Memórias de Herondes Cezar contém olhar terno sobre pessoas e paisagens

Carlos Magno de Melo

A ficção brasileira, no geral, deixa uma lacuna entre dois períodos da vida no Brasil. O Brasil essencialmente rural e o Brasil urbano. Este interregno permanece desde Guimarães Rosa, para ficar no ápice. Desde Bernardo Élis, outro expoente em Goiás e também no Brasil. Ambos dentro de suas visões de sertão.

O Brasil sofreu uma mudança dramática com a urbanização rápida desde os anos 50. A nossa Literatura deixa escapar as nuances dessa modificação demográfica e suas consequências na vida de quem viveu o momento da transição do campo para a cidade. Do rural para o industrial. Um tema pouco explorado.

Em suas memórias, “Becape da Memória”, Herondes Cezar de Siqueira abre janelas para escritores entrarem em vãos esquecidos de uma época de transição. Um menino de uma fazenda depois e antes de espigões de uma pequena cidade de Goiás, Piracanjuba, criado em meio de família com tios fazendeiros, que traziam e levavam a produção em carros de bois. Vida de roça.

A mudança para a cidade em busca da escola. Os novos conhecimentos. Novos descobrimentos. O trabalho no armazém do tio. O surgimento de visões mais abrangentes. As dificuldades. As conquistas e o início da confecção da teia de amparo. Pessoas que o ajudaram na busca de oportunidades. O trabalho no banco. A escola mais avançada.

Herondes descobriu o cinema. Trechos que remetem ao encanto do Cine Paradiso. A vida lhe seguiu menos ao estilo John Ford do que ao jeito dos diretores franceses. A teia de amigos o levou à cidade grande. Brasília. Novos amigos. Novas oportunidades. Nunca arroubos. Metódico.

O arroubo possível: a viagem a Nova York. O encantamento do menino da fazenda de comovente nome Bom Jardim dos Dias, com a Grande Maçã. Visão de Turista.

Um escritor que deixa que se emane um profundo e comovente carinho com as pessoas com as quais teve a oportunidade de conviver. Por muito ou pouco tempo de convívio. Olhou para elas com olhos de amor. Um olhar terno sobre a paisagem. Sabe que seguiu pegadas. É cônscio de que precisa registrar as que fez, por mais discretas que pensa que tenham sido.

O memorialista termina sua escrita com apresentação de textos publicados em jornal. São críticas de cinema. Herondes Cezar diz que a vida dele foi de coadjuvante. Pode ter sido. Mas mostrou aos escritores que é possível fazer literatura de um tempo de transição. Lançou o desafio. Já é muito. Se mais não fora.

Carlos Magno de Melo é escritor e médico. O texto acima é o prefácio do livro de Herondes Cezar, escritor e crítico de cinema que morreu em 2024, aos 79 anos.

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