Romantismo em tempos de desilusão: Nicholas Ray e o Código Hays

Autor: Diogo  Alves       

Assim como todo e qualquer fenômeno cultural, o surgimento de Hollywood e do cinema estadunidense é inseparável do contexto histórico vivido internamente no país no início do século XX. Desde a obsessão de Thomas Edison pelo controle de suas patentes até sua disputa com empresários que buscavam uma nova forma de investir, a história da Sétima Arte na parte norte da América é, inevitavelmente, uma história de disputas econômicas e corridas por inovação tecnológica.

Com a chegada desses empresários e a busca pelo desbravamento de até então uma forma barata de entretenimento para as classes mais baixas, uma série de plantações de laranjas à costa leste dos Estados Unidos se tornou o grande polo produtor de cinema da história. Em Los Angeles, os vaudevilles, pequenos teatros dominados pelos franceses, munidos das criações dos irmãos Lumiére, logo viriam a dar espaço para algo um pouco mais coeso, linguístico e inerentemente americano. Nascia uma Metrópoles, ainda que um pouco distinta da imaginada por Fritz Lang.

Apadrinhado pelos empresários devido aos seus ótimos curtas-metragens e atento às criações cinematográficas mundiais, possibilitadas pelo fato do cinematógrafo, criação dos Lumiére, não ter sido patenteada, mas sim amplamente fabricada e vendida, D. W. Griffith passa a trabalhar em seu longa-metragem fatalmente mais conhecido. Partindo da aglutinação de suas próprias inventividades linguísticas com as de outros cineastas ao redor do globo, bem como de referências épicas como os italianos Quo Vadis? e Cabíria, o autor cria o marco inicial da linguagem cinematográfica que até hoje se faz presente nas produções hollywoodianas. Surge assim, em 1915, O Nascimento de uma Nação.

Permanecendo por muitos anos como um marco na cultura estadunidense, trata-se de um filme tão influente que foi exibido à época na Casa Branca pelo presidente Woodrow Wilson, que o classificou como “a história contada por raios”. Além disso, o uso maniqueísta e desumanizador da linguagem cinematográfica por parte de seu diretor foi feito de uma maneira com que a obra se tornasse responsável, em conjunto com as Jim Crow Laws, pelo ressurgimento da Ku Klux Klan e, consequentemente, por massacres públicos e incêndios às habitações da população negra nos Estados Unidos. Tal qual um verdadeiro acontecimento histórico, o contexto da expansão do cinema na América se revela como um evento sombrio e algo muito distante das idealizações quanto a amigáveis disputas entre empresários preocupados com o avanço da arte. Na História, caro leitor, não há espaço para idealismos.

            Com essa pequena anedota histórica, percebe-se que, por se tratar de uma forma de arte que nasceu em pleno capitalismo industrial, a produção cinematográfica é inseparável do lucro e do fazer político que rege as relações econômicas, essencialmente dependentes de exploração e hierarquizações centradas em preconceitos. Existe algo mais simbólico do que Griffith, que lançou A Corner in Wheat e The Unchanging Sea, dois curtas-metragens que abordam luta de classes, alienação e exploração, e que posteriormente passou a vida toda fazendo trabalhos como Intolerância e Lírio Partido para se redimir, seja mais conhecido e estudado por sua abjeta obra? Existe algo mais americano do que Oscar Micheaux, romancista, historiador e primeiro cineasta negro da história, ser tratado como um mero asterisco ainda que tenha produzido mais de 40 filmes de forma independente, entre os quais obras-primas como Dentro de Nossos Portões, de 1920, resposta de um homem negro ao racismo de Nascimento de uma Nação?

            Nesse cenário, buscando limpar a sujeira para debaixo dos panos e manter certos temas distantes da produção cinematográfica e das mãos sujas de sangue dos grandes estúdios do cinema, surge o Código Hays no início dos anos 1930, perdurando quase até os anos 1960. Com o crescimento do público nas salas de cinema, os frequentadores desses espaços deveriam ser mantidos sob cabrestos proporcionados pelos filmes de modo que não pudessem observar, na tela, a realidade que se desenrolava ao seu redor. Assim como a linguagem griffithiana, o código servia para domesticar completamente o olhar e confortar o pensamento do espectador frente ao cinema.

Partindo de uma decisão de 1915 da Suprema Corte que limitava a liberdade temática nos filmes, o Código foi um conjunto de normas comportamentais e temáticas impostas pelo órgão dos distribuidores e produtores quanto às películas, onde temas como sexualidade, drogas, raça e qualquer elemento que pudesse “atender contra a moral pública” seriam removidos das obras. Aprofundou-se uma censura dos estúdios em relação aos seus próprios artistas e, em paralelo a isso, surge o studio system e o star system, mecanismos contratuais que propiciaram uma época de ainda mais exploração às imagens dos astros, lucros exorbitantes, filmes ingênuos e descolados da realidade e salas cada vez mais lotadas. Inaugura-se, assim, a Era de Ouro de Hollywood.

