Conheça o preso político que identificou seu torturador em entrevista ao Jornal Opção

Jarbas Silva Marques nasceu em Monte Carmelo, Minas Gerais, em 1943. Na região, havia apenas duas escolas — Collegio Regina Pacis, em Araguari, e o Internato Diocesano, em Uberaba. “Só os filhos dos fazendeiros podiam estudar”, lembra Jarbas Marques. “Então, com o desenvolvimento de Goiânia, muitos da região se mudaram para cá, para estudar na Escola Técnica, Lyceu de Goiânia, Colégio Pedro Gomes e Instituto de Educação de Goiás.”

Chegou à Capital goiana aos 5 anos de idade e sua família foi uma das primeiras a habitar a Vila Operária (posteriormente chamada de Setor Centro-Oeste e hoje conhecida como Fama). Em 1949, as ideias do Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinham penetração no bairro construído pelo “proletariado”, conta Jarbas Marques. 

“Os comunistas em Goiás eram muito ativos. Nossos vizinhos, de sobrenome Pilomia, eram do Partidão. Frequentando a casa deles, comecei a ler o jornal do partido, chamado ‘Voz Operária’. Na década de 1950 comecei a entregar os jornais e acompanhar minha mãe em campanhas nacionalistas do Petróleo É Nosso, campanhas contra a ameaça atômica dos Estados Unidos, contra a fome. Assim me politizei.”

Uma memória que marcou sua infância: em 1951, na Praça Joaquim Lúcio, Setor Campinas, Jarbas Marques viu pela primeira vez uma mulher apanhar da polícia. Os nacionalistas, na campanha O Petróleo É Nosso, construíram réplicas de madeira de duas torres de petróleo na praça. “Eu vinha da escola e encontrei no caminho o pessoal fazendo comício. A polícia entrou no palanque e começou a bater em Glória Pilomia, comadre da minha mãe.” Aquela foi a primeira, mas não a última vez que Jarbas Marques via a polícia bater em uma mulher. 

Durante a década de 1950, se filiou à juventude do PCB e se envolveu no movimento estudantil. Participava de todas as tarefas do partido: “Eu era o mais jovem, o mascote. Então, se precisasse jogar bomba, era comigo; se precisava pichar, era comigo”. Seu amigo Hélio Seixo de Brito, médico que viria a ser deputado estadual, dizia que Jarbas Marques não podia ver um tijolo que logo subia em cima para fazer discurso. 

Em 1962, com a intensificação da divergência sino-soviética, as doutrinas comunistas da China e da União Soviética seguem caminhos separados. No Brasil, isso significou a emancipação de uma ala divergente que havia dentro PCB. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB), se aproximava da China de Mao Tsé-tung ao defender como tática revolucionária o “cerco das cidades a partir do campo”. Já o PCB tinha em seu programa o marxismo-leninismo soviético, sem descartar atingir o comunismo por reformas graduais, a “via pacífica”. Era chamado de “reformista”. Em Goiás, o PCdoB estava associado às ligas camponesas. Tarzan de Castro (aos 86 anos, ativíssimo), Gerson Parreira (já falecido) e Élio Cabral (vivo, mas com problemas de saúde) foram alguns dos goianos ligados ao PCdoB. 

Aos 18 anos, Jarbas Marques era militante do PCB. Para atingir o posto de “militante”, o afiliado tinha de passar pelos níveis “simpatizante” e “aliado” — a progressão era concedida para quem finalizasse cursos de formação política, como o Curso Stálin. Para combater o partido comunista rival, o PCB usou a própria estrutura do Estado, conta Jarbas Marques. “Eu era apenas um tarefeiro quando o partido me mandou para a Secretaria do Trabalho.”

