Governo dá selo de ‘integridade’ a empresas relacionadas a violações ambientais

Como é possível empresas agrícolas envolvidas com denúncias de desmatamento ilegal, trabalho escravo e ameaças a comunidades tradicionais serem consideradas íntegras e sustentáveis? E ainda serem reconhecidas publicamente como exemplo de gestão?

A resposta está no Selo Mais Integridade, premiação concedida pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) em parceria com associações do agronegócio e outras entidades públicas e privadas. 

Apesar da intenção de coroar boas práticas no setor, o histórico de empresas agraciadas e as características do comitê que homologa as premiadas suscitam dúvidas.

Entre as ganhadoras do selo estão empresas suspeitas de violações a direitos humanos, como a Agrícola Xingu, e de más práticas trabalhistas e ambientais, como Marfrig, Bunge e Amaggi. Esta última tem entre seus sócios o ex-ministro da Agricultura Blairo Amaggi, que assinou o decreto criador do prêmio. 

Prêmios entregues na cerimônia de fevereiro de 2023, na sede da Apex, em Brasília (Foto: Divulgação/Guilherme Martimon/MAPA)

“O Brasil pode até ter um selo para separar o joio do trigo nesse setor, mas com entidades independentes na organização”, opina o engenheiro Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Barreto critica a participação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) no comitê responsável por escolher as empresas premiadas. Para ele, trata-se de um conflito de interesses que compromete a premiação.

Isso porque a CNA e a CNI defendem os interesses econômicos do agronegócio em tribunais superiores, órgãos do Executivo Federal e no Congresso Nacional. Não teriam a isenção necessária, portanto, para avaliar as empresas que elas próprias representam. 

Essas entidades financiam estudos, contribuem com projetos de lei e até auxiliam parlamentares a defenderem temas controversos ou em conflito com ambientalistas e setores do próprio governo.

São exemplos disso a constante atuação pela flexibilização da legislação ambiental, disputas tributárias, o esforço pela criação do chamado “marco temporal” das terras indígenas e o lobby pela ampliação do uso de agrotóxicos.

A participação dessas instituições na gestão do selo é algo que “merece dúvida”, avalia o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV) e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).

“O agronegócio é muito heterogêneo em matéria trabalhista e ambiental. Não acho fora de propósito o ministério ter mecanismos para incentivar e valorizar práticas adequadas. Mas a participação de representantes empresariais [na seleção das premiadas] afeta a qualidade do prêmio. Se o valor disso é dar confiabilidade, precisa modernizar a composição [do comitê gestor]”, diz. 

CNA e CNI foram questionadas pela Repórter Brasil sobre as críticas, mas não responderam.

Ex-ministro Blairo Maggi (ao centro), durante a primeira cerimônia de entrega do prêmio, em 2019 (Foto: Divulgação/Mapa)

De Maggi para Amaggi

O Selo Mais Integridade foi criado em 2017 durante o governo Michel Temer, na gestão do então ministro Blairo Maggi, um dos maiores sojeiros e pecuaristas do país. A honraria é concedida a companhias que “reconhecidamente desenvolvem boas práticas de integridade, ética, responsabilidade social e sustentabilidade ambiental”, segundo o regulamento.

Embora a premiação tenha caráter estatal – sendo gerida, financiada e concedida pelo ministério –, o comitê gestor conta com mais entidades privadas (7) do que públicas (5).

Além de CNA e CNI, entre as privadas estão a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) – uma espécie de CNA das cooperativas –, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a entidade Alliance for Integrity, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e o Instituto Rede Brasil do Pacto Global.

Do lado público estão o próprio Ministério da Agricultura, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Controladoria-Geral da União (CGU).

Para conquistar o Mais Integridade, a empresa ou cooperativa deve apresentar uma série de declarações e comprovantes que atestem sua integridade sob três enfoques: “anticorrupção”, “trabalhista” e de “sustentabilidade”.

