Pesquisadores percorrem 3 mil km do Rio Araguaia em expedição inédita

O rio Araguaia é um dos grandes rios do Brasil, percorrendo um curso de mais de 2600 km desde sua nascente, no sul do Estado de Goiás, até sua união com o rio Tocantins, já na região Norte. Sua área de drenagem engloba 145 sedes municipais, com uma população de pelo menos 1,6 milhões de habitantes.

Mais do que qualquer informação técnica, o rio Araguaia faz parte do imaginário do povo Goiano. “Longas noites, madrugadas / Quanta beleza pra um só lugar / Água limpa a se perder / Não, não volta nunca mais”, como disse Marcelo Barra em sua canção “Araguaia”. Podemos pensar que as duas últimas frases da estrofe de abertura da canção evocam o filósofo grego Heráclito em relação à constante mudança e transformação da natureza. Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, como já dizia o filósofo, é verdade… Mas, ao mesmo tempo, dizer que “não volta nunca mais” em relação ao Araguaia pode ter, infelizmente, outra conotação.

A ligação afetiva dos goianos com o Araguaia não o torna imune às questões urgentes do nosso tempo. Vemos uma significativa degradação do meio ambiente em todo o mundo, seja por fatores mais localizados ligados à uma exploração desenfreada e insustentável dos recursos naturais seja por efeitos em escala global, como as mudanças que temos visto no clima da Terra. Nesse sentido, houve recentemente uma série de reportagens sobre a redução do nível de água do Araguaia e de outros grandes rios do Brasil, com enormes consequências negativas, diretas e indiretas, para toda a sociedade. Os mais afetados são sempre as populações mais próximas, que muitas vezes dependem desses rios para sua subsistência, e esses ambientes naturais estão sendo cada vez mais degradados e em uma velocidade cada dia maior, trazendo o senso de urgência de medidas para reduzir os distúrbios e mitigar esses efeitos.

Araguaia Vivo 2030 | Foto: Rodrigo Queiroz / TWRA

Para que possamos tomar boas decisões sobre como conservar esses ambientes, precisamos antes de tudo entendê-los, em suas diferentes dimensões e considerando toda a sua complexidade, bem como as implicações sociais e econômicas da degradação em curso. Nesse sentido, começamos no segundo semestre de 2023 o programa de pesquisa e desenvolvimento sustentável “Araguaia Vivo 2030”, uma parceria entre a “Aliança Tropical de Pesquisa da Água” (“Tropical Water Research Alliance”, a TWRA) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), contando também com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio de outros programas e projetos associados, incluindo o Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em “Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade” e o Programa de Pesquisa em Biodiversidade (“PPBio Araguaia”).

O programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG tem por objetivo levantar informações sobre os múltiplos aspectos ambientais e socioeconômicos da região do Araguaia, utilizando metodologias e abordagens inovadoras que permitam uma avaliação integrada da situação do rio, a fim de propor soluções e estratégias para sua conservação e uso sustentável. Procura-se também estreitar a interação e a comunicação com os tomadores de decisão, gestores, empresários, agricultores e a sociedade como um todo, trazendo-os para o processo de construção de um programa participativo, dirimindo assim os conflitos e pacificando as ações visando o bem comum, que é a preservação dos serviços ecossistêmicos do Rio Araguaia para as gerações futuras.

O programa “Araguaia Vivo 2030” envolve muitos pesquisadores e estudantes de diversas universidades de Goiás e de outros Estados do Brasil, trabalhando de forma integrada em projetos de pesquisa e extensão nas áreas de biodiversidade, recursos hídricos, turismo, educação ambiental, socioeconomia, geodiversidade e muitos outros tópicos, sendo também importante para que possamos capacitar cada vez melhor nossos jovens para entender os problemas ambientais na região. Atualmente, uma expedição está percorrendo mais de 3000 km do Rio Araguaia e seus principais afluentes, coletaando dados biológicos e ambientais em cerca de 150 localidades durante quase 30 dias (aliás, acompanhem tudo em tempo real em nossas redes sociais, @araguaiavivo). Teremos muitas outras atividades e ações nos próximos 3 anos. Claro, o programa “Araguaia Vivo 2030” não está sozinho, se integrando a inúmeras outras iniciativas e projetos de órgãos governamentais, Universidades e ONGs que procuram conhecer melhor o rio e, a partir desse conhecimento, propor as melhores soluções para o desenvolvimento sustentável da região, permitindo que possamos continuar a usufruir desse recurso natural tão importantes em tantos aspectos.

