Mulheres na ciência: “Medidas são necessárias, mas não podem ser pontuais”, avalia pesquisadora

A representatividade das mulheres na Academia Brasileira de Ciências é de apenas 14%, enquanto uma pesquisa internacional abrangendo mais de 500 instituições revela que elas ocupam 23% dos cargos de professores titulares. Pensando nessa disparidade de gênero na ciência, o Governo de Goiás abriu 2 editais para incentivar a promoção de projetos que fortaleçam a participação de meninas e mulheres nas áreas de Ciências Exatas, Engenharias e Computação (veja ao final).

“Essas medidas políticas públicas no geral são muito importantes para tentar corrigir essas disparidades, mas elas não podem ser tão pontuais, como a gente vem acompanhando, e também tão apartadas de discussão”, pontua Juara Castro, doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Ela explica que a academia reflete um machismo histórico presente na sociedade, mas que o ideal seria a promoção de políticas públicas mais efetivas.

Essa diferência de gênero reflete questões profundas, como a sobrecarga da maternidade, a falta de estímulo e financiamento durante esse período e a discriminação por parte de alguns membros do sexo masculino. Além disso, há uma história de falta de reconhecimento para o trabalho das mulheres.

Ao longo dos séculos, as descobertas e contribuições das mulheres tendem a ser menos valorizadas ou atribuídas aos homens. Esse fenômeno, conhecido como “Efeito Matilda”, é um recorte de gênero de uma tendência mais ampla na academia, que é dar maior destaque às descobertas de pesquisadores já renomados.

Em contrapartida, há o “Efeito Mateus”, que descreve a tendência de cientistas renomados receberem mais créditos por descobertas do que os pesquisadores menos conhecidos. Não faltam exemplos: o brasileiro César Lattes, que dá nome à plataforma de currículos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), descobriu a partícula subatômica méson pi em 1947, mas quem levou o Nobel pelo feito foi seu chefe, Cecil Powell.

Desde 1901, o prêmio Nobel foi concedido a 934 pessoas. Destas, 57 são mulheres, o que equivale a 6,1% dos laureados. A maioria das laureadas se concentra nas categorias de Literatura e Paz. Tratando-se apenas de ciência, não dá nem duas dúzias: foram 4 em Física, 7 em Química (contando Marie Curie, que foi laureada nas duas categorias), e 12 em Medicina. As mulheres, porém, são minoria no Nobel não porque não participaram ativamente da ciência no último século, mas porque não eram reconhecidas pelos trabalhos nos quais se envolveram.

Para Ana Carolina Coelho (FH/UFG), esses editais são excelentes exemplos de incentivos para o aumento da presença de mulheres na ciência. “Uma vez que nós já existimos, mas a luta para sermos valorizadas, em termos paritários, é fundamental. Para uma sociedade equitativa e justa é preciso que muitas outras iniciativas deste tipo floresçam nos próximos anos em todo Brasil”.

Ana Carolina Coelho (FH/UFG). | Foto: Arquivo

Dificuldades de gênero

Juara Castro explica que a ciência, a academia e as universidades –instituições promotoras do desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil– não estão imunes às questões sociais. “Situações de misoginia, machismo e os mais diversos tipos de abuso, tanto sexual quanto psicológico, acabam se repetindo dentro desse espaço acadêmico. Até mesmo a questão da cultura do estupro”.

Sobre as disparidades de gênero, a professora pontua que, de modo geral, a carreira é tida como algo natural para homens. Eles começam os estudos, em seguida entram na universidade e logo começam a trabalhar. “É tudo muito fluido, sem nenhum tensionamento de escolha”. Já para as mulheres, essa questão da carreira é sempre atravessada, não só por escolhas, mas por abdicações.

“Se você for mulher e tiver uma carreira, dizem que vai ser mais difícil para você se casar, ter um filho e, possivelmente, ir para longe da família. Então, como é que vai ser isso? O que acaba acontecendo na maioria das vezes? Você tem uma dupla jornada e, consequentemente, uma invisibilizarão de tudo que você faz”, reflete Juara.

