Uma análise mínima da poesia de Manoel de Barros no livro Matéria de Poesia

Solemar Oliveira

Especial para o Jornal Opção

“Matéria de Poesia” (Alfaguara, 96 páginas), de Manoel de Barros (1916-2014), é genial. Barro não é a substância da qual Manoel foi feito, o poeta cunhou-se de toda palavra que sai da “boca” da criação. E de suas improváveis combinações.

Subverter verbos, desutilizar adjetivos, superutilizar versos, inventar coisas para as palavras e coisar as palavras com as coisas. A Literatura como matéria prima para a Literatura. Uma engenharia complicada de palavras ou uma geometria complexa do texto. O livro é sobre tudo isso e mais. Também é sobre quase nada de que tenhamos conhecimento ou entendimento: “Saudade me urinava na perna”.

O livro é inédito, no sentido mais amplo da palavra. Estamos observando a poesia surrealista brasileira em um de seus partos primordiais. Seu nascimento, a partir de um túnel multiondulado, curvilíneo e enviesado, hiperornado com muros e molduras feitos de palavras e suprassentidos, foi um exercício intrincando de domínio da língua e absoluta loucura literária. Afinal, “todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia”.

Li “Matéria de Poesia” e não sei há em Manoel de Barros mais pedras, ou mais sapos, ou mais borboletas, ou mais pássaros. Há todos. Um jogo! Uma brincadeira estilística que se fortaleceu e ficou séria. Séria do tamanho da poesia brasileira. Séria a ponto de fazer Manoel de Barros emular a si mesmo, para manter o efeito deslumbrador. A consequência foi — contraditória — distanciar-se de si mesmo.

Há, por conta da peculiaridade e do inusitado do verso, imitadores. Muitos, de fato. Mas veja, não é apenas comparar pedra com pássaro ou água com borboleta. Eu mesmo arrisquei imitar o gênio mato-grossense e tive meus 15 segundos (tempo que se leva para ler o poema) de fama. Aí está:

No passeio, de manhã, sapos catavam hinos escolares,

Ordenavam noções que não entendi.

Sou criança demais para hastear emoções.

Não há em “Matéria de Poesia” listagem de palavras, disposta à esmo, à revelia do sentido, formando uma poesia pífia e pseudo-erudita. Há o emprego fantástico e a renovação do entendimento. Há, ainda, uma captura do simples, do aparentemente inútil, uma busca para si, uma tomada radical, uma apropriação do contra-sentido, único e, ao mesmo tempo, amplo. Para Manoel de Barros “o que é bom para o lixo é bom para poesia”.

Água, pedra, ave, terra, barro, barros. Há um Manoel tecendo versos nas coisas. Um homem chamado Manoel teceu versos sobre as coisas. Há um bocado de homem em sua voz. E um tipo de pássaro que não voa, cutucando o vazio de seu depois. “Matéria de Poesia” pode ser enquadrado como um exercício divertido ou uma diversão dirigida. Para entender, é simples: primeiro ler imerso, claro! A seguir, guiar-se pelas descrições do próprio poeta, sobre sua poesia. Ele disse:

Eu só faço travessuras com palavras.

Não sei nem me pular quanto mais obstáculos.

Solemar Oliveira é escritor, crítico literário e professor universitário. É colaborador do Jornal Opção.

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