O secretário de Trabalho e Ação Social do governo Mauro Borges era Érides Guimarães (a associação entre Érides e Mauro é uma das razões pela qual a oposição, na época, classificou Mauro Borges como comunista, apesar de o governador ter apoiado o golpe civil-militar). A estrutura oficial da Secretaria do Trabalho criou sindicatos rurais como contrapartida às Ligas Camponesas para atingir os comunistas simpáticos ao partido dissidente.

Aos 80 anos, o jornalista Jarbas Marques se lembra da repressão militar | Foto: Euler Belém / Jornal Opção

Quando as Ligas Camponesas, especialmente a de Dianópolis (hoje Tocantins), se desfizeram em Goiás, ainda no governo Mauro Borges, os comunistas ligados ao PCdoB, como Tarzan de Castro, foram perseguidos antes do golpe de 1964. Jarbas Marques continuou associado ao governo, na juventude do PSD. Se tornou jornalista, trabalhando na redação do jornal “Quarto Poder”. 

Com a credencial do jornal — concedida pelo editor-chefe do veículo, Manduca, também comunista — foi ao Rio de Janeiro em 1963 para cobrir a Conferência Latino-Americana de Solidariedade a Cuba. O propósito real da viagem era colher assinaturas para legalizar o partido. Ainda naquele ano, foi preso pela primeira vez, mas conseguiu deixar a prisão após cerca de 40 dias por ser membro do PSD e possuir o álibi de estar cobrindo o evento para a imprensa. 

Em 1964, veio o golpe militar. Já “fichado” e procurado como comunista, Jarbas Marques foi para Brasília trabalhar como açougueiro. Ele afirma nunca ter acreditado na versão oficial dos militares de que o golpe seria uma medida transitória, que duraria apenas seis meses, apenas para restaurar a ordem no Brasil. “Carlos Lacerda inventou isso porque ele achou que seria candidato em 1965.”

Com uma memória impressionante, Jarbas Marques enfatiza que o tenente-coronel Mauro Borges Teixeira, que fora aluno e apadrinhado pelo general Castello Branco, também não tinha essa convicção. “Por ter liderado em 1961 a Campanha da Legalidade, ao lado de Leonel Brizola e Miguel Arraes [governador de Pernambuco], Mauro Borges acreditava que conseguiria articular sua candidatura à vice-Presidência da República. Mas Adhemar de Barros [de São Paulo], Carlos Lacerda [da Guanabara] e outros políticos articulavam suas próprias intenções. Em Goiás, Mauro foi derrubado pela UDN: Ary Valadão, Olímpio Jayme, Heli Mesquita.”

No período, tentou apropriar-se de equipamentos da Rádio Universitária para criar uma Rádio da Legalidade. “A gente tinha uma utopia, queria resistir.” Ao lado de outros resistentes, como James Allen da Luz, sua atuação se radicalizou. Passou a acreditar na ideia de revolução armada, pregada pelo PCdoB. Em contato com o dirigente do partido Ângelo Arroyo [um dos comandantes da Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974], cumpriu tarefas como ir ao Triângulo Mineiro “virar” os comunistas do Partidão para a luta armada.

A conversão não consistia apenas na mudança ideológica, mas também no fornecimento de treinamento militar. “Diferentemente da maior parte do pessoal, o meu sonho era ser revolucionário profissional. Eu era faixa preta de luta livre, era professor de halteres, tinha me preparado fisicamente para isso.” O armamento do partido, ele conta, vinha da Primeira Guerra Mundial. Fuzis Mauser fabricados em 1908 — “uma porcaria para a época”, assinala Jarbas Marques. 

O disfarce das operações não era muito melhor. “Fazíamos nossas reuniões com um evangelho de Allan Kardec e velas em cima da mesa; se a polícia chegasse, dizíamos que estávamos em uma sessão espírita. Era coisa muito primária. Todas as reuniões dos comunistas tinham bolo e guaranás; se fôssemos descobertos, era uma festa de aniversário. Os membros se esqueciam de chamar uns aos outros pelos codinomes depois que acabava a reunião.”

