O jornalista Alex Solnik escreve livro kafkiano sobre sua prisão nos tempos da ditadura

A novela “A Metamorfose”, do tcheco Franz Kafka, é citada no livro “O Dia Em Que Conheci Brilhante Ustra” (Geração, 157 páginas), do jornalista e escritor ucraniano-brasileiro Alex Solnik, de 75 anos.

A citação a Kafka é precisa, mas seria mais adequado a menção ao romance “O Processo”, que tem mais a ver com a história narrada, muito bem narrada — fica-se com a impressão de que se trata de um romance-crônicas —, por Alex Solnik.

Em 1973, sob o governo de Emilio Garrastazu Médici, quando a ditadura ainda era cruenta — militares e agentes e delegados da Polícia Civil torturavam e matavam com frequência —, Alex Solnik foi preso por homens do Exército, funcionários do Estado, e ficou 45 dias na cadeia. Por quê? Por nada. Só porque uma pessoa disse que o conhecia.

Mal foi interrogado e, quando o liberaram, não lhe deram nenhuma explicação. Portanto, mais kafkiano impossível. Alex Solnik é o Josef K. dos trópicos (Kafka assinala: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”).

O mundo kafkiano também “habita” o Brasil | Foto: Reprodução

Porém, meio século depois, Alex Solnik decidiu contar sua história, que também é a história de O. R., guerrilheiro que, torturadíssimo, não delatava ninguém e nem mesmo abria seu nome para os homens do Estado, funcionários públicos pagos pelos cidadãos. “O Dia Em Que Conheci Brilhante Ustra” é, de alguma maneira, um livro-vingador. Uma recuperação de um passado sombrio que não morreu e nem vai morrer (eis o golpismo bolsonarista, que é filho da turma de Emilio Médici).

Iniciado e terminado o livro, não sabemos quem é O. R. O que se sabe é que era membro de um grupo de esquerda que ativava a guerrilha urbana.

A narrativa de Alex Solnik não grita, não impreca. Mas os fatos, narrados com sensibilidade e delicadeza, gritam por si e imprecam contra a vilania dos torturadores, homens do Estado.

Fala-se muito em “porões”, o que sugere que a tortura e, por vezes, a matança não eram feitas em instituições oficiais, públicas. Ora, se eram praticadas por homens públicos, regiamente pagos pelo Estado — quer dizer, pelos contribuintes —, não se pode falar em porões. Porque, na medida em que eram ocupados por agentes públicos, por funcionários dos governos federal e, às vezes, dos Estados (como o delegado Sérgio Fleury, do Dops paulista), tornavam-se localidades oficiais, públicas, portanto não eram “porões”.

Brilhante Ustra: um dos reis da tortura no DOI-Codi de São Paulo | Foto: Reprodução

A tortura e a matança eram institucionalizadas. Portanto, independentemente de onde ocorriam, eram feitas por servidores públicos. Eram eles que “oficializavam” os territórios do terror. Então, insistindo, chegou a hora de parar de falar em “porões”. Cada casa onde se torturava e se matava se tornava quartel ou delegacia. Era menos clandestina do que se costuma pensar. O Estado, com seus homens sádicos ou não, matavam em nome do quê mesmo? Da sociedade, da paz social? A barbárie pública, patrocinada pelo Estado, é a pior de todas. Porque o setor público tem de ser, acima de quaisquer outros, civilizatório.

Torturador do DOI-Codi citava Hitler

Era uma vez. Não. Não se trata de uma fábula, mas, sim, é uma história kafkiana. Num certo 4 de setembro de 1973, militares — a turma do DOI-Codi — foram à casa de Alex Solnik e o prenderam. Não havia nenhum documento formal da Justiça. Nenhum papel. Mas três publicações o “incriminaram”: “Maravilhas do Conto Russo”, “Revista da Civilização Brasileira e um jornal do DCE-Livre da Universidade de São Paulo (USP). Pronto: um comunista e, ainda por cima, ucraniano, que, na época, era “soviético”. Era um jovenzinho de 24 anos — magro, baixinho e inofensivo.

Alex Solnik era leitor de Federico García Lorca e Fernando Pessoa. Marx era considerado “muito chato”.

Encapuzado pelos captores, homens do Estado, um deles disse para um atônito Alex Solnik: “Hitler não terminou o que começou… nós vamos completar o serviço dele”. Os policiais haviam prendido um judeu-“comunista”. Nem era de esquerda. Sua família fugiu para o Brasil ao ser perseguida por comunistas, na Ucrânia. Os Solnik eram democratas.

Alex Solnik: autor de um ótimo testemunho sobre os anos de chumbo | Foto: Reprodução

Levado para o xilindró, uma espécie de galpão, Alex Solnik era xingado de “filho da puta” e os sequestradores “puxavam os pelos” de seu peito. “Deram socos nos meus ombros, na minha cabeça. Não reagi. Até que desistiram.”

