Trump, capitalismo, propriedade e os sonhos de Nero

Halley Margon

“Chegou a hora de redefinir a natureza da dor.” — Richard Sackler na série “Dopesick”

É como tentar fixar as múltiplas superfícies de um caleidoscópio. As imagens se modificam e se mesclam a um mínimo movimento, seja do objeto, seja do observador. E, no entanto, lá estão, como uma entidade fixa e imutável, tanto o observador quanto o objeto que ele tenta contemplar e o mundo ao redor.

É mais aconselhável, às vezes, deixar que o caleidoscópio apenas cumpra sua função e mostre, numa variação constante de formas e cores, os fragmentos que se refletem na sua superfície.

Quem sabe se, assim, o real, esse real fugidio e inacessível que nos assombra, contaminado de irrealidades e delírios, se faz passível de compreensão — como disse recentemente um insigne comentarista econômico, “Ninguém sabe… Além… da habitual ignorância sobre como nossa complexa economia global opera, todos enfrentamos a enorme dificuldade de não termos ideia do que (o Imperador) fará a seguir”.

I

Num determinado dia, um bem afamado capitalista (ser que vive do e para o capital) brasileiro decide comprar um amplo pedaço de uma paradisíaca paisagem de Itaipava na Serra do Mar, a pouco mais de 70 km do centro do Rio de Janeiro.

Lá não havia muita coisa além da própria e apaziguadora paisagem e uma ou outra residência abonada que em nada a enfeiava. Por quê?

Por que ele a comprou e no lugar daquele encantador pedaço da Terra decidiu executar um empreendimento imobiliário com umas tantas dezenas de casas, relativamente pequenas e iguais umas às outras e, para muitos, se não feias, pelo menos insípidas?

Claro, é o óbvio ululante. Não foi, é claro, para democratizar aquele território criado pelas generosas mãos do Senhor, recuperando-o do gozo exclusivo de uns poucos privilegiados como ele próprio, mas simplesmente para realizar a atividade à qual se dedica: fazer crescer seu capital, ganhar dinheiro, faturar, prosperar, de acordo com as leis da prosperidade próprias do capitalismo.

Mas, de novo, por quê? Sabe-se que o sujeito não precisa de nem um centavo a mais em sua avantajada fortuna para viver nababescamente, se assim o desejar, por toda a sua vida e garantindo o mesmo para os seus previsíveis descendentes por gerações e gerações.

E isso nada tem a ver com eventuais traços de personalidade, fraqueza moral ou algo que o valha, como se poderia crer, nem seria um evidente sintoma de demência, como também poderíamos supor.

Lá pelos primórdios do capitalismo, seus críticos apontavam, ao contrário, para a ganância do capitalista como uma consequência imanente ao sistema do qual faz parte.

“Essa ânsia ilimitada por riqueza, essa caça apaixonada por valor de troca…”, como definiu um daqueles críticos, e que torna a avareza ilimitada, racional e natural.

A expressão já se tornou quase arquetípica: o cara degola o parceiro de trabalho, ou a esposa e os filhos, ou alguns vizinhos, mas antes de cometer o ato lhes garante, “entenda, não é nada pessoal”, apenas uma necessidade da própria natureza — não custa lembrar que o capitalismo é vendido por seus melhores ideólogos como um acontecimento histórico tão inescapável quanto os tsunamis ou uma subida da maré sob a luz do pôr do sol em Ipanema.

Esse homicida predador, portanto, está a priori absolvido de qualquer julgamento.

Mas, de novo, precisava mesmo reconfigurar aquela encantadora paisagem na Serra do Mar? No pé do ouvido, um amigo quem sabe não tão ganancioso poderia perguntar ao empreendedor: você precisa mesmo disso?

II

A chamada avareza racional dita as regras das suas decisões — sua personalidade, suas idiossincrasias, sua biografia inclusive, e quando aparecem não são mais que um delicado (ou bruto) toque de tempero para enriquecer esse padrão de comportamento.

Aquele afamado fabricante de capital é, acima de tudo, um agente econômico e quanto maior sua riqueza, maior seu dever e sua capacidade de fazer girar as engrenagens da economia.

É esse o seu papel no mundo, ou assim crê e nos faz crer. Esse é, de acordo com sua própria consciência e a ideologia que a alimenta, o seu dever: pura e simplesmente fazer girar a economia, colocar seu talento e sua persona a serviço do grande maquinismo que comanda a existência do planeta.

Ali começa e termina a sua minima moralia, seu senso de decência.

Mas o pior não é que estejam convencidos disso, dessa neutralidade celestial que os livra aparentemente de qualquer eventual culpa ou, menos ainda, de julgamento.

O que afinal interessa sua subjetividade, seu temperamento ou seus apetites pessoais? O pior são as consequências dos seus atos.

III

Quando Nero incendiou Roma, que sonhos habitavam sua alma?

Que sentido havia naquele gesto? Pura maluquice de um ególatra que acreditava poder moldar o mundo ao redor à sua própria imagem e semelhança ou uma necessidade intrínseca da história para fechar com sua típica ânsia de maldade um ciclo civilizacional?

Quem sabe houvesse ali uma racionalidade qualquer nunca revelada (a não ser para e entre os economistas que o assessoravam), o ato de um visionário querendo redefinir de uma vez por todas a natureza do Império, botando fogo na Capital e tocando lira ao contemplar o espetáculo.

De acordo com cronistas da época, não foram poucos os romanos que suspeitavam da intenção (racional) do imperador, a de reconstruir Roma a partir de seus mais pessoais critérios e desejos.

Martin Wolf, comentarista de Economia do “Financial Times”: o presidente Donald Trump quer “explodir a economia mundial por diversão” | Foto: Reprodução

A expressão usada pelo comentarista-chefe de economia do “Financial Times”, Martin Wolf, para definir a guerra comercial recém-inaugurada pelo Imperador foi: “Vamos-explodir-a-economia-mundial-por-diversão” — algo como um patamar abaixo da avareza racional que guia o empreendedor da Serra do Mar ou a frivolidade do romano.

IV

“Quem eles pensam que são? Eu realmente acho que eles… é o básico da decência. Quem eles pensam que são?”

Quando um sujeito como Joe Biden, ultrapassando os tradicionais limites de despudor no qual ele e os seus estão acostumados, em tom de intensa indignação emite uma sentença como essa, qualificando como indecente uma das decisões políticas do seu sucessor, é porque estamos nos encaminhando celeremente para uma outra etapa da degenerescência na administração do Estado e da coisa pública, mais grave, aguda, calamitosa e o que é o mais grave, aparentemente irreversível.

Se é que já não estamos há muito engolidos por esse pântano.

V

“Propriedade! Toda essa merda é sobre propriedade!” (“Property! Whole fuckin’ thing’s about property”), diz Sean Penn no papel do Sargento Edward Welsh no filme “Além da Linha Vermelha” (The Thin Red Line, 1998), de Terrence Malick. E é disso que se trata de fato.

Enquanto isso, nós, todos nós ou pelo menos quase todos, rodopiamos como náufragos na direção do desconhecido.

Halley Margon, escritor, é colaborador do Jornal Opção.

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