‘Qual Rio Araguaia queremos em 2030?’, questionam coordenadores da maior expedição científica já realizada no Araguaia

por Mariana Pires de Campos Telles, Ludgero Cardoso Galli Veira,
José Alexandre Felizola Diniz Filho e José Francisco Gonçalves Junior*
Especial para o Jornal Opção

O rio Araguaia e seus afluentes formam, junto com o Tocantins, a principal bacia hidrográfica do Centro-Oeste brasileiro. Um dos grandes desafios da Humanidade para as próximas décadas é conservar e usar de forma sustentável os recursos hídricos, que têm sido ameaçados por intervenções humanas — desde o uso indiscriminado da água e a poluição dos rios e lagos, até eventos em escala global que causam mudanças na temperatura e precipitação, perturbando o regime hidrológico. Com isso em mente, há alguns anos o nosso grupo de pesquisa começou uma reflexão a partir da seguinte pergunta: qual o rio Araguaia queremos ver em 2030? 

Desde desde 2022, o programa do Araguaia Vivo 2030 realiza grandes expedições para coleta de dados ambientais e de biodiversidade aquática na região do médio Araguaia, conforme já havíamos divulgado aqui no Jornal Opção. Neste ano, ao longo de todo o mês de fevereiro de 2025, acontecerá mais uma expedição no contexto do programa Araguaia Vivo 2030 (acompanhe em tempo real em @araguaiavivo). A expedição de 2025 apresenta objetivos ambiciosos, tanto em termos de quantidade de amostras quanto de cobertura, considerando o número de grupos biológicos da biodiversidade do Cerrado que serão estudados, além dos parâmetros da qualidade da água e ambientais avaliados, sendo considerada a maior expedição científica já realizada no rio Araguaia. 

Financiamento e realização

O programa Araguaia Vivo 2030 nasceu de uma parceria estabelecida entre a “Aliança Tropical de Pesquisa da Água” (“Tropical Water Research Alliance”, a TWRA) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). O programa emergiu quando o então presidente da FAPEG à época, Robson Vieira, articulou os pesquisadores a partir de uma apresentação pela TWRA do projeto “Desenvolvimento Sustentável e Conservação da Biodiversidade da Bacia Hidrográfica do Tocantins-Araguaia” (2021-2023), desenvolvido dentro do programa “Aguas Brasileiras” do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional (MDR), com financiamento do Banco Itaú, no Conselho Nacional das Fundações Nacionais de Amparo à Pesquisa (o CONFAP). Isso permitiu a integração com diversas outras iniciativas e projetos anteriores que vinham sendo desenvolvidos pelos grupos de pesquisa de diferentes instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais da região Centro-Oeste, associados por exemplo ao Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em “Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade” (EECBio), também financiado pela FAPEG e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Desta vez também contaremos com a equipe de pesquisadores e os recursos adicionais que foram captados de um outro grande projeto que está sendo executado pela PUC Goiás e financiado pelo CNPq, por meio do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), intitulado PPBio Araguaia (@ppbioaraguaia). 

A expedição

Durante praticamente todo o mês de fevereiro de 2025, a equipe formada por 27 pesquisadores, incluindo professores da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade de Brasília (UnB), pesquisadores associados ao programa e alunos de pós-graduação. Contará também com 10 tripulantes, que percorrer um percurso de aproximadamente 3500 km no médio Araguaia e em seus principais afluentes, incluindo o Rio Vermelho, Água Limpa, Rio de Peixe, Rio Crixás, Rio Cristalino e Rio das Mortes, realizando algumas coletas ao longo do percurso e caracterizando de forma detalhada cerca de 150 lagos conectados aos rios, situados na planície de inundação, nos Estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

A partir do barco-hotel, que funciona com uma base móvel de apoio, todos os dias diversas pequenas lanchas são lançadas com as diferentes equipes que irão realizar as amostragens dos diferentes grupos de organismos do Araguaia | Foto: Acervo Pessoal

Em cada ponto de coleta serão obtidas informações sobre a biodiversidade e sobre características ambientais e da água. Inicialmente, como esta nova expedição também conta com recursos do Programa PPBio do CNPq, que tem como objetivo geral realizar inventários e levantamentos da biodiversidade, estabeleceu-se uma ampliação dos grupos biológicos a serem estudados. Em 2025 serão analisados os padrões de vegetação ao longo rio, e coletadas amostras de zooplancton e fitoplancton (animais e plantas microscópicos que habitam a coluna d’água e que são importantes indicadores de qualidade ambiental), peixes, insetos, plantas aquáticas (macrófitas), plantas terrestres e observação de botos e aves. Pretende-se também realizar um censo das populações de boto e o registro das espécies de aves observadas na região. Amostras de água serão obtidas e permitirão a análise da concentração de mercúrio e a bioacumulação nas macrófitas aquáticas, da concentração de agrotóxicos, metais pesados e diversos parâmetros físico-químicos da água.