Juara Castro (FIC/UFG). | Foto: Arquivo

Ela exemplifica com um exemplo cotidiano de um homem cientista que é bolsa produtividade no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). “Se a gente for perguntar um pouco sobre a vida doméstica dele, provavelmente não é ele quem faz a comida, lava a própria roupa ou faz compras no supermercado. Existe toda uma rede de trabalho invisível que faz com que esse cara tenha uma carreira”.

Enquanto isso, mulheres acumulam funções e, na maioria das vezes, ainda precisam abdicar de questões afetivas. “Isso ao meu ver é muito violento e também adoecedor para que elas tenham suas carreiras e façam suas pesquisas”.

Para ela, dentro das exatas, das engenharias e da computação, ainda existe uma defasagem enorme entre homens e mulheres que ingressam e conseguem seguir na carreira. “É necessário não apenas a criação das políticas, mas também a promoção de um debate social para que as pessoas entendam o porquê das mulheres ainda não serem destaque dentro da ciência”.  

“A maioria das mesas redondas e palestras são ministradas por homens, sobretudo dentro dessas áreas do conhecimento das engenharias, das exatas e das biológicas”. Ela ressaltada que dentro das humanidades o percentual de mulheres é maior, mas os homens continuam sendo as referências. “Quem nós citamos quando estamos falando de pesquisa dentro de todas as áreas?”, questionou a pesquisadora.

Mais de 70% dos materiais produzidos no Brasil são de autoria feminina, de acordo com a Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). Os dados contrastam com a porcentagem de ocupação feminina na Academia Brasileira de Ciência (14%) e com a quantidade de bolsas Produtividade em Pesquisa (PQ) destinada a mulheres (36% do total). Apenas 15% das bolsistas do CNPq são negras, de acordo com dados de 2016. E apenas 3% das bolsistas de Produtividade de Pesquisa (PQ) são mulheres negras.

Um relatório da Unesco estima que 28,8% dos pesquisadores do mundo são mulheres. No Brasil, por outro lado, elas chegam quase à paridade, ficando entre 45% e 55% do total. Elas também já são maioria nos cursos de graduação e pós-graduação do País.

Sobre as principais dificuldades em ser mulher e cientista no Brasil, Ana Carolina diz que se dão desde o acesso, permanência e incentivo à produção de conhecimento no país, até o rompimento da lógica machista de “quem” faz ciência e pode estar nesses espaços de saberes. “É, essencialmente, uma disputa de poderes que tende a descredibilizar as mulheres e privilegiar homens”.

“Essa luta por reconhecimento é geral na História e as diferenças entre homens e mulheres existem em todas as áreas públicas, uma vez que, historicamente vivemos em um país cujas leis entendiam as mulheres como dependentes e incapazes, como por exemplo, até recentemente as mulheres não podiam trabalhar sem a autorização dos maridos. Ainda há muito a se avançar, mas as perspectivas, felizmente, são promissoras”, pontua Ana Carolina.

Investimento em pesquisa

Pensando em um contexto geral, além da Universidade Federal de Goiás, mas englobando também as instituições de ensino privadas e a Universidade Estadual de Goiás, ela comenta que o investimento de R$ 2 mi ainda é muito baixo frente a demanda do Estado de Goiás.

“Eu acho que o Governo de Goiás, sobretudo a partir da FAPEG (Fundação de Apoio à Pesquisa), cumpre um papel social muito importante, que é louvável pelo diálogo que tenta estabelecer com as universidades no geral”. As Fundações de Apoio são instituições criadas com a finalidade de dar apoio a projetos de pesquisa, ensino, extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico, de interesse das instituições federais de ensino superior (IFEs) e também das instituições de pesquisa.

Para Juara, no entanto, não se trata de falar de um governo específico, mas do que a educação e a ciência significam para a sociedade. “A gente precisa entender cada vez mais que a educação é investimento e não gasto”.

Ela destaca a importância da FAPEG, fundação da qual já foi bolsista, e posteriormente realizou a pós-graduação. Segundo ela, a instituição se destaca no lançamento de editais, de bolsas técnicas, de pesquisa e na preocupação com o estudante, desde a graduação até um futuro pós-doutorado. Para além da formação, há um investimento também em intercâmbio com outros países.

