Ninguém é insubstituível. Se assim não fosse, a humanidade não teria chegado aos nossos dias. Mas há personalidades que, devido às suas qualidades e/ou virtudes, fazem diferença neste mundo. Outros são aqueles a quem amamos ou admiramos, que se tornam uma exceção à regra.
Entre os substituíveis estão os muitos que fizeram muito mal à humanidade pela sua atuação nos diversos campos das atividades. São os tiranos políticos, os intelectuais de ideias equivocadas, os artistas deslumbrados, que fizeram o mundo pior.

Contrapondo-se a esses estão os políticos democráticos, os intelectuais lúcidos e os artistas não comprometidos, que fizeram o mundo melhor.
Essas ponderações vêm à tona com a triste notícia da morte do escritor peruano Mario Vargas Llosa, aos 89 anos. Um ser insubstituível para os seus órfãos: a sua família e os seus admiradores. Autor de romances imortais como “Conversa no Catedral” e “A Guerra do Fim do Mundo”, que corre em paralelo a outra obra prima, do brasileiro Euclides da Cunha, “Os Sertões”, fonte de sua inspiração.
Dois livros emocionantes, que dão vida aos jagunços seguidores de Antônio Conselheiro. São dois textos emocionantes, que, muitos como eu, no término da leitura ficam entre o encanto do texto e a frustração de ter menos um bom livro para ler.
Um bom livro lido é como uma paixão vivida intensamente, deixa um retrogosto de encantamento, mas perde a condição da novidade, da surpresa. Diz bem Vargas Llosa definindo a literatura como a arte de tornar o impossível no possível e o sonho em realidade; é ela que nos propicia viver muitas vidas diferentes quando só temos uma; e transcender do real para o ideal.

Os seus textos eram frutos de muito empenho — inspiração e transpiração. Para escrever “A Guerra do Fim do Mundo”, ele viveu na região brasileira por alguns meses. Era um estudioso, que procurava dominar os eventos e a natureza humana para transmiti-la com eloquência nos seus livros.
“A Orgia Perpétua” é considerado um dos livros mais importantes sobre Flaubert. A melhor obra sobre o autor de “Cem Anos de Solidão” é de Vargas Llosa — “García Márquez: História de um Deicídio”.
Vargas Llosa, que conheci em um evento liberal, era, como pessoa, um modelo de modéstia, sedutor, bom ouvinte, cordial e evidente empatia com as ideias dos interlocutores. Ouvia com a tolerância dos espíritos superiores as contestações às suas ideias. Não tinha a postura de um mestre, mas de um alguém desejoso de entender, de debater, de esclarecer. Era uma mente aberta em busca da verdade.

Arrependido da sua militância comunista, que o decepcionou por não entregar o prometido mundo ideal e por ter presenciado na Cuba comunista a prática da violência, da injustiça e da miséria. Ao ver o fracasso da utopia, testada em todas as experiências, mudou com armas e bagagens para democracia liberal. Aderiu à democracia liberal, não por ser perfeita, mas por ser o ideário que mais reduziu a violência, a injustiça e a miséria.
Vargas Llosa era generoso com os intelectuais e artistas. Não os acusava de aproveitadores da ingenuidade alheia em benefício próprio, mas condescendentemente justificava a devoção deles ao socialismo. Atribuía à propensão dos intelectuais e artistas a estarem sempre em busca da perfeição, a qual acreditam encontrar na utopia marxista do fim da injustiça social.
Uma tentação que Vargas Llosa sucumbiu, como intelectual, até a constatação dos desastrosos resultados, principalmente da revolução comunista de Cuba. Dedicado como era em não se deixar levar pelas aparências, mas em buscar a verdade, a descobriu, segundo declarou, nos textos do filósofo francês Raymond Aron.

No livro “O Ópio dos Intelectuais”, Aron argumenta que “o povo estaria fanatizado pela religião (o ópio do povo) e o intelectual estaria fanatizado pelo marxismo (o ópio dos intelectuais)”. O ópio embota a percepção e a crítica, e a imagem, para Aron, vale para uma concepção de povo, e vale também para uma concepção de intelectuais.
García Márquez, Julio Cortázar e Vargas Llosa
Gabriel García Márquez e Julio Cortázar chamaram a atenção do mundo para a realidade sul americana. Vargas Llosa era um cidadão cosmopolita. Viveu e vivenciou diversas culturas, mas nunca se sentiu como um estrangeiro por causa dos livros. Considerava a Espanha, que lhe concedeu a cidadania espanhola quando, por razões políticas, esteve ameaçado de perder o passaporte peruano.
Morreu no Peru, sua terra natal, à qual dedicava um amor filial. No seu maravilhoso discurso, ao receber o Prêmio Nobel (confira no YouTube: https://tinyurl.com/4p7zk6fx), ele define com a elegância do seu estilo de escrever as razões do amor que temos pela terra em que nascemos: “O patriotismo não pode ser imposto, é algo que está em nós. É a consciência íntima de saber que existe um lugar para o qual sempre podemos voltar — a pátria”.
Vargas Llosa viveu intensamente. Correu o mundo, amou muitas mulheres, escreveu livros, artigos e teatro. Fantasiou-se para o Carnaval carioca, frequentou a Casa Real Espanhola e foi candidato derrotado à Presidência do Peru, com um programa liberal. Desta experiência resultou o livro “Peixe Fora D’Água” (suas memórias), que descreve a sua trajetória eleitoral e aproveita para relatar a história de sua vida. Há belas e dolorosas páginas sobre sua infância.
Se ninguém é insubstituível, menos aqueles que amamos, como defensor da liberdade individual, ele é daqueles que fez o mundo diferente.
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