Logo Alex Solnik começou a ouvir “gritos terríveis”. Eram os guerrilheiros da esquerda sendo torturados pela máquina de moer gente do governo de Emilio Médici.

Um homem alto e alto magro ameaçou-o: “Se não disser a verdade, olha o que vou colocar nos seus dedos”. O torturador exibiu “uma caixa preta, com dois fios descascados e uma manivela”. O policial era um mestre do choque elétrico.

O interrogador, com a agenda de telefones de Alex Solnik, quis saber quem era Ruth Escobar e Davi da TV Cultura.

Depois de pouco falar, Alex Solnik tentou esclarecer: “Vocês estão cometendo um grande erro. Eu não sou de nenhuma organização política”. Brilhante Ustra contrapôs, bravo: “Você é o Hippie da AP. E nós vamos provar”. O estudante nem sabia o que significava AP (Ação Popular).

Emilio Médici: o chefão da fase mais cruenta da ditadura civil-militar | Foto: Reprodução

Estudante de Cinema na USP, Alex Solnik pertencia, por assim dizer, à “organização” dos que apreciavam álcool e maconha. Mas nada tinha a ver com a guerrilha — com ALN, VPR, VAR-Palmares, AP ou PC do B. Ele era aluno de Paulo Emílio Salles Gomes e Roberto Santos (é hilária a história do professor e diretor de cinema rolando pelo chão, numa briga feroz, com o aluno Aloysio Raulino. Está na página 90. Corra lá).

A história do corajoso guerrilheiro O. R.

Brilhante Ustra levou Alex Solnik para uma cela, onde estava um homem de pouco mais de 30 anos, baixinho (cerca de1,60m). Tratava-se de O. R. O nome do guerrilheiro, altamente corajoso e resistente, não é mencionado em nenhuma parte do livro. Havia sido torturadíssimo e, mesmo assim, não reclamava da vida. Era um profissional da guerrilha. Comunista e, sim, cristão.

Depois de voltar de uma sessão de tortura (praticada no segundo andar), destroçado, O. R. informou a Alex Solnik que os demais prisioneiros, levados a uma sala com espelho, não o reconheceram como integrante de nenhuma organização revolucionária. Era um estranho no ninho, no serpentário dos guerrilheiros.

Os torturadores não davam trégua aos presos. “O. R. voltou para a cela um trapo, parecendo uma folha ao vento e, assim que recuperou um pouco o fôlego, contou que tinha resistido mais uma vez, sem dizer nada, nem seu nome (tinha sete)”, relata Alex Solnik. “Não falo com torturador”, posicionou-se O. R.

Alex Solnik com os pais Borys Solnik e Raquel Davidson, ucranianos | Foto: Arquivo pessoal

Alex Solnik publica no livro uma série de poemas que “escreveu” mentalmente e, quando saiu da cadeia, como se fosse uma Nadiejda Mandelstam, colocou-os no papel.

Como descobriram que Alex Solnik não era militante ou líder de alguma organização revolucionária, portanto nada perigoso, os reis da tortura, senhores da vida e da morte, decidiram informar aos seus pais onde estava preso.

Ao carcereiro Alemão, Alex Solnik disse que, entre as encomendas que faria à família, estavam papel e lápis. Seu objetivo nem era divulgar denúncias, e sim anotar poesias. Veto total ao pedido.

Na primeira visita, a mãe de Alex Solnik levou comida e foi barrada. Não podia. Raquel Davidson armou o maior barraco e os homens do Estado permitiram que o lauto lanche chegasse à cela.

Raquel Davidson “advertiu os caras de que era comida do regime macrobiótico que eu seguia, ordens médicas, e que, se não deixasse de seguir, poderia sofrer consequência terríveis”.

Perspicaz, Raquel Davidson embrulhou a comida num exemplar do “Jornal da Tarde”, no qual Alex Solnik havia trabalhado. Ele ficou contente… “mas minha alegria desapareceu quando li a manchete garrafal e trágica: ‘Allende suicidou-se ontem com um tiro na boca no Palácio de La Moneda’”.

O. R. leu a reportagem e contou ao colega de infortúnio que tinha ligações com guerrilheiros que estavam no Chile. “Mas não vou contar para eles, nem meu nome contei até agora”. O guerrilheiro e o “desbundado”, por assim dizer, deliciaram-se com a comida.

Chico, o hippie que “entregou” Alex Solnik

No 18º dia em que estava na cadeia, Alex Solnik encontra-se com outro preso, de nome Chico. O cineasta-jornalista disse: “Chico, eu não sabia que você era da política”.

