Dos benefícios de se morrer no dia de seu aniversário
José M. Umbelino Filho
Especial para o Jornal Opção
No dia do meu aniversário de trinta e nove anos, uma sexta-feira, caminhava eu pelo canteiro da avenida, no contraturno dos carros, ouvindo o ruído uterino da cidade e me achando demasiadamente velho.
Eis que me deparo com a luminosa figura da morte – que a mim se apresentou de maneira espalhafatosa, em sua total breguice e grandiloquência: uma colossal caveira sorridente a ocupar o lugar do sol, feita em partes de luz, em partes de nuvens, em partes de sonho. Suas mãos esqueléticas saíam do horizonte, entre os prédios, e tinham o tamanho descomunal das mãos dos titãs antigos.
Com a ponta do mindinho esquerdo, a morte tocou-me o peito, quase me fazendo cair para trás, e disse: “Vim te buscar. É tua vez.” Tinha a voz de minha tia-avó Amorosa Umbelino, cujo falecimento foi o primeiríssimo de que ouvi falar, e marcou minha infância com a descoberta de que pessoas próximas morriam.
“Mas hoje é meu aniversário” – eu argumentei, ao que a morte respondeu num discurso que, pelo menos para mim, pareceu institucional e decorado: “A morte não escolhe data ou horário, a morte não discrimina cor, raça ou gênero. A morte fala todas as línguas, entende todos os dialetos, escuta todas as defesas, apelos e argumentos, apenas para desconsiderá-los. A morte chega ao réu, ao juiz, ao advogado e às testemunhas. Em seus dias de folga, os carrascos também encontram a morte. Mesmo as estátuas e os livros morrem um pouco quando a morte passa por eles. Da morte não escapam velhos ou novos, ricos ou pobres, generais ou pacifistas, assassinados ou assassinos. A morte mata quem ainda vai nascer, a morte mata quem já morreu antes. Por isso, não reclama tu do dia de tua morte, mas dos dias de tua vida”.
Quis comentar minha irritação com quem fala de si na terceira pessoa — “a morte não faz isso, a morte não faz aquilo e blá blá blá” — mas o discurso realmente parecia decorado, não algo que ela diria fora do expediente de trabalho, então respondi: “Ora, mas é deselegante me visitar assim, no dia de meu aniversário, sem pelo menos um presente. Uma lembrancinha que seja”.
Ao que a morte arqueou as inexistentes sobrancelhas e disse: “Ora, é verdade. Pois bem, te dou um presente: poderás escolher a forma de tua passagem. Como queres morrer?”
Considerei perguntar por que ela utilizava o “tu” ao invés de “você”, a segunda pessoa ao invés da terceira – se não era a morte conhecedora de todos os idiomas e dialetos? – seria para intensificar o clima bíblico? Seria também protocolo, e os agentes sobrenaturais nunca se modernizaram?
Mas temi outro discurso e queria terminar logo com aquilo para dar prosseguimento aos compromissos do dia, então pensei, ponderei, e respondi: “Gostaria de morrer de forma sensual, inusitada e engraçada. Como aquele grego antigo que, dizem, morreu quando uma águia derrubou um casco de tartaruga na sua cabeça, ou então como a famosa rainha que não aguentou tantos orgasmos seguidos e morreu dizendo ‘só mais um, por favor’. Inusitado, divertido, sensual”.
A morte pareceu sorrir por baixo de seu sorriso de caveira. Sumiu-se numa nuvem de chuva e eu voltei ao mundo. Subindo pelo canteiro da avenida, um grupinho de universitários cantava, exultantes na sua própria beleza e existência. Riam da voracidade da vida, riam com saúde e fôlego, e me cercaram – do meio enovelado deles saltou uma mocinha de tranças e óculos escuros, viva, bela, suada, mastigando amendoins salgados e tomando refrigerante, que resolveu, por pura traquinagem, me lascar um beijo na boca, para depois sair correndo, rindo alto, sem jamais olhar para trás, sem nem pensar em mim ou em meu encanto, nem saber de minha alergia mortal a amendoins.
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