Nelson Werneck Sodré: “Golpe de 1964 não foi um golpe militar. Foi um golpe político”

“Nossa geração teve pouco tempo/ Começou pelo fim/ Mas foi bela a procura/ Ah, moços, como foi bela a procura!/ Mesmo com tanta ilusão perdida,/ Quebrada/ Mesmo com tanto caco de sonho/ Onde, até hoje,/ A gente se corta.” — Alex Polari de Alverga, poeta e ex-guerrilheiro.

O livro “A Esquerda e o Golpe de 1964” (Civilização Brasileira, 531 páginas), de Dênis de Moraes, contém depoimentos extraordinários de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Francisco Julião, Betinho, Janio de Freitas, Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, Marcello Cerqueira, Marly Vianna, Rui Moreira Lima, Theotonio dos Santos, entre outros. Um dos mais interessante é o do general e historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999).

Um dos fundadores do célebre Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), Nelson Werneck Sodré serviu ao Exército “por longos 45 anos”. Ex-vice-presidente da UNE, o advogado Marcello Cerqueira registra: “O general Werneck Sodré nos alertava para a questão da quebra da hierarquia”.

Ao entrevistar Nelson Werneck Sodré, em 1988, Dênis de Moraes perguntou, de chofre, sobre o dia do golpe. O militar e historiador disse: “Eu ainda me lembro do telefonema que recebi de um amigo: ‘Nelson, o pessoal do Lacerda depredou a sede do Iseb’”.

Nelson Werneck Sodré faz uma curiosa anotação a respeito da crise do Iseb, entre 1963 e 1964: “O Iseb se tornou homogêneo depois da crise e participou de toda a luta ideológica, especialmente de 1963”.

O historiador pergunta: “Agora, na realidade, essa homogeneização resultou em quê? Inserindo-se no conjunto das forças progressistas daquele momento, o Iseb também se esquerdizou. Ele pecou por excessos, se sectarizou por posições demasiado esquerdistas”. Ressalta: Nelson Werneck Sodré era de esquerda, mas não um radical.

O que empurrou o Iseb para a esquerda? De acordo com Nelson Werneck Sodré, foram “forças reacionárias”. “O Iseb, por suas posições nacionalistas, caiu no índex das forças reacionárias. (…) Só o jornal ‘O Globo’ publicou um suplemento inteiro contra o Iseb. Alguém financiou isto”.

Um dos cérebros do Iseb, Nelson Werneck Sodre relata: “Na montagem do golpe de 1964, o Iseb foi uma das metas. Tanto que foi depredado na manhã do dia 1º de abril, por elementos ligados ao então governador da Guanabara” — Carlos Lacerda.

Carlos Lacerda, golpista veterano: o político das frases-torpedos | Foto: Reprodução

O Iseb era uma espécie de “escola” que pensava, para além do crescimento, o desenvolvimento do país. Mas, segundo Nelson Werneck Sodré, apesar de relevante, a imagem de um Iseb poderoso, que controlava e dava suas linhas ao governo de João “Jango” Goulart, foi uma criação da direita.

“Não era a força do Iseb, mas a ofensiva do inimigo que fazia do Iseb uma coisa espantosamente poderosa, capaz de influir no governo, controlá-lo, traçar rumos para o país. Isso era uma balela propagada com muita arte e engenhosidade pelas forças que estavam articulando para dar o golpe. Elas se compuseram meticulosamente, organizadamente, isolando as forças progressistas, reduzindo-as à impotência”, afirma o historiador.

Os intelectuais do Iseb tinham informações a respeito da marcha golpista. “Mas havia, em muitas áreas, a ilusão de que éramos fortes. Alguns diziam que, se a reação colocasse a cabeça para fora, seria batida. Evidentemente, era uma ilusão que dominou muitas áreas — o Iseb não ficou isento também. Refiro-me à instituição como um todo, porque eu, pessoalmente, não tinha ilusões.”

João Goulart: o presidente que não percebeu a força do golpismo em 1964 | Foto: Reprodução

Movimento progressista era imaturo

Por que, sendo de esquerda, Nelson Werneck Sodré não tinha ilusões? Pela “falta de estrutura da esquerda e de todo movimento progressista, inclusive do movimento nacionalista. Ele abrangia certos grupos de elite, mas se esquecia ou não tinha capacidade para arregimentar forças, estruturá-las”.

O historiador ressalta que “havia um pensamento nacionalista, pró-reformas, que não tinha articulado nem sequer uma base política, que é sempre necessária”.

Dênis de Morais quer saber se faltou um projeto estratégico à esquerda e aos nacionalistas. “Não, eu creio que foi o próprio andamento do processo histórico do país. O movimento progressista era ainda imaturo. Um dos aspectos da imaturidade é julgar-se mais forte do que verdadeiramente é. Ter ilusões sobre o seu próprio poder.”