Estamos falando de desenvolvimento sustentável na região do rio Araguaia, mas é importante ressaltar que há, nessa ideia, uma concepção subliminar importante em relação à conservação da natureza, que muitos podem estranhar em um primeiro momento. Podemos entender melhor isso pensando em como conectar os termos “conservação” (ou “preservação”, da natureza) e “desenvolvimento” (estamos falando aqui de crescimento econômico, preferencialmente pensando no bem-estar da sociedade). Há algumas décadas, quando o movimento conservacionista começou a ganhar força e começamos a perceber o impacto que estávamos causando no planeta, a ideia inicial era pensar em “Conservação OU Desenvolvimento”. Seria, assim, preciso escolher entre as duas ideias, com dois futuros potenciais distintos, já que haveria um conflito inerente entre as ações de conservar e desenvolver. Percebeu-se rapidamente que, se é assim (ou seja, se há mesmo um conflito inevitável), infelizmente a conservação vai “perder” a disputa, já que no sistema capitalista que rege a nossa sociedade de consumo no início do século XXI o imediatismo econômico é muito forte. Passou-se então a pensar de uma forma ligeiramente diferente, e começou-se a falar em “Conservação E Desenvolvimento”, ou seja, devemos de alguma forma equilibrar essas duas ações, temos que desenvolver estratégias nas quais seja possível ao mesmo tempo conservar a natureza sem restringir ou frear o desenvolvimento econômico. Foi mais ou menos nessa época, em meados dos anos 2000, que nosso grupo de pesquisa na Universidade Federal de Goiás começou a estudar esse tema, explorando modelos matemáticos e computacionais que permitissem fazer um planejamento regional otimizado, aplicando-os à conservação da biodiversidade no Cerrado e em Goiás (por exemplo, achando em que locais seria mais eficiente criar uma nova reserva ou unidade de conservação, ou estabelecer programas de restauração de ambientes naturais, sem prejudicar a produção agrícola ou as atividades de pecuária, por exemplo).

Rio Araguaia | Foto: Rodrigo Queiroz / TWRA

Com certeza essas ideias foram (e ainda são) importantes e avançamos muitos desde aquela época em obter dados melhores e desenvolver novos métodos para fazer o planejamento regional, mas ainda assim, na prática os resultados não são tão efetivos quanto gostaríamos, por diversas razões…Os interesses econômicos e políticos continuam sendo muito fortes e raramente levam em consideração as consequências em médio ou longo prazo dos impactos gerados por essas atividades econômicas, sem um planejamento racional e equilibrado para o uso dos recursos naturais, recursos estes que se tornam cada vez mais escassos à medida que nos aproximamos dos chamados “limites planetários”, em várias dimensões. Ou seja, o componente de “conservação” na equação continuou, na prática, “perdendo a corrida”, apesar da mudança de narrativa…

Entretanto, cada vez mais estamos percebendo uma aceleração das consequências da degradação que estamos promovendo no meio ambiente, e agora parece que as pessoas estão começando a perceber isso mais claramente. Vemos cada vez mais desastres ambientais, poluição fora de controle, desmatamento ilegal, aumento na frequência de eventos catastróficos como tempestades, furacões, e ondas de calor cada vez mais intensas… Precisamos, mais uma vez, entender melhor os problemas causados por isso e sua origem. Precisamos mostrar para toda a sociedade, especialmente para os políticos, empresários, gestores e tomadores de decisão, que a degradação da natureza não é benéfica para ninguém.

O ponto é que, para manter o desenvolvimento socioeconômico, nós PRECISAMOS da natureza o mais preservada possível… Não temos condições de manter, por exemplo, os vários serviços ecossistêmicos sem conservar pelo menos em parte os componentes ambientais mais importantes e vamos ter enormes prejuízos econômicos se não conseguirmos estabelecer um modelo de desenvolvimento sustentável dos recursos naturais que precisamos. Ou seja, nossa narrativa agora ligando os dois termos deveria ser “Conservação PARA o Desenvolvimento”! E isso é muito claro quando pensamos, por exemplo, nos recursos hídricos, o que nos leva de volta à questão do Araguaia que queremos para 2030! Todos precisam estar conscientes disso e entender que, apenas com um conhecimento científico bem estruturado e organizado, vamos ser capazes de encontrar soluções adequadas para todos esses problemas tão complexos. Não sabemos se tudo isso será suficiente para reverter o curso atual da degradação ambiental, mas parece que é nossa única saída… Assim, ao mesmo tempo, além da compreensão racional podemos e devemos evocar nossa ligação emocional com a natureza, e com o rio Araguaia no caso de Goiás, para nos ajudar nessa tarefa. Sem dúvida, algo muito importante se quisermos honrar os versos da canção… “Sonho sonhos que já estão em mim / Sinto a vida que eu levo aqui / Não esqueço nunca mais”.

Mariana Pires de Campos Telles – Professora da PUC Goiás e da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenadora geral do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA;

Ludgero Cardoso Galli Veira – Professor da Universidade de Brasília (UnB), e vice coordenador do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA

José Alexandre Felizola Diniz Filho – Professor da UFG e coordenador científico do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA

José Francisco Gonçalves Junior – Professor da UnB, coordenador de governança e planejamento do Programa “Araguaia Vivo 2030” e presidente da TWRA-Brasil

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