Caléu Moraes: filósofo e arte marcial — fatos e causos de um livro indefinido

Guilherme Mapelli Venturi

O escritor catarinense Caléu Moraes, em grande parte por sua formação em História e especialização em Antropologia Social, é um dos exemplos que produzem na contramão do mercado, procurando sair dos padrões, evitar clichês e falar sobre assuntos descartados por muitos, devido não apenas às possíveis delicadezas, complexidades e polêmicas, mas também às eventuais censuras pelas editoras e/ou próprios leitores, sobretudo na década de 2020, na qual é preciso pisar em ovos para se falar e escrever, pois, quase sempre, a mensagem é distorcida pelo receptor, devido, principalmente, aos seus traumas e suas aversões em relação ao mundo; externando condutas e militâncias, quando não errôneas e desnecessárias, com segundas intenções.

A obra “Schopenhauer e o Kung Fu” é prova disso, ainda mais por ser um romance, de um lado, entre o ficcional e o histórico, em formato estrutural de texto acadêmico, no entanto, a linguagem deixa todo rigor científico para trás. Contudo, nada impede de sê-lo, também, não-ficcional e, ainda, enquadrar-se em outros gêneros literários e tipologias textuais.

Como classificar este Schopenhauer e o Kung Fu? Romance histórico? Ensaio historiográfico? Ficção? Certamente há muitos fatos nesta obra, mas há também o narrador que se imiscui na história, e ele certamente está mais próximo da fantasia do que daquilo que se costuma chamar de “autoficção”.

Havendo a disposição do texto em formato acadêmico, interessam duas observações: a primeira é a ressalva de que, apesar da forma, da estrutura, o conteúdo não é acadêmico, mesmo que muita pesquisa tenha sido realizada para sua produção; a segunda é apenas um pequeno detalhe, a título de informação, relativo à ausência de páginas em algumas citações diretas (o que pelo viés literário, nada interfere; importaria, sim, se fosse, de fato, um texto científico).

Caléu Moraes, escritor catarinense | Foto: Divulgação

O que importa aqui é que Caléu Moraes, com grande erudição, tece uma narrativa deliciosa, com sensibilidade e humor, que nos leva da China imperial aos dias atuais, sempre em busca do seu Santo Graal: teria sido o filósofo de Danzing um praticante da antiga arte marcial?

Pegando rabeira nessas minhas palavras, trago algumas inquietações sobre o papel do crítico-resenhista: por que não mesclar no mesmo texto resumo, resenha e crítica literária; por que não mesclar no mesmo texto Crítica Impressionista, Crítica Marxista, New Criticism; por que não incorporar a minibiografia do autor e adjetivar sua pessoa ou sua obra; por que, nos poucos suplementos que ainda restam, ainda mais quando impressos, quase sempre nos moldes de décadas pretéritas, o espaço cultural é mínimo; aliás, por que havia e, de certa forma, ainda há, a crítica literária de jornal e a crítica literária universitária.

Apesar de os padrões serem indispensáveis para a produção e entendimento das diversas ciências e teorias, também necessitam, com o passar do tempo, de críticas construtivas, de atualizações, de reinvenções.

Assuntos como esse e dezenas de outros, envolvendo a Literatura Literária, a Teoria e a Crítica Literária (de qualquer territorialidade), dariam um livro inteiro, bastante volumoso. Por ora, vale elucidar que os conceitos, ou seja, as teorias, são transcrições formais e escritas do “abstrato”, “dos efeitos finais”, explicando o que já ocorre na sociedade, por meio da relação entre as pessoas, utilizando-se, entre outras ciências, da linguagem verbal e não-verbal. Com isso, mostram-se, de um lado, os processos, os métodos, as metodologias, utilizados para se chegar a tal ponto; do outro, toda evolução e política social, histórica e cultural. Certamente, há exceções, como por exemplo, experimentos químicos e biológicos, nos quais ocorre o inverso; e, ainda, observações pessoais do pesquisador.

Após essa etapa, que é um de seus principais objetivos, quase sempre, ela já não serve para quase nada, pois raramente é revista e contestado por outro acadêmico; atualizada com o passar do tempo e as novas mudanças; poucas vezes têm seus problemas debatidos (e são numerosos), incluindo suas soluções. Mas pelo menos, ainda que menos do que deve, outro dos objetivos elementares é cumprido: servir como material de pesquisa e estudo para novos textos, sempre seguindo esse ciclo.