Nelson Werneck Sodré acrescenta: “Pensar que o processo está mais avançado do que realmente está. Na realidade, o golpe de 1964 não foi um golpe militar. Foi um golpe político, vitorioso na área política. Isolado o governo, deu-se a operação militar de ocupação. A derrota já existia politicamente. O governo estava politicamente vencido. O traço geral foi a incapacidade de reagir. Não houve reação nos sindicatos, nos partidos, nas forças armadas, no povo”.

Há quem postule que o movimento popular não compreendeu os avanços do governo de João Goulart Nelson Werneck Sodré discorda. Ele sublinha que “não foram incompreendidos”. “O governo Goulart foi muito flutuante, oscilante.”

Argemiro de Assis Brasil: o general do dispositivo militar | Foto: Reprodução

Jango, avalia Nelson Werneck Sodré, “era um homem de posições muito mutáveis. Às vezes, pendia para a direita, para a conciliação e para a composição. Às vezes, pendia para a esquerda. Essa oscilação o desprestigiava”.

Na fase final, mesmo com as reformas de base — como a agrária —, João Goulart começou a ser “hostilizado pela própria esquerda”. Quando realmente se aproximou dos dirigentes sindicais, dos estudantes e dos intelectuais, depois de negociar com todos (o que é correto numa sociedade democrática), “era tarde”, sublinha Nelson Werneck Sodré.

Diferentemente do historiador, sugiro outra via: a aproximação excessiva da esquerda, deixando o centro de lado, contribuiu, de maneira decisiva, para a queda de Jango. O centro caiu no colo da direita golpista praticamente “de graça”.

Dênis de Moraes inquire: “Qual foi o pecado do movimento nacionalista das forças armadas?” Nelson Werneck Sodré responde: “O prestígio da ideia nacionalista dentro das forças armadas sempre foi grande”.

Por que o nacionalismo entre os militares perdeu energia, digamos? “Na luta política de 1963-1964, esse prestígio se enfraqueceu devido à ofensiva da reação, principalmente através dos órgãos de comunicação. A reação tornava o nacionalismo sinônimo de comunismo”, assinala Nelson Werneck Sodré. A reação “realmente isolou as áreas nacionalistas que eram predominantes dentro das forças armadas”.

Dizia-se que o general Argemiro de Assis Brasil havia articulado um dispositivo militar, com generais e coronéis, para proteger o governo e o próprio João Goulart, que parecia acreditar na lereia. No exílio, quando o militar foi visitar Jango, sua mulher, Maria Thereza Goulart, deu-lhe um tapa na cara. Talvez seja a maior prova de que o “esquema militar” era pura ficção. A história está contada na página 299 do excelente livro “Uma Mulher Vestida de Silêncio — A Biografia de Maria Thereza Goulart” (Record, 643 páginas), de Wagner William.

“O esquema militar do presidente” tinha condições de “conter o golpe?” Nelson Werneck Sodré é peremptório: “Nunca acreditei porque eu o conhecia. Mas acreditava no movimento de massas. Acreditava na repulsa do povo a qualquer golpe para instalar uma ditadura. Tanto que a ditadura não se apresenta como tal; apresenta-se como legal, colocando o presidente Goulart na posição ilegal”.

Noutras palavras, o general também tinha suas ilusões, ao acreditar no “movimento de massas” — que não moveu uma palha contra o golpe. A reação da luta armada, entre 1968 e 1974, se deu, em larga medida, graças a estudantes e militantes como Mário Alves, Joaquim Ferreira e Carlos Marighella.

Num ato de imaturidade política, o presidente João Goulart começou a negociar diretamente com marinheiros e sargentos — passando por cima de almirantes e generais. “A quebra da hierarquia, que tem uma ressonância muito profunda nas classes armadas, foi um dos episódios mais característicos da desorganização geral. Ora, se fosse possível no Brasil uma etapa revolucionária como alguns sonhavam estar vivendo, a passagem das forças armadas deveria ser a última etapa. E nós jamais estivemos próximos disto.”

“João Goulart não era um bom condutor das forças armadas?”, indaga Dênis de Moraes. Nelson Werneck Sodré, um dos generais mais bem-informados do país, pontua: “Goulart não teve capacidade de articulação da área militar não por falta de dotes, mas por falta de uma boa assessoria militar. No fundo do pensamento do presidente Goulart — um homem com grande habilidade política — não havia maior preocupação com a questão militar”.

Segundo Nelson Werneck Sodré, alguns dos auxiliares militares de João Goulart “não eram adeptos” de suas ideias, “de sua orientação”.

João Goulart, postula o general, “nunca conheceu bem o problema militar. Fez promoções ruins. Aliás, Juscelino [Kubitschek] já vinha fazendo promoções ruins. Mas este é um aspecto acessório, porque a derrota foi no nível político. Tudo o mais foi a reboque”.

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