Corações, mentes e mãos: a luta ideológica segundo Aldo Arantes

João Cezar de Castro Rocha

Corações

O novo livro de Aldo Arantes, “Domínio das Mentes”, aprofunda o trabalho pioneiro do militante de muitas décadas, do deputado constituinte de 1988, do lutador infatigável, sempre disposto a batalhar pelos ideais nos quais acredita com a determinação que definiu seu perfil e suas ações.

No campo progressista e nas correntes da esquerda democrática, Aldo Arantes destaca-se pela aguda percepção da centralidade, em seus termos, “da luta ideológica” no mundo contemporâneo. Poucos entenderam como ele a habilidade com que a extrema direita transnacional, com o propósito de chegar ao poder político por meio de eleições livres, se apropriou dos instrumentos tornados disponíveis pelo universo digital e pelo mundo das redes sociais. Isto é, a extrema direita aprendeu, e muito bem, a conquistar os corações de parcelas consideráveis do eleitorado, sobretudo entre os mais jovens. Constatação desoladora, porém obrigatória para que se possa encarar o verdadeiro desafio. Ademais, é imperioso que se reconheça a força do adversário. Caso contrário, será difícil evitar o erro mais comum: “A subestimação dessa dimensão da luta, pela esquerda brasileira, facilitou o crescimento e vitória eleitoral da direita neofacista. E explica a continuidade da força do bolsonarismo mesmo após tudo que o ex-presidente fez”.

A fim de apreender o fenômeno em sua totalidade, Aldo Arantes deu um primeiro passo na organização do volume “Reconstruir a Democracia”, cujo subtítulo é a mais completa tradução de um dos eixos fundamentais do livro que ora se lança: “União de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica”. Coletânea generosa, de ambição interdisciplinar, e que reúne da neurociência à ciência política, da análise do discurso ao exame antropológico do presente, da tecnologia da informação à operação do algoritmo no cotidiano planetário. Arantes organizou um panorama abrangente para o entendimento do dilema atual: “No Brasil a extrema direita conquistou uma expressiva hegemonia de suas ideias, atingindo amplos segmentos da sociedade, garantiu a vitória eleitoral de Bolsonaro e organizou uma corrente política de extrema direita, o bolsonarismo”. Nesse sentido, Domínio das mentes é sua mais recente contribuição para o enfrentamento da luta ideológica.

Aldo Arantes: ex-presidente da UNE e ex-deputado federal | Foto: Reprodução

Passo a passo — portanto.

Afinal, a lição de Antonio Machado nunca foi tão urgente: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.

Mentes

A consulta ao sumário deste livro esclarece a estratégia e a singularidade do autor.

De um lado, um mergulho vertical nas origens do problema da luta ideológica, assim como sua inserção no contexto do capitalismo contemporâneo em suas mutações estruturalmente associadas às inovações propiciadas pelo advento do universo digital. O capítulo V, “Nova forma de capitalismo”, é o exemplo acabado do método adotado por Aldo Arantes. Em cada capítulo, o autor remonta às causas primeiras do fenômeno, a fim de caracterizar os desdobramentos da atual conjuntura, incluindo em sua reflexão o “papel da psicologia social e da neurociência na luta ideológica”. Nas palavras do autor, “O controle das mentes é exercido por estímulos, positivos ou negativos, realizados através dos neurônios que liberam a dopamina”. Lição das coisas: Carlos Drummond de Andrade leitor de Karl Marx: primeiro entender o mundo da forma a mais completa possível. Mas, claro está, não para a escrita de livros acadêmicos, porém para transformar o mundo que finalmente se decifrou.

De outro lado, uma intervenção concreta no presente com base nos estudos oferecidos neste livro. O capítulo VIII, “Plano pragmático de luta ideológica”, não deve ser lido como um apêndice, como se fosse um mero adendo ao conteúdo do livro. Pelo contrário, no fundo, “Domínio das Mentes” só adquire pleno sentido nesse último capítulo. Em outras palavras, a reflexão rigorosa não se opõe obrigatoriamente à ação política, o estudo diligente não paralisa a mobilização da sociedade. A urgência da escrita salta aos olhos; é como se as palavras desejassem passar do papel às ruas, do gabinete às passeatas. “A praça é do povo”, recordou o poeta condoreiro, assim como o discurso é das avenidas, completa o deputado constituinte.

