{"id":156173,"date":"2025-04-12T21:05:10","date_gmt":"2025-04-13T00:05:10","guid":{"rendered":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/ler\/156173"},"modified":"2025-04-12T21:05:10","modified_gmt":"2025-04-13T00:05:10","slug":"atlas-apresenta-mapas-intelectuais-e-artisticos-de-jorge-luis-borges","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/ler\/156173","title":{"rendered":"Atlas apresenta mapas intelectuais e art\u00edsticos de Jorge Luis Borges"},"content":{"rendered":"
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Edmar Monteiro Filho<\/strong><\/p>\n

Penso na met\u00e1fora que apresenta o mundo como um vasto livro, sendo nossos sentidos e nossa mente os meios de decifr\u00e1-lo. Cada indiv\u00edduo estabelece um foco a partir do qual efetua sua leitura do mundo e \u00e9 com base nessa constata\u00e7\u00e3o que podemos concluir pela infinidade de universos poss\u00edveis. Se, por um lado, podemos pensar numa solid\u00e3o inconcili\u00e1vel de cada ser humano, preso \u00e0 singularidade de sua interpreta\u00e7\u00e3o, podemos tamb\u00e9m imaginar possibilidades de expans\u00e3o constante de nosso universo pessoal, chances de tornar mais complexa e fascinante a leitura que fazemos do livro da vida, desde que estejamos prontos a aceitar novas formas de enxergar.<\/p>\n

Escolho agora dois extremos para refletir acerca dessa met\u00e1fora. Num deles, est\u00e3o o entendimento e o racioc\u00ednio como meios de \u201cler\u201d o mundo. No outro, mais literal, o sentido da vis\u00e3o, meio riqu\u00edssimo para compreender a \u201ccaligrafia\u201d da natureza. Para contemplar ambos, utilizo como ferramenta as ideias do escritor argentino Jorge Luis Borges, expressas no livro \u201cAtlas\u201d (Companhia das Letras, 144 p\u00e1ginas, tradu\u00e7\u00e3o de Heloisa Jahn), o \u00faltimo que publicou em vida.<\/p>\n

Fazendo jus ao seu t\u00edtulo, \u201cAtlas\u201d cont\u00e9m um conjunto de mapas. Mas Borges d\u00e1 a seu atlas o sentido de um cat\u00e1logo de impress\u00f5es das viagens que realizou em seus \u00faltimos anos de vida, ao lado da secret\u00e1ria e posteriormente esposa e herdeira de sua obra, Mar\u00eda Kodama. V\u00edtima de uma cegueira progressiva que o privou completamente da vis\u00e3o por volta dos cinquenta anos de idade, o escritor desenvolveu uma prodigiosa mem\u00f3ria como forma de se preparar para a escurid\u00e3o inevit\u00e1vel. Assim, as notas, poemas, reflex\u00f5es e narrativas que comp\u00f5em o livro s\u00e3o viagens intelectuais que se somam \u00e0s recorda\u00e7\u00f5es de outras viagens, realizadas na juventude. Como contraponto a esses retratos de cenas e lugares que Borges j\u00e1 n\u00e3o pode ver, \u201cAtlas\u201d traz imagens capturadas pela c\u00e2mera fotogr\u00e1fica de Kodama.<\/p>\n

Uma viagem a bordo de um bal\u00e3o, na Calif\u00f3rnia; o peso da pata de um tigre sobre seus ombros, em Luj\u00e1n; a presen\u00e7a palp\u00e1vel da guerra nas pedras de Col\u00f4nia do Sacramento; os sons do mar numa praia na Isl\u00e2ndia; o sabor de um brioche numa boulangerie, em Genebra: as imagens incrivelmente l\u00facidas, n\u00edtidas, criadas por Borges, fazem experimentar a mesma sensa\u00e7\u00e3o descrita por Maria Kodama, que dizia muitas vezes sentir-se cega ao seu lado. O pr\u00f3prio escritor, ao refletir acerca daquilo que possivelmente perdera por obra de sua defici\u00eancia, afirmou: \u201cQuem se conhece melhor que um cego?\u201d<\/p>\n

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Mar\u00eda Kodama l\u00ea para Jorge Luis Borges | Foto: Reprodu\u00e7\u00e3o<\/figcaption><\/figure>\n<\/div>\n

No pequeno texto \u201cGraves em Dey\u00e1\u201d, Borges descreve sua visita ao poeta, romancista e cr\u00edtico brit\u00e2nico Robert Graves, em Mallorca, j\u00e1 velho e bastante doente. Segundo o escritor, ainda que o corpo do amigo siga \u201ccumprindo com seus deveres\u201d, \u201csua alma est\u00e1 sozinha\u201d, uma vez que Graves n\u00e3o ouve, n\u00e3o fala, n\u00e3o v\u00ea. Borges menciona que, enquanto a mulher lhe d\u00e1 de comer, rodeados ambos por filhos, netos e admiradores de todas as partes do mundo, Graves ignora o tempo, elaborando pacientemente sua secreta morte. Penso nos portadores de tantos males que privam o c\u00e9rebro da compreens\u00e3o das informa\u00e7\u00f5es que recebem dos sentidos: sons, imagens, sabores, o toque do vento ou o calor do sol sobre a pele, tanto que se perde e se estraga \u00e0s portas do entendimento, barrado por uma leitura imposs\u00edvel, tantas almas que v\u00e3o se isolando em suas caminhadas rumo ao desconhecido. E penso na alma de Borges, povoada de autores, lugares, datas, aromas, sensa\u00e7\u00f5es diversas, amontoando imagens por tr\u00e1s de seus olhos vazios.<\/p>\n

\u201cAtlas\u201d apresenta alguns dos mapas intelectuais e art\u00edsticos de Borges. Seguindo-os \u00e9 poss\u00edvel percorrer os locais mais visitados pelo escritor em suas reflex\u00f5es, como o labirinto, o tempo, a arte, o mar, a literatura, a guerra, o sonho. Ao lado desses mapas, as paisagens pintadas pelo olhar de Kodama, nas quais um velho escritor cego aparece com frequ\u00eancia, impec\u00e1vel em seus ternos escuros, apoiado em sua bengala, lendo o mundo com uma intensidade que parece superar tudo o que somos capazes com nossos olhos cheios de luzes e nossas mentes repletas de informa\u00e7\u00f5es. No texto \u201cO deserto\u201d, o escritor caminha pr\u00f3ximo \u00e0s pir\u00e2mides do Egito. Em dado momento, abaixa-se e apanha um punhado de areia, que deixa cair alguns metros adiante. Ent\u00e3o, sentencia: \u201cEstou modificando o Saara.\u201d\u00a0<\/p>\n

Edmar Monteiro Filho<\/strong>, escritor e cr\u00edtico liter\u00e1rio, \u00e9 colaborador do Jornal Op\u00e7\u00e3o<\/strong>.<\/p>\n

[E-mail: [email protected]<\/strong>]<\/p>\n

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Edmar Monteiro Filho Penso na met\u00e1fora que apresenta o mundo como um vasto livro, sendo nossos sentidos e nossa mente os meios de decifr\u00e1-lo. Cada indiv\u00edduo estabelece um foco a partir do qual efetua sua leitura do mundo e \u00e9 com base nessa constata\u00e7\u00e3o que podemos concluir pela infinidade de… Continue lendo → <\/span><\/a><\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[1],"tags":[],"class_list":["post-156173","post","type-post","status-publish","format-standard","hentry","category-sem-categoria"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/156173","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=156173"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/156173\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=156173"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=156173"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=156173"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}