Entretanto, conforme a história se desenrolava em uma outra grande guerra global, os filmes não mais poderiam ser ingênuos. Em tempos em que digladiavam países em lados, com exceção da União Soviética, não tão rivais assim (no Eixo, se encontravam três países que defendiam variações do abjeto nazifascismo e, nos Aliados, dois Estados igualmente imperialistas e genocidas nas periferias do capitalismo [Churchill e a fome em Bengala, os Estados Unidos e suas leis de segregação que inspiraram o próprio Hitler…]), as obras deveriam, ainda que cerceadas pelo Código Hays, estar à altura das sombras de seu tempo. O cinema hollywoodiano deveria também ser uma resposta tanto ao experimentalismo construtivista dos filmes soviéticos de Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Lev Kuleshov e Oleksandr Dovzhenko, que conseguiam alinhar linhas de vanguardas acadêmicas com grandes públicos no país nos primeiros anos pós-Revolução de 1917, quanto às propagandas nazistas de guerra, chefiadas por Leni Riefenstahl na Alemanha.

Para além somente de um zeitgeist de completo niilismo, dois fatores primordiais efervesciam nos Estados Unidos. Nos cinemas, os diretores refugiados da Alemanha nazista, como Fritz Lang e Michael Curtiz, faziam obras que abordavam nas entrelinhas os meandros do código e subvertiam-no, usando-se das sugestões e do subtexto para criar obras profundamente políticas, sombrias e antiguerra, popularizando assim o film noir. Além disso, na política, observava-se o fortalecimento de uma União Soviética que seduzia os trabalhadores de todo o mundo com suas melhores condições de vida, bem-estar e trabalho, um salto produtivo incomparável e um fortalecimento popular exponencial após o fim da 2ª Guerra, onde o exército vermelho atuou como um dos componentes chave para a libertação da Europa do nazismo.

Logo, com esse cenário externo, fortaleceu-se também o anticomunismo na terra do Tio Sam, e os estúdios se prontificaram a auxiliar na propaganda estadunidense de caça às bruxas interna e valorização do estilo de vida americano.As obras saíram de tons como os de Ernst Lubitsch, outro diretor refugiado, em Ninotchka, obra-prima de 1939 em que Greta Garbo interpreta uma espiã soviética e é uma clara sátira a seu estilo de vida nacional, e passaram para a atemorização geral partindo do ponto de que qualquer um pode ser um comunista, em especial a partir do começo dos anos 1950. Tudo isso agindo dentro do Código Hays, que censurava também produções que fossem minimamente divergentes quanto à política hegemônica no país.

Em meio a tantas efervescências políticas e a tempos em que, apesar da propaganda, o estadunidense médio se via cada vez mais distante dos símbolos de heroísmo de seu país, urgia a criação de obras que abordassem figuras excluídas dessa sociedade. Cada vez mais comuns eram os filmes protagonizados por gângsteres, ladrões e espiões amorais, mas devido ao Código, sempre finalizavam com um punitivismo didático e com um final que deixasse estampado para a audiência que qualquer estilo de vida que desafiasse o american way of life não seria tolerado.

Dessa forma, em 1948, Nicholas Ray, que viria a se tornar um dos maiores diretores da história de Hollywood e aquele que melhor representa as nuances e contradições da sociedade americana, lança Amarga Esperança. Adaptação do romance Thieves like Us, de Edward Anderson, centra-se no nascimento do amor entre Bowie (Farley Granger), um assaltante de bancos, e Keechie (Cathy O’Donnell), uma jovem que o acompanha em sua fuga. Para além de um dos melhores filmes de estreia de todos os tempos, trata-se da obra que propulsionou características marcantes ao autor que melhor alinhou os valores estéticos do cinema mudo com referências do cinema moderno, elaborando uma forma econômica e direta de contar histórias em conjunto com um romantismo clássico arraigado à decadência estadunidense.

Se o Código Hays não permitia que fossem abordados elementos de distinções de classes sociais, Nicholas Ray colocava o dinheiro como o catalizador de todos os conflitos de seu filme, bem como um elemento premonitório a alguma tragédia. Se o Código censurava toda e qualquer crítica ao cenário desolador que vivia o país, o autor filmava as faces de uma forma a igualmente ressaltar sua simultânea beleza e desesperança em close-ups exemplares, permanecendo-se atento aos gestos de seus personagens e à forma como aprendem a apaixonar-se um com o outro, sempre ocupando o mesmo espaço da tela, enclausurados em planos conjuntos, ainda que sejam contemporâneos ao romântico mal do século.

A subversão do código é tão latente em Amarga Esperança que, ao invés de Ray nos levar a pensar que aquele estilo de vida não compensa, nos certifica que viver às margens talvez seja suficiente. Suficiente justamente por conta de como, apesar de todas as circunstâncias que cercavam Bowie e Keechie, eles viveram uma utopia tão bela como a vida em si e tão breve como qualquer sinal de possibilidade real em meio ao capitalismo. Talvez, justamente pela força de sua mensagem, o filme foi banido em sua terra natal e somente anos depois passou a circular como um filme B na Europa.

O final, portanto, não poderia ser mais infeliz e condizente, com o fim do amor romântico estampado no rosto de alguém que nunca pode fazer nada além de apaixonar-se. Assim como em Juventude Transviada, Johnny Guitar, Delírio de Loucura e No Silêncio da Noite, Ray nos mostra que, apesar de todos os pesares e de todo o cenário desolador, amar vale tanto a pena quanto lutar por um futuro melhor, ainda que se morra tentando. Afinal de contas, “morrer como um homem é o prêmio da guerra[1]”.


[1] Racionais MC’s – Vida Loka, Pt. 2, referenciada também em outras músicas como Nuvem Negra, de Sant

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