Dada a quantidade de dados obtidos, é importante ressaltar que o trabalho da equipe na realidade não se encerra ao final da expedição, muito pelo contrário. É preciso levar todo esse material para o laboratório, analisar todos os dados, processar amostras e identificar as espécies, depositar em coleções científicas e depois disso é preciso realizar uma série de análises para identificar os padrões, entender os processos ecológicos e a dinâmica do rio. A partir de todos esses dados é possível calcular diversos índices que podem ajudar a definir, por exemplo, a “saúde do rio”. No mapa abaixo é possível visualizar os padrões gerais desse índice, calculado a partir dos dados ambientais e biológicos coletados na expedição de 2022 do projeto do MDR da TWRA.

Padrão espacial da saúde hídrica por meio do índice TWHI (Tropical Water Health Index) em 100 lagos da bacia do rio Araguaia, a partir de dados coletados na expedição de 2022 | Foto: Reprodução

Uma vez que essas informações se acumulam nas diferentes expedições ao longo do tempo, torna-se possível realizar e avaliar tendências temporais nos diferentes parâmetros e nos índices, nas diferentes regiões do Araguaia e seus principais afluentes, disponibilizando evidências científicas para melhor planejamento e tomada de decisão na implementação de políticas públicas. Entretanto, é preciso destacar que essas expedições são apenas uma parte das múltiplas ações que têm sido desenvolvidas no contexto do programa Araguaia Vivo 2030 e do PPBio Araguaia. O programa inclui análises de características ambientais e ocupação humana na escala da bacia como um todo, a partir de dados disponíveis na literatura e nas bases de dados gerais, como as disponíveis no Mapbiomas, dentre outras. É possível também obter dados sobre a hidrologia e modelar estatisticamente o regime hídrico na região, construindo modelos que permitam prever padrões futuros no regime hidrológico, algo crítico para a segurança hídrica e o planejamento para o uso cada vez mais sustentável desses recursos. Nesse sentido é importante também avaliar e valorar os diferentes serviços ecossistêmicos na região, acoplando análises econômicas e ecológicas.

Em termos de biodiversidade, já foram realizadas várias expedições para levantamento florestal e florístico na região da bacia e registrar diferentes grupos de organismos, tais como mamíferos e aves, bem como obtenção de dados de forma “não-invasiva” utilizando tecnologias novas para monitoramento da biodiversidade, por exemplo, usando o DNA obtido diretamente a partir de amostras do ambiente, especialmente água e solo (o chamado “DNA ambiental”), além de inferências de padrões da biodiversidade por sensoriamento utilizando drones. A partir desses levantamentos realizados em campo ao longo de 2023 e 2024 confirma-se que existe muita lacuna de conhecimento e que ainda há muito para descobrir na região. Por exemplo, já foi possível registrar a ocorrência de muitas espécies de plantas que, apesar de conhecidas em outras regiões do Brasil, nunca haviam sido observadas na bacia do Araguaia. Mais importante ainda, já foi possível descrever uma espécie nova de planta para a ciência, que será divulgada nas próximas semanas. Essa falta de conhecimento pode ser analisada também por uma série de métodos estatísticos e computacionais aplicados a dados já disponíveis, e que ao mesmo tempo que permitem inferir o tamanho do desconhecimento sobre os diferentes grupos de organismos e verificar o quanto dos padrões ecológicos observados é dependente dele, podendo ajudar a guiar novos esforços de coleta a fim de preencher essas lacunas.

Análises genéticas sendo realizadas no Laboratório de Genética & Biodiversidade (LGBio) da UFG | Foto: Acervo Pessoal

Socioeconomia

É importante entender também que diversos componentes da biodiversidade e do ambiente como um todo possuem uma importância também em um contexto socioeconômico, algo muito perceptível no caso do Araguaia em relação ao turismo de natureza, especialmente em um contexto de pesca esportiva (e nesse sentido já há uma parceria importante estabelecida entre o Araguaia Vivo/TWRA e o grupo organizando o torneio de pesquisa esportiva “Gigantes do Araguaia”, também apoiado pelo Governo do Estado de Goiás). Embora esta última atividade seja já bastante desenvolvida na região, é importante avaliá-la de forma mais aprofundada e científica a fim de torná-la cada vez mais sustentável e criar (ou aprofundar) uma consciência ecológica nos envolvidos, bem como desenvolver outras formas de turismo que possam ser igualmente viáveis e economicamente importantes para as comunidades na região. Tudo isso, claro, abre a possibilidade de que sejam realizadas de forma cada vez mais efetiva ações de educação ambiental na região, envolvendo os diferentes atores da sociedade, algo extremamente importante e que também estão sendo realizadas no programa Araguaia Vivo 2030.