Luciana Dias (FIC/UFG). | Foto: Arquivo

Luciana Dias explica que medidas como a dos editais para as mulheres são fundamentais e indicam um avanço significativo na democratização e equidade de gênero na produção do conhecimento científico. Ela destaca, porém, a necessidade de estender as iniciativas para as demais áreas do conhecimento.

“É muito importante a gente se atentar que ciência não se produz somente a partir da medicina, biologia, matemática, engenharia, química, física, neurociência ou das ciências do espaço. Ciência se produz também a partir das ciências sociais, antropologia, história, arqueologia e geografia”, diz a pesquisadora. Na área de humanidades, ela destaca a importância de se repensar as formas de incentivo.

Para ela, é fundamental também ampliar a concepção do que é ciência. “Se a gente entende ciência como um campo do e um conhecimento sistematizado, adquirido, socializado a partir de aplicação de métodos específicos, que são os métodos científicos, a gente deve considerar que ciência se produz também a partir das humanidades As mulheres que produzem antropologia, por exemplo, hoje no estado de Goiás, como é o meu caso, eu sou uma antropóloga, elas têm recebido pouca ou nenhuma forma de incentivo.

Após a posse do presidente Lula, a comunidade acadêmica e científica brasileira nutre expectativas otimistas em relação ao futuro da educação e da ciência no país. Observadores destacam o histórico sensível do presidente em relação a esses setores, tanto em seus mandatos anteriores quanto na escolha de ministros e ministras com experiência e comprometimento nessas áreas.

A retomada de ministérios importantes ligados à inovação, ciência e educação, bem como a nomeação de figuras proeminentes do meio acadêmico e científico para cargos-chave, sinalizam um compromisso renovado com o desenvolvimento científico e educacional do Brasil.

Diante dos desafios enfrentados durante a pandemia, que impactaram negativamente a ciência e a educação, há uma expectativa de que o governo Lula possa liderar uma recuperação gradual, promovendo o fortalecimento da universidade, a promoção da diversidade e a melhoria da qualidade de vida para todos os brasileiros, especialmente para grupos historicamente marginalizados.

Editais abertos

Podem participar do chamamento pesquisadoras vinculadas a Instituição de Ensino Superior (IES) ou Instituição de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICTI) no Estado.Os editais foram lançados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg) dentro do Goianas na Ciência e Inovação, programa da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti) que tem o objetivo de garantir equidade de gênero e encorajar meninas e mulheres a seguirem carreiras nestas áreas, ainda muito masculinizadas. Os editais completos podem ser acessados pelo site da Fapeg. O prazo para submissão dos projetos, para ambos os editais, é até às 17h do dia 29 de março.

O primeiro edital (07/2024) oferece auxílio financeiro a pesquisas científicas e tecnológicas que sejam coordenadas por mulheres e que incentivem a participação de jovens pesquisadoras nas áreas de Ciências Exatas, Engenharias e Computação. As proponentes devem possuir vínculo empregatício com IES ou ICTI sediada em Goiás (pública ou privada, sem fins lucrativos). Para este edital, são R$ 1,2 milhão disponíveis, que serão distribuídos entre até 17 propostas que receberão auxílio de até R$ 100 mil cada.

Já o segundo edital (08/2024) é voltado para auxílio a Projetos de Extensão nas áreas Ciências Exatas, Engenharias e Computação, a serem desenvolvidos também sob a responsabilidade de uma pesquisadora-coordenadora. O recurso total é de R$ 800 mil e até 11 propostas poderão ser selecionadas. Podem participar grupos de pesquisa consolidados (com até um ano de atuação) e em fase de consolidação (com menos de um ano).

Os valores de auxílio de até R$ 100 mil poderão ser utilizados para Bolsas de Iniciação Científica para estudantes matriculadas em cursos de graduação e Bolsas de Iniciação Científica Júnior para estudantes do ensino fundamental, médio e profissional da Rede Pública. As bolsas poderão ser concedidas por até 24 meses, em qualquer uma das faixas. O objetivo do chamamento é encontrar iniciativas que promovam a atração e fixação de meninas nessas áreas do conhecimento.

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