Na verdade, era hippie, e não guerrilheiro. Sua irmã e o cunhado eram militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Torturada, com receio de o coração explodir, dada a quantidade de choques elétricos, a hermana abriu seu nome, Chico. Ele não era o hippie da AP nem da ALN. “Era o Chico Paz e Amor.” Mas acabou preso.

Sob um pau federal, Chico, que precisava fornecer ao menos um nome, disse: “Alex Solnik”. Pronto: eis o motivo pelo qual o jovem de 24 anos havia sido preso.

Por sinal, ao dizer que conhecia Davi, o da TV Cultura, Alex Solnik colaborou para sua prisão.

Se Alex Solnik, apesar de preso, não era torturado — a turma do DOI-Codi percebeu, de cara, que ele estava por fora —, O. R. continuava sendo massacrado. “Ele gemia baixinho, estava mais morto do que vivo, parecia ter envelhecido, não conseguia se mexer.”

O. R. havia passado pela Cadeira do Dragão. Na página 79, Alex Solnik detalha como era torturado — destruído — na Cadeira do Dragão. Era terrível. O.R. contou “que nunca tinha passado por uma sessão como aquela”.

Submetido a choques, pauladas e afogamentos, finalmente O. R. revelou seu nome aos brutais homens de Carlos Alberto Brilhante Ustra. Foram nove horas de tortura. E ele só disse o próprio nome.

Engenhoso, O. R. pegou um papel laminado, de cigarro, e, com um fósforo queimado, escreveu: “Eu não estive na reunião na casa do Euclides”. O guerrilheiro enviou doce para a amiga Lúcia (o sobrenome não aparece), também presa, por intermédio do carcereiro Alemão, que não desconfiou.

A libertação do não-guerrilheiro Alex Solnik

Alemão contou a Alex Solnik que, vez ou outra, a turma do Esquadrão da Morte — o delegado Sérgio Paranhos Fleury e o policial Fininho (Ademar Augusto de Oliveira) — aparecia no DOI-Codi. Os dois eram mestres da tortura e do assassinato.

A turma do DOI-Codi, “os caras do segundo andar”, de repente começou a investigar o que Alex Solnik havia ido “fazer em Israel dois anos antes”. Simples: fora visitar o irmão. Mas a paranoia dos homens da ditadura era gigantesca: ele teria a ver com o Mossad? Na verdade, nem sabia onde ficava o Mossad.

Certo dia, apareceram militares fardados — todos do Exército — no “quartel” da tortura. Sinal de que não se tratava de um “porão”, e sim de um local quase-oficial, frequentado por homens de farda verde-oliva.

No 45º dia de prisão, o carcereiro apareceu e disse: “Arruma tuas coisas, você vai mudar de hotel”.

“Me baixou uma tristeza repentina. O que ia ser de mim sem O. R. e o que ia ser de O. R sem a comida de minha mãe e sem os jornais”, lamentou Alex Solnik.
Mas o carcereiro exigiu: “Anda rápido”. Abriu a porta do “presídio” e gritou: “Vá em frente sem olhar para trás”.

Alex Solnik estava livre. Fora preso e solto sem explicações. Cousas da ditadura.

Na rua, chamou um táxi e marchou para sua casa. Sua mãe, ao vê-lo, chamou o marido: “Boris, Boris, o Sacha chegou”.

Os pais ficaram felizes com a chegada do filho caçula. “Não podia dizer que estava tão feliz quanto meus pais, pois, na verdade, estava pensando naqueles que eu deixei lá. (…) Eu deveria estar soltando foguetes, mas não conseguia.”

No quarto, Alex Solnik abriu as latas de filmes e, ufa, a maconha continuava lá. Os homens do DOI-Codi nada descobriram. “Anotei febrilmente os 45 poemas que estavam na minha cabeça, que eu repetia mentalmente para mim mesmo, e depois para O. R., em voz alta, todos os dias para não esquecer”. Óssip Mandelstam (poeta russo, nascido em Varsóvia. A pátria de um bardo é a língua em que escreve) e Nadiejda Mandelstam, lá do Céu ou de qualquer outro lugar, certamente deram um sorriso. Deram? Não sei. Mas, se não deram, porque estão mortos e inermes (mas a poesia e história pessoal permanecem vivas), deveriam dar…

O guerrilheiro O. R. morreu ou sobreviveu? Não sabemos. Alex Solnik decidiu não revelar. Ou não sabe. Era um personagem ficcional, um compósito de vários guerrilheiros? Não parece.

A próxima edição deve incorporar uma pequena revisão: Garcia (García) Lorca, Bol (Bob) Wilson, “enebriado” (inebriado), Maiakovski (Maiakóvski), “subí” (subi). Há outros problemas. Nada graves, porém. Posso repassá-los à editora.

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