Em minha existência, que já vai longa, aprendi a tratar com respeito a sabedoria popular, que geralmente não é expressa em livros. Em várias ocasiões, contemplei sua inteira validade, e relato aqui um acontecimento, para que o leitor avalie essa sabedoria.
No final da década de 1960, Otávio Lage era o governador de Goiás. O norte goiano, que hoje é o Estado do Tocantins, vinha de muitos anos de isolamento e até penúria em sua infraestrutura. A renda do Estado era pouca, o agronegócio ainda engatinhava, a indústria era incipiente.
A região nortense, de baixa densidade populacional, sofria mais que o Sul, que já se beneficiava da presença das novas capitais, Goiânia e Brasília.
Otávio Lage era um homem de visão, e um administrador comprovado, na esfera privada (sempre foi um empresário de sucesso) e na esfera pública (fora eficiente prefeito de Goianésia, sua cidade de residência).
No governo, Otávio Lage não se descuidou do Norte, que sofria com a falta de estradas e de energia elétrica, entre outras carências. Uma de suas ações, e nelas procurava usar da melhor e mais rendosa maneira o dinheiro público, foi implantar pequenas hidrelétricas, para substituir os caros grupos geradores que abasteciam, com deficiência e racionamentos, as cidades da sofrida região.

A ação foi confiada à Centrais Elétricas de Goiás (Celg), cujo presidente era um engenheiro também de comprovada capacidade e dinamismo, Joaquim Guedes de Amorim Coelho.
As obras das pequenas hidrelétricas foram postas em concorrência pública, e eu, jovem engenheiro e empreiteiro, consegui ganhar algumas delas, como a de Lajeado, em Porto Nacional, a de Corujão, em Araguaína, e a de Lajes, em Colinas de Goiás (hoje Colinas do Tocantins), esta última lá no extremo norte, a 100 km da cidade de Araguaína, então um centro econômico regional.
Equipamentos de construção nessa época não eram tão abundantes quanto agora, e as obras de limpeza de área, escavação, concretagem e instalação de comportas e equipamentos de geração demandavam mão de obra.
A construção da usina de Lajes, ainda que de pequeno porte, ocupava, no seu início, quase uma centena de peões. Mas, já de início também, surgiu um inesperado obstáculo: não poucos trabalhadores caíam, diariamente, doentes de malária.
Embora de baixíssima letalidade, e bem conhecida em Goiás, a enfermidade, causada por um vírus (Plasmodium) e tendo como vetor um mosquito (Anopheles) exigia rápido tratamento e incapacitava o infectado por vários dias.
Uma camionete teve que ser mobilizada para uma viagem diária ao hospital de Araguaína. Levava um grupo de peões infectados e trazia um grupo de tratados e curados.
Procurei com médicos de Goiânia um aconselhamento quanto ao problema: não existiam preventivos ou vacinas então.
Fui informado, por um infectologista mais pesquisador, que os EUA, então em guerra no Vietnã, haviam desenvolvido uma vacina, pois suas tropas ali no sudeste asiático também eram atacadas pela malária. Mas esse preventivo não estava disponível no Brasil.
Não sem alguma dificuldade, conseguimos comprar no mercado americano uma partida dessa vacina, cujo nome, se não me trai a lembrança, era Camolar.
Os trabalhadores braçais continuavam a cair doentes, a serem mandados para Araguaína e voltarem curados. Felizmente, os afetados, uma vez curados, pareciam adquirir uma certa imunidade e poucos apresentavam uma recidiva.
Mas havia uma rotatividade bastante grande de mão de obra na região, e o problema continuava preocupante.
Com a chegada da tal Camolar, fizemos uma aplicação mais ou menos generalizada, pois muitos trabalhadores receavam aquela medicação que não conheciam. Mas a maioria experimentou a injeção. Uma complicação, tripla por sinal, não se fez esperar: a injeção era extremamente dolorida, sua efetividade era baixa (menos de 50%) e em muitos casos provocava um abcesso no local da aplicação, que exigia também um tratamento.

Carmo Bernardes: a sabedoria da experiência
Que fazer, eu indagava, e meus amigos médicos não tinham resposta. Até que alguém se lembrou de nosso saudoso Carmo Bernardes (1915-1996), misto de intelectual refinado, bom escritor (autor do romance “Jurubatuba”) e vivido homem do campo, com quem tínhamos amizade de família.
“O Carmo entende melhor de malária do que qualquer um. Já contraiu uma dúzia de vezes”, disse-me esse alguém.
Procurei imediatamente o Carmo, e disse de minhas adversidades. Por sua vez, o escritor e precursor dos ambientalistas me ouviu atentamente, mascando seu cigarrinho palheiro.
Quando terminei, sacudiu as cinzas do cigarro, fez uma ou duas perguntas, e com seu olhar muito vivo, que traía sua maneira sem pressa de falar, aconselhou:
“Você vai fazer o seguinte: leve óleo queimado e derrame um pouco em cada poça de água parada que encontrar nas margens do rio até uns 50 metros de distância da obra ou do acampamento; leve pneus usados, corte em pedaços e queime nas moitas mais densas nas margens também até 50 metros; proíba o banho no rio das 5h30 da manhã até as 7h e das 5h da tarde até as 19h; e coloque telas finas nas janelas do dormitório. Depois de umas duas semanas me diga se deu algum resultado”.
Segui à risca as instruções e qual não foi a surpresa geral quando o problema desapareceu como se nunca tivesse existido. Até os médicos do hospital de Araguaína queriam saber o que havia acontecido, pois os infectados haviam desaparecido.
O nosso piloto, que quando pousava no campo da obra mal abria a porta para que saíssemos (ou entrássemos) com nossas bagagens e decolava para Araguaína, onde permanecia até a nova decolagem, já se arriscava a dormir no acampamento, perdendo o medo do mosquito Anofelino.
Em Goiânia, procurei Carmo Bernardes para agradecer e saber mais sobre suas acertadas instruções. Não se fez de rogado. Sacudindo a cinza de seu palheiro, sentenciou:
“O óleo queimado nas poças d’água mata as larvas do mosquito Anopheles, onde a fêmea as deposita; a fumaça da borracha queimada espanta o mosquito para longe; ele só pica sua presa nas horas mais frescas da manhã e da tarde, hora em que o banho está proibido e ninguém se expõe; ele é ribeirinho e nas horas de calor prefere não voar e fica pousado na vegetação; e as telas nas janelas não permitem que o mosquito pernoite no dormitório e pique as pessoas logo cedinho. É isso.”
E era mesmo. Carmo era, na prática, um cientista invulgar, que mesclava conhecimento científico e experiência de vida.
Além de muito agradecer, tive que tirar o chapéu para sua sabedoria, grande, efetiva e absolutamente prática e popular. Faça o leitor seu julgamento.
Carmo Bernardes é autor de dois livros interessantes: “Jângala — Complexo do Araguaia” e “Selva, Bichos e Gente”. É impressionante a sua sabedoria sobre as coisas da natureza.
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