O que não falta, Raimundo, é “mal secreto”

A pessoa mencionada no título é o poeta parnasiano Raimundo Correia (1859 — 1911). Foi magistrado, professor, diplomata. Porém o melhor dele é o poeta. É sua poesia que o perpetua. Seu poema “Mal Secreto” é o meu predileto, o qual, conforme eu já disse aqui noutra crônica, são versos com semelhança semântica com outros do poeta e escritor italiano Francesco Petrarca (1304 — 1374): um dos precursores do Renascimento italiano. Ambos falam da máscara da face a esconder abismos com risos sem convicção de alegria. Fato que nos remete às redes sociais pela intensidade de exposições nesse contexto, mas isso não é o assunto deste texto. Esse problema do uso de máscara é antigo, vem de quando se fez luz na face do abismo e o verbo se fez carne.

De acordo consta no filosófico livro “Ensaios”, de Michel de Montaigne (1533 — 1592), Petrarca disse: “Assim a alma esconde sob um véu enganoso as paixões contrárias que a perturbam; não raro está ela triste quando seu rosto irradia alegria…” Já Raimundo Correia, em seu soneto, expressou: “Se se pudesse, o espírito que chora, / Ver através da máscara da face, / Quanta gente, talvez, que inveja agora / Nos causa, então piedade nos causasse! / Quanta gente que ri, talvez, consigo / Guarda um atroz, recôndito inimigo / Como invisível chaga cancerosa!”. Mas antes do que disseram Petrarca e Correia, consta algo com certa semelhança em Pedro 3. Em alguns versículos, há uma recomendação de que a beleza não pode apenas ser “nos enfeites exteriores, como cabelos trançados e joias de ouro ou roupas finas”. O conselho é que a beleza seja interior, a qual, segundo o livro bíblico, “não perece” e, portanto, só é encontrada em “espírito dócil e tranquilo”.

O tal orçamento secreto é outro tipo de mal secreto, ele também usa máscara (só que mais abominável e danosa) e suas consequências negativas impedem o crescimento econômico do país, tornam ruins os serviços públicos oferecidos, entre outros males. Enfim é uma pedra gigantesca no caminho do desenvolvimento social, afetando sobretudo as camadas sociais mais vulneráveis. Orçamento secreto é coisa do balacobaco. É coisa de deixar até o capeta com o cabelo arrepiado. E o palco dessa festa com a grana pública usada sem transparência ocorre justamente no Congresso Nacional: nossa casa superior de leis. Essa orgia orçamentária desrespeita os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da publicidade. Nós, os brasileiros, gastamos anualmente a bagatela de R$ 10,8 bilhões com os nossos ilustres deputados e senadores. É o segundo mais caro do mundo.

Congresso Nacional, a casa superior de leis do Brasil, custa aos brasileiros 10,8 bilhões por ano, é o segundo mais caro do mundo | Foto: Reprodução

Em 2018, Jair Bolsonaro, quando candidato a presidente (e ganhou a eleição do petista Fernando Haddad), alardeou que iria trabalhar para reduzir o número de deputados: de 513 para 400. O que é um fato apenas ao alcance do Congresso. Essa ladainha é antiga no próprio Legislativo. Mudanças profundas não ocorrem por lá. Lá os parlamentares apenas mudam as vírgulas de lugar; a frase farsesca continua a mesma: perpetuação das mamatas. São poucos os que integram a casa superior de leis e buscam melhoria para o país; predominam os que põem seus interesses acima de quem os elege. Essa maioria faz coro ao que dizia o personagem Justo Veríssimo, do inigualável humorista Chico Anysio: “Eu quero que pobre se exploda”.

A emenda PIX está dentro do embornal da mutreta secreta, visto que valores vultosos são destinados a estados e municípios, e isso tudo na manha, sem nenhuma complicação, sem que se apresente projeto, convênio ou justificativa. Nessa ausência documental, o tutu das emendas impositivas fica sem rastreabilidade. Como o STF é o xerife com autoridade no condado do Congresso, o ministro Flávio Dino (acredito) está seguindo o conselho dado pelo ex-presidente do FBI Mark Felt (o famoso Garganta Profunda) ao jornalista Bob Woodward, do jornal Washington Post: “Siga o dinheiro”. Esse “circo” vicioso (circo porque há um “verniz de legalidade” onde não há) precisa ter um fim. A credibilidade do Congresso está à altura de um montinho de titica.

Já que falei do poeta brasileiro Raimundo Correia, aproveito o ensejo para falar de outro bardo: Castro Alves. O poeta baiano, que recebeu a admiração de Machado de Assis — nosso mago maior como romancista — versejou algo precioso, mas que, infelizmente, não passa de palavras. Tais versos fazem parte do poema “O Século”. O vate escreveu que, “Nos lábios dos horizontes / Há um riso de luz… É Deus”. Diz depois aos moços que “não tarda a aurora da redenção” e dá-lhes um recado, que ainda continua no vento sem ganhar vida prática:

“E vós, arcas do futuro,
Crisálidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém não que esmague o povo,
Mas lhe seja o pedestal”.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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