Finalmente, outro ponto que merece destaque é que há, sem dúvida, muitos outros projetos de pesquisa e extensão focados na região do Araguaia desenvolvidos por diferentes grupos sediados em diferentes instituições e organizações. Em setembro de 2023, por exemplo, organizamos na cidade de Aruanã (GO), na margem do Araguaia, um evento com o objetivo de começar a integrar esses diferentes projetos a fim de minimizar duplicação de esforços e criar efeitos sinérgicos entre as iniciativas, o “Conexão Araguaia 2024”.

Finalizando o “Conexão Araguaia”, realizado em setembro de 2024 em Aruanã, Goiás, reunindo toda a equipe do “Araguaia Vivo 2030” e diversos parceiros.

Temos, por exemplo, as ações do Instituto Onça-Pintada (IOP) envolvendo a formalização do chamado “corredor do Araguaia”, ou “Corredor da Onça”, cujo objetivo é mostrar que é possível viabilizar o curso do Araguaia da nascente na região de Mineiros em Goiás até o seu encontro (por meio da porção ao norte com o rio Tocantins) com o oceano Atlantico no Pará, como um enorme corredor ecológico ligando Pantanal, Cerrado e Amazonia. Esse potencial de conexão já havia sido proposto em um estudo mais amplo utilizando a onça-pintada como um “organismo-modelo” que mostrou que, de todos os grandes rios e conexões ecológicas possíveis entre os biomas brasileiros, o corredor ao longo do rio Araguaia seria o mais viável e importante. Essa ideia tem sido, apesar das controvérsias (que serão discutidas oportunamente), muito discutida recentemente, sendo apoiada por ações do Ministério Publico Federal (veja aqui a “Carta do Araguaia”, lançada pelo MPF em junho de 2024), e proposta na forma do Projeto de Lei 909/24.

Outra iniciativa importante é a desenvolvida pelo “Projeto Peixara”, que tem estudado os padrões de migração e dispersão de espécies de peixe de grande porte importantes sob o ponto de vista comercial, como por exemplo a “Piraíba” (Brachyplatystoma filamentosum). As análises, utilizando sensores implantados nos indivíduos e que são monitorados por estações ao longo de todo o rio (outra tecnologia inovadora!), já mostram padrões inéditos de migração de longa distância, um conhecimento extremamente importante para que seja possível elaborar estratégias efetivas para que os estoques dessas populações sejam mantidos a longo prazo. Realizar esse tipo de trabalho para múltiplas espécies irá gerar informações importantes para que as atividades econômicas que dependem dessas espécies, em particular o turismo de pesca, continuem sustentáveis. As interações entre os projetos já começam a se concretizar, com o desenvolvimento de modelos de distribuição geográfica refinados para essa espécie a partir dos registros inéditos de ocorrência e a análise dos padrões de diversidade genética populacional a partir de amostras do seu DNA.

Todas essas ações e iniciativas, e muitas outras que poderão ser gradualmente conectadas com o passar do tempo, demonstram a importância do Rio Araguaia, em um contexto científico e ambiental, e o objetivo é sempre chegar à ideia de ampliar e consolidar o desenvolvimento sustentável na região. Há muito a conhecer e muito a fazer, e espera-se que, apresentando de forma mais detalhada cada uma dessas iniciativas, mantendo sempre o “Araguaia em Foco”, seja possível garantir que tantos recursos naturais importantes sejam usados de forma adequada pelas próximas gerações.

Mariana Pires de Campos Telles – Professora da PUC Goiás e da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenadora geral do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA;

Ludgero Cardoso Galli Veira – Professor da Universidade de Brasília (UnB), e vice coordenador do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA

José Alexandre Felizola Diniz Filho – Professor da UFG e coordenador científico do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA

José Francisco Gonçalves Junior – Professor da UnB, coordenador de governança e planejamento do Programa “Araguaia Vivo 2030” e presidente da TWRA-Brasil. 

O post ‘Qual Rio Araguaia queremos em 2030?’, questionam coordenadores da maior expedição científica já realizada no Araguaia apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.