{"id":156174,"date":"2025-04-12T21:05:11","date_gmt":"2025-04-13T00:05:11","guid":{"rendered":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/ler\/156174"},"modified":"2025-04-12T21:05:11","modified_gmt":"2025-04-13T00:05:11","slug":"contistas-escrevem-sobre-a-propria-morte-conto-4-de-helverton-baiano","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/ler\/156174","title":{"rendered":"Contistas escrevem sobre a pr\u00f3pria morte. Conto 4 \u2014 de H\u00e9lverton Baiano"},"content":{"rendered":"
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Vou morrer com uma \u201cmiorinha\u201d boa<\/strong><\/p>\n

H\u00e9lverton Baiano<\/strong><\/p>\n

Especial para o Jornal Op\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n

\u2014 E a\u00ed, doutor, o que eu tenho?<\/p>\n

\u2014 Voc\u00ea tem um c\u00e2ncer no intestino.<\/p>\n

\u2014 Qu\u00e3o grave \u00e9 ele?<\/p>\n

\u2014 Toda gravidade inerente ao c\u00e2ncer, mas pode ficar tranquilo que hoje em dia os tratamentos est\u00e3o bem avan\u00e7ados. Uma cirurgia, se\u00e7\u00f5es de quimioterapia e, dependendo das circunst\u00e2ncias, alguma radioterapia tamb\u00e9m. Com os seus 73 anos de idade tem condi\u00e7\u00e3o suficiente de se safar e viver ainda alguns anos \u2014 respondeu, tangendo um elefante em minha loja de lou\u00e7a, tentando aliviar um pouco o impacto seco e avassalador da not\u00edcia.<\/p>\n

\u2014 E se eu n\u00e3o fizer a cirurgia?<\/p>\n

\u2014 Corre o risco de morrer logo e botando fezes pela boca.<\/p>\n

Diante de uma postura t\u00e3o sens\u00edvel, cordata e um argumento amavelmente escatol\u00f3gico, mas, convenhamos, convincente e sensato, resolvi que morreria com alguma dignidade, sem saber ao certo o que era isso.<\/p>\n

J\u00e1 ouvi muita gente falando que \u201cfulano morreu com dignidade\u201d e eu me perguntava o que era essa coisa, sem nunca entender direito.<\/p>\n

Argumentavam que era uma morte assistida, morte boa, sem dor, mesmo vegetando em um hospital por dias, semanas, meses ou anos. Para mim, morrer era algo digno como nascer, com a diferen\u00e7a de que a morte era dolorida, mas s\u00f3 para quem ficava, e o nascimento, justamente o contr\u00e1rio, momento de alegria para todos.<\/p>\n

Depois a vida estiolava, mas ao nascer tudo era festa. Passei a observar que dor tem a ver com dignidade ou a falta dela na morte. Portanto, a pessoa que perdeu a cabe\u00e7a numa batida entre um caminh\u00e3o e um autom\u00f3vel, guilhotinada no sopapo do choque, deve ter morrido com dignidade tamb\u00e9m, pela rapidez e instantaneidade do acontecido.<\/p>\n

No interior onde fui criado, em Correntina, sert\u00e3o da Bahia, h\u00e1 o caso emblem\u00e1tico de um farmac\u00eautico que vendeu um rem\u00e9dio para um senhor da ro\u00e7a, que foi para a cidade em busca de algum conforto aos estertores da esposa que ficara moribunda em casa.<\/p>\n

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\"\"<\/figure>\n<\/div>\n

Depois de duas semanas, o farmac\u00eautico viu o mesmo senhor passando em frente a sua farm\u00e1cia, agora com um distintivo de pano preto amarrado no bra\u00e7o, sinal de luto. Mesmo assim, pra puxar assunto, o farmac\u00eautico perguntou pela esposa e ele informou que ela havia morrido. Sem titubear e querendo mostrar que o rem\u00e9dio que vendia era bom, ele tentou consolar o vi\u00favo:<\/p>\n

\u2014Mas morreu com uma miorinha boa, n\u00e9?!<\/p>\n

\u2014 Como Deus \u00e9 servido, senhor.<\/p>\n

Eu lutava para morrer com uma miorinha boa, que parece seria uma morte indolor. Quando nasci, n\u00e3o sabia de nada e demorou um tempo para ficar um besta mais sabido. E fui me enchendo de bestagens, v\u00edcios, sentimentos v\u00e1rios bons e maus, aprendendo a viver, conhecer algumas coisas, achar que conhecia outras, lutando duro para viver e sobreviver, matando um le\u00e3o por dia e produzindo esses clich\u00eas. Al\u00e9m disso, conviver com gente boa e ruim, desviando de umas e aguentando outras, observando puxa\u00e7\u00e3o de saco e imbecilidades terr\u00edveis e tamb\u00e9m procurando algum humor, porque ningu\u00e9m \u00e9 de ferro e o humano foi feito para errar muito tamb\u00e9m, ainda bem, propagando e agu\u00e7ando o ego\u00edsmo de querer viver eternamente. E pensa numa gente, como eu, que nasce para ser besta e tenta aprimorar isso o tempo todo!!!<\/p>\n