Guerrilheiro

Em sua atuação como guerrilheiro, Jarbas Marques foi preso, torturado e solto três vezes. Ao todo, passou mais de dez anos nas cadeias militares. Foi detido pela primeira vez por tentar desviar armas do quartel do Tiro de Guerra de Anápolis. “O líder estudantil Neso Natal descobriu que o quartel de Anápolis tinha armas. Pensamos em fazer o que foi feito no assalto ao quartel de Moncada, liderado por Fidel Castro em 1953. Era uma coisa ingênua, achávamos que, se tivéssemos um morro e meia dúzia de espingardas, conseguiríamos fazer guerrilha.” Nessa tentativa de assalto, Jarbas Marques foi preso, levado a Brasília e solto em 1965. 

Como secretário de Agitação e Propaganda do PCdoB, Jarbas Marques foi procurado pelos revolucionários de Uberlândia, que tinham desviado um carregamento de dinamites do Exército e buscavam treinamento militar para usá-lo. Jarbas Marques entrou em contato com o representante de Leonel Brizola na região, Flávio Aristides de Freitas Tavares [jornalista], e recebeu a ordem de usar os explosivos para fazer um assalto a um carro forte da empresa DNR, que ia para Araguari. 

Guerrilha do Araguaia: militares com dois guerrilheiros presos | Foto: Reprodução

“O pessoal me daria a dinamite para detonarmos um viaduto no caminho do carro-pagador. Mas um radialista do PCB chamado José Luís de Oliveira passou nosso plano para a repressão.” Jarbas Marques estava no Lyceu de Goiânia quando foi encontrado pelos militares. “Eu precisava sair da capital goiana, e ia voltar para Brasília. Marquei de buscar meus documentos no Lyceu, mas não sabia que o diretor da escola era agente policial. Quando cheguei ao Lyceu, a equipe estava preparada para me prender.” Assim, Jarbas Marques foi brutalmente torturado outra vez, no Rio de Janeiro. 

A repressão queria informações acerca do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de Leonel Brizola, que havia apoiado Che Guevara na Bolívia. “Nunca disse nada a eles. Quando era torturado, sentia aquele ardor revolucionário e me lembrava dos conselhos de nunca contar aos militares nada sobre minha intimidade. Nós perdemos muitos companheiros que não aguentaram ver a família ser torturada na frente deles, ou eles serem torturados na frente da família. Se você contasse algo sobre sua vida íntima, eles iam atrás dos seus amigos e familiares.”

A última e mais longa prisão de Jarbas Marques aconteceu em 1967, em Uberlândia. Ele era procurado por operar a logística de focos de guerrilha em Mato Grosso e Tocantins, além de ter comandado assalto a bancos para financiar a clandestinidade. Ao todo, foi condenado pelo assalto a cinco bancos, “porque eu só assumi aqueles em que os gerentes dos bancos me reconheceram”. Os assaltos representavam uma boa oportunidade para os gerentes e contadores dos bancos, que, segundo Jarbas Marques, relatavam ter perdido um valor muito maior do que o real para receber compensação do seguro. E para ficarem com parte do dinheiro.

Tortura

“Sofri tortura de cachorros treinados. Sofri o que chamavam escovão, ser afogado em tina de urina e fezes. Sofri choques, queimaduras com charuto, me quebraram o crânio”, conta Jarbas Marques, mostrando aos repórteres do Jornal Opção uma área irregular na parte de trás de sua cabeça. 

“Em Brasília, fui torturado com um cachorro pela equipe do general Carlos de Meira Mattos, a mesma equipe que castrou pessoas na Revolta de Trombas e Formoso [no Norte de Goiás]. Eles foram treinados na Escola das Américas (School of the Americas, Georgia, Estados Unidos), que é um instituto do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e ofereceu “formação de contra-insurgência anticomunista” para 250 mil torturadores do mundo inteiro. João Paulo Burnier [militar brasileiro de direita] foi um dos torturadores mais famosos que fez curso de tortura lá.”

