Ao Céu Cabiam as Aves, de Daniel Scotelano, é uma pérola literária

Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

Numa época em que o mercado editorial se apresenta tão abarrotado de opções, muitas delas replicações de fórmulas caça-níqueis de qualidade duvidosa, e que as grandes editoras investem pesado em marketing nos nomes internacionalmente conhecidos, fica difícil encontrar uma boa obra fora do circuito se ela não tiver, antes, passado pela chancela de algum blogueiro ou crítico literário. Por isso, encontrar bons trabalhos de autores de talento que atuam de forma independente é como buscar pérolas que ficam muito bem escondidas dentro de ostras no fundo do mar.

O fato é que encontrei, quase por acaso, uma pequena pérola, um livro de poucas páginas, mas valioso, escrito por um jovem bacharel em Direito e funcionário público, Daniel Scotelano, em sua estreia literária. Trata-se de “Ao Céu Cabiam as Aves” (Pluri Editora), uma bela alegoria sobre a diversidade e a aceitação das diferenças.

Conforme consta no texto da orelha, a obra parte das seguintes premissas: “Que lugar é destinado a quem no mundo? O que leva alguém a replicar comportamentos e a repetir procedimentos sem questioná-los? O texto da quarta capa também explica que “Sobre autoconhecimento e coragem para ser: disso se trata esta história”. Portanto, mesmo que o formato do livro e suas belas ilustrações em aquarela do artista Douglas Zimmermann possam identificá-lo como uma leitura para crianças, a significação total do enredo talvez seja mais bem apreciada por jovens e adultos.

A história se passa numa cidade “distante de todas as outras, envolta em um mundo desconhecido, no qual as estruturas existentes – ou criadas – mantinham-se intocadas”. Nessa cidade, nada nunca se alterava, nem era questionado, os comportamentos eram padronizados e era proibido desviar-se do estabelecido. Até as crianças tinham que cumprir seus papeis sem queixas. Assim, os meninos da cidade só podiam brincar na rua com bolas de gude, sob a vigilância das mães, enquanto as meninas permaneciam em casa.

Nessa estrutura rígida, alguns garotos que não gostavam de brincar de bola de gude escondiam sua tristeza e sonhavam que brincavam com pipas, mas como haviam sido ensinados que “ao céu cabiam as aves”, sentiam que era errado desejar isso. Certo dia, um menino resolve quebrar a ordem estabelecida e fabricar uma pipa, e a partir daí a trama se desenrola.

Como eu disse antes, o livro pode e deve ser lido como uma alegoria, que é, em literatura, um texto que conta outra história de forma subliminar, normalmente com intenção de falar sobre problemas profundos de uma sociedade. No caso, a história da repressão daqueles que não se “encaixam” num modelo imposto.

A obra também se sustenta por meio de sua escrita poética, com suas belas metáforas, como, por exemplo, a fabricação da pipa que representa o direito do pensar e do comportar-se de forma diferente; ou o formato da cidade, um quadrado, simbolizando o que entendemos como pensamento quadrado, ultrapassado. A cidade se afasta tanto das outras ao longo do tempo que até os caminhos que levam a ela são escondidos pelo mato que cresce. Na mesma medida, seus governantes veem os de fora como desordeiros, o que demonstra a visão distorcida e preconceituosa das pessoas autoritários. A escolha do autor por não nomear o menino também me parece simbólica, pois ele personifica todo um conjunto de pessoas.

Atrelado a essas metáforas, há também outros questionamentos filosóficos e psicológicos que cercam a figura do garoto. Antes de tomar a decisão se deve ou não fazer a pipa, ele começa uma série de reflexões bem pertinentes, que envolvem desde a culpa por achar que o céu só pode ser das aves, bem como a conclusão de que as pipas não desonrariam o céu, e sim o deixariam mais bonito. O universo psicológico do personagem é rico: ele sente tristeza pela sua inadequação; medo de ser diferente; medo do julgamento; culpa e, por fim, coragem para enfrentar o status quo.

Seja pela riqueza de sua mensagem, seja pela sua própria beleza intrínseca, “Ao Céu Cabiam as Aves” deveria ser lido por todos.

Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.

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