Histórias para além do mundo

Diogo Alves

No dia 19 de abril, anualmente estabelece-se o Dia dos Povos Indígenas. Ainda que haja pouco teor festivo nessa data, tendo em vista as crescentes e cotidianas violências sofridas pelos povos originários em nosso país, desde o princípio da colonização até os dias atuais, quando visto a partir do viés da luta, esse dia nos remete à quintessencial importância de defender o direito dos povos indígenas à vida em suas próprias terras e territórios, livres de invasões e genocídios infelizmente cada vez mais normalizados. Um país soberano e livre passa, inerentemente, pelo direito à existência e à preservação cultural das tradições de nossos povos originários.

Olhar para a história e para a vivência dos povos originários é olhar para um cotidiano de resistência em todo o mundo. Desde o momento em que os portugueses invadiram o Brasil e estabeleceram a colonização, os povos indígenas resistem ao constante apagar de sua cultura, de suas terras e de suas próprias vidas. Além disso, atualmente ainda precisam lidar com grileiros e pistoleiros que buscam expandir a ferro e a fogo a indústria que curiosa e supostamente alimenta bilhões de pessoas enquanto o próprio país está no mapa da fome.

Em outros países, também, a situação não é muito diferente. O supostamente progressista Canadá se recusa a reconhecer como, sistematicamente, aniquilou seus povos originários desde sua fundação (o mesmo país que mais abrigou nazistas exilados pós Segunda Guerra Mundial), assim como os Estados Unidos, que constroem cassinos em terras indígenas. A Nova Zelândia, com suas políticas de assimilação no século XIX e do neoliberalismo no século XX, fez com que os maori fossem apagados culturalmente e exilados para as periferias, sofrendo com alcoolismo e surtos de drogas. Mesmo em governos que asseguraram os direitos dos maori a suas terras, divisões malfeitas e intervenções governamentais criaram uma hierarquia opressiva dentro das próprias aldeias que faz com que a cultura e o estilo de vida dos povos originários do país da Oceania estejam cada vez mais ameaçados. Tudo isso por conta do “fardo do homem branco”.

Infelizmente, o cinema, inútil como toda e qualquer forma de arte, pouco pode fazer de concreto em prol dos povos indígenas em todo o mundo a não ser retratar seus cotidianos, suas resistências e dar voz aos seus anseios e às suas histórias. Ainda assim, a Sétima Arte centra-se nas sócio-relações entre indivíduo e espaço, e nas maneiras como esses se fundem através do tempo. Fazer cinema é, portanto, mais do que criar histórias ou ficções, decidir quais pessoas e quais espaços são dignos de terem suas vidas eternamente protegidas no domínio da arte.

A partir da premissa da etnoficção, mescla entre documentário etnográfico e representações ficcionais, João Saviza e Renée Nader Messora dirigem Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos. Exibido e premiado em 2018 no festival de Cannes, marca o segundo trabalho do diretor português, que já havia sido premiado em outros festivais na Europa, e o filme de estreia da diretora brasileira, que em 2009 conheceu o povo Krahô, que vive ao nordeste de Tocantins, e desde então dedica-se à representação cinematográfica desses povos originários e no auxílio à mobilização de cineastas krahô.

Centrada na figura de Ihjãc, jovem pai de família krahô, a obra, disponível para assistir no Filmicca, segue-o em uma jornada através do luto pela perda de seu pai e seu consequente fortalecimento espiritual a partir da dor. A forma como as cenas na Aldeia da Pedra Branca são decupadas a sempre posicionarem o protagonista em meio ao coletivo e ressaltar o teor cotidiano da vida de seu povo, em contraponto ao isolacionismo e à dilatação dos planos quando ele vai para a cidade, caracteriza um uso muito simples e eficiente da linguagem cinematográfica.

Essa simplicidade da imagem, contudo, faz com que a obra atinja sua grande qualidade ao centrar-se na oralidade, onde os diálogos elevam o dia a dia daquele povo a uma dinâmica transcendental de ancestralidade e luta. Desde a maneira como Ihjãc retrata a trajetória espiritual de seu falecido pai, dependente dele para completar sua jornada rumo à aldeia dos mortos, ou quando o pajé da aldeia conta sobre como os fazendeiros da região chacinavam os krahô, a palavra falada atua aqui como o elemento central do filme. Possui uma rica crença na voz como forma de expressão que remete inclusive aos trabalhos de Apichatpong Weerasethakul, mestre tailandês e um dos grandes nomes do cinema na atualidade, que também acredita no uso das películas de 16 milímetros como forma de sobrevivência de uma tradição cinematográfica em extinção.

Quanto às películas, é uma obra que utiliza a celuloide não somente como um elemento meramente estético, mas explora suas características e texturas relacionando-as com as vivências dos krahô. Trata-se de um uso político e quase espiritual da imagem analógica, algo cada vez mais raro em uma era de nostalgia barata e vazia ou de um digital cuja extrema nitidez cega. Iniciando o filme com uma cena belíssima em uma cachoeira em meio à floresta, os realizadores se aproveitam da forma como as películas de 16 milímetros reagem à luz da Lua, em especial à sua natureza azulada e aos pequenos flares que o luar gera quando é refletido na água. Abel Gance, um dos pioneiros do cinema francês nas décadas primárias da Sétima Arte, dizia que o cinema é a música da luz, e as cenas em que os krahô são retratados à beira da fogueira são belíssimos cantos e melodias. A forma como os grãos da película pipocam no escuro e nas tonalidades da pele e das árvores gera uma radicalidade na imagem que aprofunda ainda mais o teor transcendental do filme, retratando aquelas pessoas não como meros personagens, mas sim como símbolos de uma luta real e de uma existência que, desde o princípio, confunde-se com resistência. E o final, remetendo ao Intendente Sansho, do mestre Kenji Mizoguchi, não poderia ser mais simbólico.

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos é uma obra que se estabelece sobre um pilar linguístico de um cinema muito simples e, portanto, muito eficaz. Busca um realismo cinematográfico que, destacando as vozes e a oralidade de seus intérpretes, remete à ancestralidade de todo um povo e à sua forma de ver um mundo, mesmo que o cinema não possa fazer nada para evitar seu fim. Mas, como disse Aílton Krenak: “⁠minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.”

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