Vale a pena destacar a estrutura agônica do capítulo VIII, autêntica logomaquia, redigido na forma de uma série de duelos verbais. Mas não se pense num conjunto hipotético de oposições, como se estivéssemos diante do modelo medieval da disputatio. Nada mais distante do objetivo de Aldo Arantes, pois os pares de oposição remetem à circunstância bélica do presente globalizado. O índice de contrários equivale a uma enciclopédia das estratégias discursivas da extrema direita transnacional. O primeiro termo esclarece a posição progressista, a ser empregada contra as falácias da extrema direita. Vejamos somente o primeiro par: “Desenvolvimento com distribuição de riqueza versus Juros altos com concentração da renda”. Estrutura agônica que deve conduzir da leitura às ruas.

Da teoria à prática — portanto.

Práxis — como um dia se disse.

Mãos

Recentemente o papa Francisco adicionou com inteligência uma variável à famosa equação: “Conquistar corações e mentes”. Ou seja, nos termos do livro de Aldo Arantes, conquistar corações para dominar mentes, lançando mão do afeto como instrumento político para a tomada do poder.

Nada de novo sob o sol? Não exatamente: o papa Francisco reinventou a fórmula com argúcia: “Conquistar corações, mentes e mãos”. As mãos ocupadas todos os dias, o dia todo; mãos reféns das redes sociais, dependentes por vezes em níveis patológicos do universo digital. O alcance dessa transformação pode ser mais bem avaliado por meio de uma comparação. Em 1605, Miguel de Cervantes inaugurou o romance moderno principiando pela identificação da materialidade de um novo e poderoso meio de comunicação. As palavras iniciais do “Prólogo” de Dom Quixote são decisivas: “Desocupado leitor: podes crer, sem juramentos, que eu gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais formoso, o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar”.

Papa Francisco, líder da Igreja Católica. (Foto: Reprodução)
Papa Francisco, líder da Igreja Católica | Foto: Reprodução

Eis o contexto permitido pela tecnologia dos tipos móveis; o texto impresso, na forma do livro, estimulava a leitura silenciosa; a leitora, pela primeira vez, sozinha em sua casa, às voltas com a própria imaginação. As consequências dessa constelação ajudaram a criar a literatura moderna, pois transferiu uma responsabilidade até então inédita na constituição do sentido da narrativa ao ato de leitura:

(…) estás em tua casa, onde és senhor, como o rei de seus tributos, e sabes que cada um pensa o que bem quiser, ou não se costuma dizer que ‘embaixo do meu manto o rei mato’? Tudo isso te isenta e te deixa livre de todo respeito e obrigação, de modo que podes dizer tudo aquilo que pensares da história, sem medo de que te caluniem pelo mal ou te premiem pelo bem que disseres dela.

Se não estivesse “desocupado”, esse modelo de leitor não seria possível. Aqui, percebe-se a agudeza da observação do papa Francisco, “conquistar as mãos”, especialmente das gerações mais jovens. Esse é o passo indispensável para estar à altura da mais importante luta ideológica desde a Guerra Fria.

Não se trata de exagero: as mãos permanentemente ocupadas com telas nos mais diversos suportes acenam para a realidade da guerra cultural nas décadas iniciais do século XXI. Pertence ao passado um tipo de operação centralizada e controlada por poderosas agências estatais. A luta ideológica é travada hoje em dia sem cessar e, o que é ainda mais importante, potencialmente ela é levada adiante por qualquer pessoa que disponha de um aparelho conectado à internet. Tornada multicêntrica e difusa, a luta ideológica é por isso mesmo a cada dia mais decisiva na definição da paisagem política contemporânea.

Domínio das mentes é um livro-manifesto, um ensaio-convite-à-ação.

Antes que seja tarde – convém acrescentar.

Fiel à formação marxista, Aldo Arantes buscou inspiração na já aludida XI das “Teses sobre Feuerbach”: não é suficiente analisar a realidade. É necessário transformá-la. Por isso sugiro um plano de luta ideológica democrático.

Hora, pois, de abrir o livro. Ao final da leitura, encontro marcado?

Nota do Jornal Opção

“Corações, mentes e mãos: a luta ideológica segundo Aldo Arantes” é o prefácio do livro “Domínio das Mentes — Do Golpe Militar à Guerra Cultural” (Kotter Editorial, 263 páginas), do ex-deputado federal Aldo Arantes. O autor é mestre em ciências políticas pela UnB. O prefácio está sendo publicado com autorização do autor do livro.

Serviço/Lançamento

O livro “Domínio das Mentes”, de Aldo Arantes, será lançado na quinta-feira, 21, às 18h30, em Goiânia. Local: Museu Antropológico da UFG.

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