A banalidade do mal e a cumplicidade do olhar

Um dos mais básicos pilares do pensamento filosófico é a existência de dimensões éticas e morais referentes à existência em sociedade. Enquanto a moral representa hábitos e costumes coletivos, ética diz respeito à adaptabilidade reflexiva da consciência diante da moral, podendo ir ao encontro ou de encontro a ela a depender da situação. Ao longo de todo o cotidiano histórico, ética e moral se digladiam, muito por conta de que, na majoritária parcela das situações, os defensores da moral são as pessoas mais antiéticas presentes em todo o globo. E como o cinema é uma das formas de pensamento filosófico, os domínios da Sétima Arte não estão alheios a esse debate.

Desde pavorosos debates morais cinco séculos atrasados sobre a necessidade do uso da nudez no cinema em pleno século XXI (ora, caro leitor, se o artista se deixar levar pelo teor de utilidade em sua produção, nenhum filme, livro, série ou pintura jamais será feito) até a linguagem cinematográfica como um campo sedutor para a antiética, discute-se sobre o papel do diretor não somente como artista, mas também como pensador. Como esquecer que não somente Jean-Luc Godard dizia que um traveling é uma escolha ética, mas também que Jacques Rivette condenou efusivamente Gillo Pontecorvo pelo uso desse mesmo movimento de câmera em Kapò, filme sobre uma mulher judia enviada a um campo de concentração? Dirigir um filme é inevitavelmente direcionar e enviesar o olhar de milhares de pessoas para um tema de uma forma específica e, logo, requer ética e responsabilidade.

Ética e lucro, entretanto, podem caminhar juntos? O cinema, arte inerentemente industrial, e seus produtores estão mais preocupados com seus bolsos enchendo ou com serem histórico e eticamente responsáveis ao retratarem uma catástrofe monstruosa e humana? Creio que a existência e ampla premiação a filmes abomináveis como A Vida é Bela, o Menino do Pijama Listrado, entre outros, já é prova o suficiente que, quando se quer ganhar dinheiro, mais vale cuspir na história de um genocídio através de um olhar divertido e redutivo (quase negacionista) e desumanizador do que algo propriamente desconfortante. Melhor ainda quando é puramente um uso espetacularizado do sofrimento. Choro vende, ainda mais quando dele brotam a borbotões lágrimas europeias e brancas.

Dessa forma, quando busca-se retratar artisticamente um acontecimento tão triste, lamentável e feito pela faceta mais cruel do ser humano, há de se ter o mínimo de consciência de como olhar para isso. Nesse ponto, em especial nessa escolha em específico, reside o melhor de A Zona de Interesse. Premiado em Cannes, indicado ao Oscar 2024 e dirigido pelo ótimo Jonathan Glazer, a obra não faz qualquer questão de relembrar o espectador sobre as generalidades de que o filme se trata. Espera-se que aquele que aceite o desafio de assistir à obra tenha plena consciência do que foi o Holocausto, o que era Auschwitz, o contexto histórico da Segunda Guerra Mundial e tenha consciência acerca da bestialidade dos nazistas.

Mais do que isso, trata-se de um filme sobre especificidades, pequenos gestos e persistências que permitiram com que seres humanos vivessem bucólica e comumente impunes diante de uma das maiores e mais sádicas tragédias dos tempos recentes. A inserção do conflito como sendo a forçada saída da família nazista de Auschwitz para que o pai pudesse escalar ainda mais no exército do reich também é de uma precisa crueldade que só nos demonstra o quão fútil é o valor da vida humana a depender da nacionalidade, etnia, sexualidade, credo religioso, entre outros. A depender de alguns desses fatores, sequer se merece o nobre título de intitular-se ser humano. Acompanhar imageticamente não os agredidos, mas sim os agressores, é uma fenomenal escolha para nos mostrar que não somente eram pessoas reais (monstruosas, abomináveis, inefavelmente condenáveis, e ainda assim seres humanos), mas também para nos colocar na posição de agressores que vivem normalmente enquanto, ao nosso redor, seres humanos são massacrados.

Digo imageticamente pois, em termos sonoros, a obra é completamente diferente. Robert Bresson, em suas Notas para o Cinematógrafo, dizia que enquanto a imagem é o domínio do surreal, do onírico abstrato, é o som quem retoma o teor de real para o filme. Enquanto a fotografia aqui se utiliza de um esquema imagético quase de câmera de segurança, com a simultaneidade gravada das ações, alta profundidade de campo, lentes grande-angulares e a luz estritamente natural gerando imagens que remetem a uma performance artística museográfica e asséptica, a humanização presente na construção sonora sempre se certifica de nos relembrar que aquele distanciamento bucólico e chapado da imagem possui uma razão profundamente sombria e dolorosa.