Ele se lembra do nome de seus torturadores. O coronel Epitácio Cardoso de Brito chefiou a tortura, de acordo com o jornalista e professor aposentado. Gomes Carneiro, que depois foi expulso do exército por contrabando e foi um dos participantes do assassinato do deputado Rubens Paiva, do Rio de Janeiro [pai do jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do best-seller “Feliz Ano Velho”]. Ele menciona também o major Zeno de Almeida Moura. 

Preso em Juiz de Fora, em 1967, foi visitado por uma comissão formada pelos jornalistas e políticos Márcio Moreira Alves, Eugênio Doin Vieira e Edgar da Mata Machado [pai de José Carlos da Mata Machado, que foi assassinado pela ditadura]. O depoimento de Jarbas Marques foi registrado, bem como o nome de seus torturadores. Poucos anos depois, entretanto, Márcio Moreira Alves foi exilado, Doin Vieira teve seu mandato cassado pelo AI-5.

Flávio Tavares, representante do PCdoB que tinha sido o contato entre Jarbas Marques e Brizola em Brasília, era um delator da repressão, de acordo com Jarbas Marques. “Eu era torturado com o Flávio Tavares monitorando a tortura, apontando nos mapas e dizendo ‘Fulano vai estar aqui, fulano aqui, fulano aqui e fulano aqui’”, denuncia

“Eu virei piada, porque apanhei de soldado a general. Até o sargento Milton, que servia de fotógrafo do Estado-Maior do Exército, entrou na cela e começou a me chutar no chão.” Neste ponto, as torturas já não tinham mais propósito de tirar informação alguma e se tornaram sadismo. “Quando me quebraram os óculos, eu tentei suicídio. Usei o vidro da lente para tentar cortar a carótida, mas os militares viram o sangue escorrer por debaixo da porta e me trataram. Fui então colocado nu em uma cela vazia, sem camas ou objetos.”

Foi transferido diversas vezes para prisões em ilhas, onde as famílias dos presos não tinham acesso a seus familiares: Ilha Grande, Recife e Fortaleza. Fez greve de fome por dez dias pelo direito de tomar banho. Se recusou a vestir a roupa dos presos comuns. O pai de Jarbas Marques, caminhoneiro, vendeu seu caminhão para contratar um advogado, mas não teve sucesso em libertá-lo. 

Médico e acusado de ser torturador do Exército Ricardo Agnese Fayad | Foto: Reprodução

Liberdade

A Lei da Anistia foi aprovada em março de 1977. Jarbas Marques terminou sua pena no presídio Frei Caneca, o mais antigo do país, que foi demolido em 2010. “Saí todo estrupiado de tortura. Quebraram minha perna e não ofereceram tratamento, então meus ligamentos arrebentados nunca se recuperaram. Tinha otite crônica pelos afogamentos em fezes e urina. Urinei sangue por muito tempo. Meu corpo foi usado para treinar novos torturadores. Lembro-me de ouvi-los dizendo: ‘Não coloque dois fios elétricos do mesmo lado do corpo para evitar infarto’.”

“O general Ricardo Agnese Fayad inventou torturas no meu corpo. Afogamento com conta-gotas e éter no ânus. Ele era médico pediatra e torturou o presidente do sindicato dos médicos, que foi seu colega no curso de medicina”, declara Jarbas Marques.

O general Ricardo Agnese Fayad foi denunciado por Jarbas Marques pela primeira vez no Jornal Opção, na edição Ano XXIII, número 1.184, 15 a 21 de março de 1998. Essa entrevista causou o afastamento de Fayad pelo Estado Maior do Exército em 3 de abril de 1998. Após a publicação, outros veículos encontraram e entrevistaram vítimas de torturas de Ricardo Agnese Fayad. 

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