A empresa deve comprovar que possui programa de integridade (compliance), código de ética e conduta, canais de denúncia efetivos e treinamentos para promover a integridade. É exigido o comprometimento da alta administração da empresa com as práticas anticorrupção.

O regulamento exige ainda que os candidatos não estejam relacionados na “lista suja do trabalho escravo”, tenham “certidão negativa” para crimes ambientais, fiscais e contra a saúde pública e um “nada consta” para infrações relacionadas à exploração do trabalho infantil.

Ao conquistar o selo pela primeira vez (selo verde), a empresa pode usar o logotipo da certificação na publicidade de sua marca, nas redes sociais e em publicações internas ou externas. Conquistar a distinção pelo segundo ano consecutivo (selo amarelo) permite imprimi-lo na embalagem de produtos.

Em cinco edições até agora (2018 a 2022), foram distribuídos 91 selos – alguns deles para empresas envolvidas em polêmicas socioambientais ou trabalhistas. 

Dois anos após Maggi deixar o ministério, a Amaggi, empresa do ex-ministro, conquistou o selo pela primeira vez. Foi em 2020, ano das queimadas no Pantanal retratadas em imagens que correram o mundo. Na época, a Repórter Brasil revelou que parte do fogo teve origem em fazendas de pecuaristas que vendiam gado para o grupo Amaggi, entre outras firmas. A empresa declarou à época que suspendeu os fornecedores identificados.

A Amaggi renovou o selo para 2021 e 2022, ano em que a Repórter Brasil denunciou que a empresa comprou soja de diversas fazendas no Mato Grosso que desmataram a Amazônia e o Cerrado.

Embora a pecuária seja a atividade que mais desmata a Amazônia, a entidade que representa o setor foi reconhecida pelo Mapa como “Associação Parceira do Selo Mais Integridade” (Foto: Piero Locatelli/Repórter Brasil)

Embaraços

Segundo maior frigorífico do Brasil, a Marfrig coleciona denúncias de problemas socioambientais. Por ter comprado gado produzido dentro de terra indígena e áreas ilegalmente desmatadas, por exemplo, acabou excluída da lista de fornecedores da Nestlé. Na França, quatro bancos foram denunciados por manterem relações com a marca, cuja cadeia de fornecedores esteve associada até com trabalho escravo. 

Em fevereiro de 2022, diante de pressão de mais de 200 organizações, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) negou um pedido de empréstimo de US$ 43 milhões à empresa devido aos riscos ambientais relacionados às suas atividades. 

Os embaraços relacionados à Marfrig produziram desconfianças e restrições comerciais fora do país. Mas não o suficiente para impedir a conquista do Mais Integridade em 2021. O reconhecimento ocorreu poucos meses após o Ministério do Trabalho divulgar a lista suja do trabalho escravo, na qual figurava um pecuarista fornecedor da Marfrig. No ano seguinte, a Marfrig conquistou o selo amarelo, poucos meses após uma nova lista suja da escravidão incluir o nome de outro fornecedor da empresa. 

A Marfrig se defende de parte dos episódios no exterior que afetam seu caixa e depõem contra sua reputação e advoga pela legitimidade das honrarias recebidas (confira aqui).  

Denúncias de desmatamento ilegal de vegetação nativa e expansão irregular pelo oeste da Bahia também não impediram a Agrícola Xingu de ser premiada pelo Mapa mais de uma vez.

A companhia está em uma disputa judicial de território com comunidades de fecho de pasto – povo tradicional que usa métodos próprios de agricultura e subsistência. O caso está em análise pela Justiça, conforme denúncia feita pela Repórter Brasil em outubro de 2022.

Apesar desse histórico, a empresa recebeu o selo pela primeira vez em 2019, conquistando no ano seguinte o selo amarelo, que vale por dois anos e foi renovado em 2022, com validade até 2024.