Não há qualquer espaço para fuga desse simulacro demasiadamente real, e qualquer sinal de humanidade ou está nos sons do outro lado dos muros e dos arames farpados, ou então é fotografado em negativo, em uma escolha visual primorosa. Não há espaço para bondade lá, e quando ela existe, deve ser representada como a antítese da imagem convencional. Trata-se de um cotidiano abominável justamente por ser profundamente simples, e por nos lembrar que catástrofes como essas, onde assassinos escolhem roupas das vítimas para suas esposas e brinquedos para seus filhos, não só podem voltar a acontecer como já, nesse exato momento, acontecem diante de nossos próprios olhos. A cena do casaco de pele sendo escolhido pela abominável personagem de Sandra Hüller é um tapa na cara e um soco no estômago quando vemos um exército genocida, atualmente, posando para fotos com lingeries de mulheres estupradas, brinquedos de crianças assassinadas e bengalas de idosos chacinados por um povo eleito. A História infelizmente está condenada a repetir-se, e a violência é demasiadamente banal e espetacularizada em nosso dia a dia para que algo possa ser feito.

 Por mais que o filme seja primoroso em suas escolhas basilares, é justamente no fortalecimento de sua dinâmica cotidiana que os problemas passam a se tornar mais presentes. As escolhas da decupagem mostram-se muito repetitivas mesmo se tratando de um filme sobre cotidiano (quase toda cena é resolvida em plano geral, contraplano também mais aberto e um plano mais próximo), e o teor repetitivo das ótimas atuações, que acabam, na mesma forma que funcionando para mostrar-nos aqueles personagens como personas que poderiam facilmente ser qualquer outra pessoa, tornam-se também elementos dissonantes do meio para o final e abraçam um sadismo que vai totalmente de encontro a toda a ética representativa básica que o filme nos mostrava.

E o que dizer da cena final e das “metáforas”, então? Glazer é um ótimo diretor justamente por como, desde o início de sua carreira, estabelece obras com uma consciência estética muito pessoal e sem torná-las cosméticas, tratando sempre sobre tabus e personagens em situações sensíveis de forma muito humana, como nos mais “convencionais” Sexy Beast e Birth, ainda que sua abordagem seja muitas vezes, como no extraordinário Sob a Pele, a mais performática, antinaturalista e distante possível. O que passa na cabeça de alguém como ele achar de bom gosto colocar metáforas com porcos e o forno da bruxa de João e Maria em um filme sobre o Holocausto? Um dos grandes méritos da obra é justamente não ser didática, mas justamente em suas buscas por uma transcendência moralista (o que por si só já é um absurdo) que as coisas se tornam um beabá e sádicas em um nível quase tão ruim como as obras que citei anteriormente.

Li alguns comentários e críticas que acusavam o filme de ser uma negação do Holocausto e acho isso de uma falta de noção e analfabetismo cinematográfico abissais, especialmente ao compararmos A Zona de Interesse com outras obras sobre o genocídio. Ainda mais por ser um filme sobre especificidades e pequenos gestos, e não sobre closes em rostos e lágrimas. Trata-se, inclusive, de um olhar muito mais desconfortável sobre um tema que precisa ser retratado de forma desconfortável, ainda mais quando nós somos colocados no lugar dos agressores, visto que somos contemporâneos a inúmeros genocídios e fazemos muito pouco ou rigorosamente nada (isso quando algumas pessoas não prestam solidariedade aos genocidas, saem com suas bandeiras nas ruas, etc.).

É inacreditável, entretanto, como as imagens reais e atuais de Auschwitz são usadas não como uma forma de relembrar-nos da tragédia e da banalidade do mal, mas sim de dar uma certa moral redentora a um personagem abominável e literalmente um dos comandantes das forças de Hitler. Um vômito cinematográfico não era tão falso quanto o de um dos chefes de esquadrões de morte na Indonésia em O Ato de Matar, de Joshua Oppenheimer. Por mais que possa ser a reação de alguém percebendo que todo esse simulacro frio e asséptico é, na verdade, algo demasiadamente real, nada justifica um uso tacanhamente mesquinho de uma montagem alternada. O Código Hays, mesmo em um filme de “fora de Hollywood” e quase seis décadas após seu fim, ainda vive.

Dessa forma, Zona de Interesse é um dos filmes recentes mais bem sucedidos moralmente falando sobre a tragédia que foi o Holocausto, justamente por como subverte nossa noção básica de protagonismo e coloca-nos na mais desconfortável das posições. Quase a totalidade daqueles que se intitulam cidadãos de bem na atualidade estariam do lado de fora dos muros, vivendo normalmente em meio aos gritos e à fumaça no céu. É na dimensão ética, todavia, que residem as problemáticas da obra, justamente por conta de muitas das decisões amarradas de seu realizador, também pela forma como se limitou a alguns dos conceitos mais ficcionais e estadunidenses do cinema.

Na vida real genocidas raramente são punidos, não tem catarses espirituais e muito menos vomitam quando percebem as consequências de suas ações. Por mais amoral que pareça, manter um personagem abominável impune em uma obra de arte pode ser, a depender das circunstâncias, a coisa mais ética a se fazer. A banalidade do mal reside justamente no quão cúmplice um artista se propõe a ser, e o fato da arte ser o domínio das reflexões humanas faz com que, enquanto artistas, o lema de jamais perdoar para jamais esquecer deva ser bem compreendido. Lamentavelmente, enquanto sociedade, esse lema foi abandonado há muito, tanto que tal tragédia se repete diante de nossos próprios olhos, e escolhemos direcionar nossa vista para as flores de nosso jardim e não para as vidas ceifadas fora dos muros e arames farpados de nossos confortabilíssimos simulacros.

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