O título, a princípio, despertando a curiosidade, ao mesmo tempo em que nos faz pensar qual a relação entre o filósofo (ou talvez, até outra pessoa) e a arte marcial, também nos parece desconexa. Será mesmo? De igual maneira, alguns capítulos têm nomes bem interessantes: Jackie Chan e o dentista, O bordel chinês, O Buda que ri, Arthur e Wang, O amigo macaco, Metafísica prática, Um livro inglês. Aliás, eis algumas considerações do próprio autor (ou seria do narrador?) sobre alguns deles:

No entanto, quando escrevi “O bordel chinês” e “O Buda que ri”, pareceu-me que caminhávamos, vocês e eu, por um caminho pelo qual não devíamos seguir. Por quê? Porque não há nada no final… É um beco sem saída. Eu estive lá, afirmo, e não há o que se ver.  (pg. 133)

Quando lemos “O bordel chinês”, sobre as desventuras de três colegas, Zhi Dao, Hong Zaikuan e o jovem Wang e, depois, “O Buda que ri”, um curto relato sobre a história dum jovem Arthur Schopenhauer que buscava uma estatueta sorridente, parece que estamos diante de pequenos episódios de história cultural. (pg. 133)

Caléu Moraes: escritor “múltiplo” | Foto: Editora ,Nauta/Montagem do Jornal Opção

Por outro lado, quando escrevi “Jackie Chan e o dentista”, logo após a escrita dos outros dois primeiros capítulos, fi-lo pela necessidade de costurá-los. Que sentido há em reunir pequenas peças de história cultural quando o que se pretende é, certamente, escrever um romance? (pgs. 133-134)

Ampliando as temáticas abordadas, o autor traz o pré-conceito e o menosprezo quanto às garotas de programa, resultando em preconceito existente até hoje.

Pelo viés histórico, aponta costumes culturais dos povos e artistas da época, sobretudo os hábitos boêmios e explicações sobre a tradicional luta chinesa. Já pelo prisma filosófico, apesar de não se aprofundar nas teorias de Schopenhauer, apresenta parte de sua biografia.

Enquanto romance, se bem que continuando a quebra de protocolos, ou seja, de padrões literários, a obra poderia ser classificada como Ensaio, com pitadas de autobiografia; expõe narrador onisciente, aquele que conta a história, mas, nas raras vezes em que ocorre, dela pouco participa.

Na verdade, a conversa com Jackie Chan e as aventuras do pensador alemão, as agruras do meu pai e o sofrimento dentário são fatos reais. […] O narrador sou eu, de fato. Não há um outro “eu”; isto não é um texto dissertativo. Talvez, quando o comecei, pretendia escrever um livro de história. Fracassei, contudo. É preciso preencher, de quando em vez, uma que outra lacuna nesta história maluca, com exercícios de imaginação. (pg. 134)

O próprio autor, em capítulo específico, explica-nos o que não é o livro, procedimento pouco comum, exceto quando executado no prefácio, posfácio, contracapa ou orelhas; o que, na verdade, nem assim foge à regra, pois é rara a explicação explícita do que a obra é ou não é.

1. Um conjunto de artigos historiográficos independentes […], 2. Um trabalho de não-ficção, o registro mais ou menos longo, da história de Arthur Schopenhauer e suas relações com o kung fu, 3. Um romance sem ficção […], 4.Um perfil! […], 5. Um romance histórico […]. (pgs. 133, 134, 135)

Diferentemente do texto científico, no qual descrições, explicações, comparações, detalhamentos, entre tantas outras características são de extrema necessidade; no texto literário não é obrigação entregar tudo pronto e evidente ao leitor, afinal, um dos objetivos da literatura literária são fazer pensar, trazer mais perguntas e reflexões do que respostas, causar estranhamento e aversão, bem como identificação.

Para saber os nós e o desfecho, não apenas das histórias, mas também, do enredo geral, será possível apenas com a leitura integral da obra; mas para não deixá-lo tão curioso, seguem alguns excertos aleatórios.

a) Zhi Dao irá atrás de mulheres apalermadas que vivam nos distritos do interior. Depois de testá-las, comprará, dos pais miseráveis, as mais inteligentes. (pg. 22)

[…] Então, Wang teve uma ideia. As suas prostitutas seriam contadoras de histórias. Fariam laços invisíveis nas almas dos seus clientes que voltariam dias e dias a fio para descobrir o fim de alguma narrativa.  (pg. 28)

[…] História local de Rehe não detalha quantas meninas o velho maneta recrutou. Tampouco se eram inteligentes. Se julgarmos o sucesso do bar literário de Zhi Dao, que nunca lhe pertenceu, concluímos que as jovens eram espertas. (pg. 31)

Aprendemos que alguém, não se sabe quem, resolveu contar a história de Arthur Schopenhauer, disfarçando-a num conto gótico, O jovem alemão e o vampiro. Digo-o,  baseando-me em evidências; não há, é claro, prova alguma de que Arthur Hauer é Arthur Schopenhauer. (pg. 131)

O leitor encontrará, portanto, muito mais do que um livro de classificação “indefinida”; terá em mãos uma “coletânea” de referências, de temáticas, de fatos históricos, de relatos; de povos, culturas e tradições; uma obra vanguardista que servirá de introdução para o aprofundamento de vários assuntos, auxiliados pelas referências bibliográficas.

Guilherme Mapelli Venturi é beletrista, resenhista, bibliotecário, escritor, revisor, diagramador e gestor da “Nós textos & cia”.

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