Procurada, a Agrícola Xingu não respondeu.

‘Compromisso ético’

Embora reconheça que “a possibilidade de um conflito de interesse é uma preocupação legítima” no arcabouço do Mais Integridade, o Ministério da Agricultura argumenta que “a presença de parceiros do Mapa” no Comitê Gestor da premiação proporciona uma “abordagem multifacetada” que é “projetada para evitar qualquer viés ou favorecimento”.

À Repórter Brasil, a pasta afirmou que os riscos de conflito são reduzidos porque o ministério “promove, de forma separada, as funções de formulação de políticas agropecuárias, fiscalização do setor e gestão do Selo Mais Integridade”. 

“É importante ressaltar que a concessão do Selo é baseada em critérios estritos e transparentes, que visam a avaliar não apenas a conformidade legal, mas também o compromisso ético das empresas em relação a práticas ambientalmente sustentáveis, respeito aos direitos humanos e responsabilidade social”, afirmou. 

Em relação aos selos entregues à Marfrig, apesar do histórico de notícias desabonadoras relacionadas ao frigorífico, o Ministério da Agricultura afirmou que a designação “foi baseada na defesa da presunção de inocência”.

“Foi oferecida à empresa o direito ao contraditório face à possibilidade de reprovação e a empresa argumentou, de maneira consistente, que nenhum dos processos existentes transitou em julgado, e, portanto, a empresa deveria ser considerada presumidamente inocente, conforme o princípio constitucional da presunção de inocência”, diz um trecho da resposta. 

“A empresa também questionou a validade das notícias relacionadas a parceiros de negócios e alegou que as denúncias foram baseadas em jurisdição estrangeira não são aplicáveis no contexto brasileiro, evidenciando a importância de considerar o alcance territorial e legal das acusações”, completou.

A Marfrig refutou a hipótese de conflito de interesses nos selos recebidos ressaltando “a colegialidade” do Comitê Gestor. “Ao adotar uma abordagem colegiada, várias vozes e perspectivas são consideradas no momento de tomar uma decisão. A diversidade, respeitabilidade e colegialidade das decisões proferidas conferem, ao Comitê Gestor, neutralidade na avaliação das empresas participantes”, argumentou. 

Em relação ao mérito das acusações, a empresa afirmou que “não compactua com práticas de desmatamento, trabalho forçado ou qualquer violação de direitos humanos, bem como com exploração de terras indígenas e territórios quilombolas”. 

“As alegações referentes a compra ilegal dentro de Terra Indígena atribuídas à companhia não refletem a realidade da atuação da Marfrig, que trabalha para garantir a sustentabilidade e a preservação ambiental em suas operações e cadeia de fornecimento”, prosseguiu. 

O frigorífico afirmou ainda que “mantém uma rigorosa política de compra de animais e um protocolo com critérios socioambientais e procedimentos que são pré-requisitos para homologação de seus fornecedores de animais”. Segundo a empresa, “qualquer fazenda que possua inconformidade com os compromissos da companhia é imediatamente bloqueada para fornecimento de animais para a Marfrig”. 

Já a CGU comentou que “a atividade de fomento promovida pelo Selo Mais Integridade é complementar à atuação fiscalizatória da pasta [Mapa]. A sinergia entre o fomento e a fiscalização é a base capaz de desenvolver um ambiente regulatório robusto e eficiente”.
Na avaliação da corregedoria, não há hipótese de conflito de interesse na participação da CNA e da CNI no Comitê Gestor, pois essas entidades são minoritárias no colegiado. “O voto de um único representante não possui o poder de determinar o resultado de uma deliberação. Dessa forma, não há espaço para a influência unilateral ou conflito de interesse, considerando que as decisões são fundamentadas na coletividade e na ponderação das diferentes visões representadas no comitê”, argumentou. Leia na íntegra todos os posicionamentos.

Edição: Diego Junqueira

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