no estudo, compartilhou com o Jornal Opção a trajetória que a levou até a maior instituição de ensino superior do estado. 

“A minha infância foi muito dolorosa, porque eu fui uma criança bem doentinha. Eu nasci antes da hora, prematura”, afirmou. Devido à natureza frágil de seu corpo na infância, Eunice não era posta para trabalhar nos campos ou no rio. Após vencer uma pneumonia, sarampo e ter apresentado crises de epilepsia, ela ficou sob os cuidados dos avós. “Como eu tive essa convivência com os mais velhos e como eu não servia para estar trabalhando na roça, para fazer o serviço no rio, o que me sobrava era estudar”, explicou. Nesse ponto, vale destacar que o cotidiano com os anciãos da aldeia também a colocou em contato com uma forma mais preservada de sua cultura. 

Para além do cuidado com sua saúde, os estudos serviram como refúgio contra um casamento não desejado. A docente explica que, de acordo com a cultura dos Tapuia de sua juventude, as meninas deveriam se casar aos 13 ou 14 anos, entretanto, essa não era sua vontade e, com ajuda de sua mãe, usou os estudos para evitar o matrimônio ao máximo possível. “A minha mãe falava para o meu pai: ‘deixa ela, que ela está estudando’”, compartilhou.

A docente aprendeu a ler e a escrever dentro da própria aldeia, com funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A dedicação aos estudos rendeu frutos e Eunice logo se destacou por suas habilidades na leitura e escrita, o que a colocou próxima das lideranças da aldeia e em destaque na escola. “A comunidade elegeu alguns nomes, dentro dos formandos do Ensino Médio, para que fossem os professores da aldeia”, explicou o caminho tomado rumo à docência. “Eu não escolhi ser professora”, afirma ao dizer que o seu nome foi um dos selecionados. 

Apesar dos esforços, Eunice se casou aos 17 anos. “Eu não queria que minha mãe continuasse sofrendo o que ela sofria”, compartilhou parte da pressão. Teve início aí o malabarismo entre a carreira como professora, as responsabilidades para com seu povo e as demandas impostas pela condição de mulher. Desse casamento, nasceram os três filhos de Eunice, hoje com 14, 18 e 20 anos. Ela se divorciou do ex-marido em 2017. 

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Na UFG

O contato inicial com a UFG começou quando as lideranças Tapuia solicitaram à professora Maria do Socorro Pimentel da Silva um curso específico para aprimorar a formação dos professores atuantes na escola da aldeia. Eunice foi uma das selecionadas para compor a primeira turma do curso de licenciatura intercultural do Núcleo Takinahakỹ. Da criação que recebeu de seus avós, passando pelo papel de professora na aldeia, até chegar no presente como pesquisadora e docente universitária, sua atuação se explica: “lutar para que a nossa cultura se fortalecesse e que ela não acabasse”. 

Após sua graduação, em 2011, vieram cursos de especialização, mestrado e doutorado, além da aprovação no concurso para professora da UFG. Sua dedicação a coloca como pioneira. 

Quando iniciou sua formação em Goiânia, o malabarismo com as responsabilidades da aldeia se intensificou, o que acabou afetando a qualidade de seus estudos. “Eu precisava dar conta dos filhos, dar meu cargo enquanto liderança, enquanto esposa, enquanto filha, então, eu não aprendi tudo o que eu poderia ter aprendido”, lamenta. 

Apesar dos pesares, as conquistas inéditas da docente se justificam. Para a comunidade acadêmica, ela acredita que sua entrada na UFG pode servir para abrir portas para muitos outros. No âmbito pessoal, Eunice trabalha para “mostrar para as mulheres, principalmente para as mulheres indígenas, que é possível a gente fazer diferença, que a gente não precisa ficar aguentando tantas violências”. 

Pertencimento 

Os tapuia viviam uma situação singular: “Nós escutávamos que não éramos indígenas”. Antes do reconhecimento oficial pela Funai, algumas características específicas do povo não os classificavam como indígenas para muitos. A falta de uma língua própria e a miscigenação com brancos e negros retiravam as características fisionômicas esperadas de povos indígenas. “A gente não era indígena, mas, ao mesmo tempo, a gente não era um cidadão brasileiro comum”, lamentou.

“Nós escutávamos que não éramos indígenas. Era como se dissessem ‘essa terra aí, pode invadir’”

“Dizer que a gente não era indígena, era como se dissessem ‘essa terra aí, pode invadir’”, o que levou à invasão por posseiros e a migração de parte dos Tapuia da região. Na década de 1990, após reconhecimento oficial dos Tapuia pela Funai, vieram as políticas públicas e as proteções exigidas pela lei, o que possibilitou o retorno de parte dos refugiados à aldeia. A população, que era de cerca de 160 antes da oficialização dos Tapuia, hoje é de mais de 260 na vila Carretão, compartilha Eunice.  

A atuação do Governo Federal garantiu maior preservação da cultura dos povos indígenas, incluindo os Tapuia. “A gente já avançou bastante”, coloca Eunice ao se referir às demarcações de terras e à educação indígena, por exemplo. 

Eunice sente ser insuficiente nos contextos que habita: a universidade e a aldeia. Hoje, por se colocar na interseção entre as duas culturas, Eunice afirma acreditar que poderia ter sido uma melhor pesquisadora ou uma melhor indígena. O fato de ser uma mãe solo e estar no contexto da universidade a afasta da cultura da aldeia, e vice-versa, e o cotidiano da universidade apresenta desafios para aqueles que se formam longe dos centros urbanos. 

Mesmo sendo professora na aldeia, secretária do Conselho de Saúde local e secretária da associação Tapuia, existem distâncias. A mãe de Eunice a questionou após seu divórcio: “Como que eu vou sair de casa se minha filha não tem um marido?”. Até hoje, ela ouve dos colegas da aldeia: “Trabalhar sentado não é trabalhar”. 

Na UFG, existem também existem distâncias. Quando está caracterizada com adereços indígenas, as pessoas não acreditam que é uma professora da UFG, relata Eunice. Além disso, existe receio com questões ligadas à tecnologia: “como eu vou pedir ajuda para uma coisa que eu devia saber?”. 

Se colocar (e ser colocada) na posição de vanguarda exigiu muito de Eunice. Ela, que se aproxima dois mundos diferentes, não pôde pertencer completamente a nenhum deles. O esforço e a coragem, entretanto, renderam frutos: “Meus filhos puderam fazer as escolhas que eu nunca pude”.

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