A morte \u00e9 um lugar indefinido, totalmente inusitado, estranho e do qual ningu\u00e9m sabe patavina. Deixar de existir na terra \u00e9 morrer para muitos dos que ficaram, cair no esquecimento, perder status aos poucos, se um dia teve algum, morrer aos poucos com os amigos e parentes que v\u00e3o morrendo, e a\u00ed n\u00e3o ficar\u00e1 ningu\u00e9m mais para contar a hist\u00f3ria, lembrar de voc\u00ea, a natureza lhe comendo e acabando com o resto que voc\u00ea deixou, ter a certeza de que seu gado vai morrer, porque n\u00e3o ter\u00e1 mais o olho do dono pra engordar e cuidar.<\/p>\n

Eu, com meu c\u00e2ncer no intestino, cacei jeito de pensar em como morrer direito, tentando organizar as coisas, mesmo sendo na vida toda um desorganizado contumaz, provocar a positividade e a esperan\u00e7a nas pessoas que gostam de mim mais de perto e para as quais posso fazer alguma falta com minha falta. Para driblar a mulher da foice, fiz uso de artif\u00edcios usados na inf\u00e2ncia e juventude, meizinhas muitas, raizadas tantas, garrafadas a dar com pau, \u00e0s vezes tudo isso misturado, na inten\u00e7\u00e3o de alongar a longarina da tribuzana matadeira, para ver se ela me esquecia um pouco, me botasse duma banda, at\u00e9 eu ajeitar um jeito de consertar as tripas e me safar do sono eterno. Fiquei uns seis meses nessa labuta de esperan\u00e7a incans\u00e1vel, melhorando um pouco e piorando outro tanto, at\u00e9 que bateu o medo de amanhecer algum dia botando bosta pela boca.<\/p>\n

Sem nunca ter quebrado um osso sequer, tirando de letra uma covid e uma gonorreia, usufruindo de doses di\u00e1rias contra a press\u00e3o alta e para controle de colesterol e hipotireoidismo, me exercitando todo dia, sem nunca ter sido internado em hospital e exercendo minha hipocondria controlada com ra\u00edzes e rem\u00e9dios n\u00e3o muito ofensivos e vitaminas, vivia com a impress\u00e3o de que n\u00e3o sairia vivo de qualquer cirurgia que fosse fazer. E, nesse caso, seria uma morte digna, dign\u00edssima, porque nem saberia se estava morrendo. Achava essa uma morte das melhores, porque estava anestesiado e nem faria for\u00e7a para n\u00e3o morrer, como vi gente fazendo, sem qualquer \u00eaxito.<\/p>\n

Todo dia eu me preparo para a morte e, aos 73 anos de idade, vou vivendo um dia de cada vez, porque a velhice provoca uma esculhamba\u00e7\u00e3o com a sa\u00fade da pessoa, que do nada aparece uma ziquizira qualquer e voc\u00ea precisa viver se desviando. Tanto \u00e9 assim que a morte \u00e9 presen\u00e7a constante de minha cria\u00e7\u00e3o po\u00e9tica, como nesse excerto que retirei do meu livro \u201cPara\u00edso Profano\u201d:<\/p>\n

Morrer \u00e9 t\u00e3o repentino<\/p>\n

\u00c0s vezes \u00e9 mais que um s\u00e9culo<\/p>\n

Morrer \u00e9 a eternidade<\/p>\n

Do que \u00e9 vento e mist\u00e9rio.<\/p>\n

Dos poetas e prosadores que morreram, ficou a dor de saber que eles n\u00e3o mais poder\u00e3o produzir a poesia e a prosa que tanto os impulsionavam e alegravam. A morte traz em si uma crueldade sincera e sem cura. Vou ao cadafalso da cirurgia que terei de fazer, mesmo a contragosto. Talvez nem fa\u00e7a e fico torcendo para que a met\u00e1stase abrevie tudo isso. No entanto, a cirurgia chega, os m\u00e9dicos, sacanas bem-intencionados que s\u00e3o, d\u00e3o esperan\u00e7a, parece que se esquecendo da no\u00e7\u00e3o de que ela tamb\u00e9m morre. Eu tomo a anestesia e n\u00e3o vejo mais nada, a n\u00e3o ser o Corvo, de Edgar Allan Poe.<\/p>\n

H\u00e9lverton Baiano<\/strong>, jornalista, poeta e prosador, \u00e9 colaborador do Jornal Op\u00e7\u00e3o<\/strong>.<\/p>\n

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Vou morrer com uma \u201cmiorinha\u201d boa H\u00e9lverton Baiano Especial para o Jornal Op\u00e7\u00e3o \u2014 E a\u00ed, doutor, o que eu tenho? \u2014 Voc\u00ea tem um c\u00e2ncer no intestino. \u2014 Qu\u00e3o grave \u00e9 ele? \u2014 Toda gravidade inerente ao c\u00e2ncer, mas pode ficar tranquilo que hoje em dia os tratamentos est\u00e3o… Continue lendo → <\/span><\/a><\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":0,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[1],"tags":[],"class_list":["post-156174","post","type-post","status-publish","format-standard","hentry","category-sem-categoria"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/156174","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=156174"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/156174\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=156174"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=156174"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/agencia2.jornalfloripa.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=156174"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}