Congonhas: o aeroporto privatizado que caiu nas mãos de uma estatal

A Netflix lançou um documentário sobre o voo TAM 3054, o maior desastre aéreo da história do país, mas o que chama atenção mesmo não é apenas a tragédia em si. É a forma como o Brasil parece acostumar-se com o risco, escondendo-o debaixo do tapete e tratando o absurdo como algo normal no dia a dia.

Desde seus primeiros dias, em 1936, Congonhas foi engolido pela expansão urbana desordenada. Hoje, o aeroporto lida com mais de 70 mil passageiros diários e registra cerca de 44 pousos e decolagens por hora, num espaço tão apertado que qualquer deslize pode custar vidas.

E mesmo depois de tanta história, entre 2020 e 2022 não demorou para que 35 novos prédios — na maioria com mais de oito andares — surgissem na redondeza.

Daí vem a pergunta que não deixa dormir: quem, em sã consciência, permite que prédios se ergam tão pertinho de uma pista onde já aconteceu o pior acidente aéreo do país?

A resposta é simples e meio amarga: o mercado manda. A localização é um alvo cobiçado, o lucro aparece de imediato, e a segurança acaba sendo tratada como um mero detalhe técnico — algo que se “resolve” com um sorriso em coletiva de imprensa.

Mas o problema vai além do risco de acidentes. Congonhas também despeja sobre a vizinhança toneladas de gases tóxicos emitidos pelas aeronaves — poluindo o ar de uma das áreas mais densamente habitadas da cidade.

E como se não bastasse, o barulho ensurdecedor das decolagens e aterrissagens virou parte da paisagem sonora: um ruído permanente que invade casas, escolas e hospitais, e que, há décadas, é tratado como se fosse inevitável.

E veja bem, a história não para por aí. No meio dessa transformação de tudo em ativo financeiro, bate a “privatização” de Congonhas — um termo bonitinho, fácil de vender. Mas, na realidade, nada passou de trocar uma estatal brasileira por uma estrangeira, a espanhola AENA — que, veja só, foi a única a se interessar na licitação.

No que devia haver uma competição saudável, o mercado virou uma corrida com um só competidor — e esse competidor é, inusitadamente, estatal.

É uma ironia amarga: a promessa da eficiência do setor privado cai agora nas mãos de uma empresa pública espanhola, que gere o aeroporto seguindo uma lógica fria de maximizar receitas enquanto o local continua saturado.

Tarifas, estacionamento, lojas, publicidade… tudo se resume a números, mesmo quando o risco estrutural permanece lá, quietinho, quase imperceptível, pairando sobre os passageiros apressados.

E agora também invisível na fumaça dos gases e abafado pelo ruído constante que devora a qualidade de vida de quem vive ao redor.

A nova administração ainda promete investir R$ 2 bilhões até 2028 para expandir o terminal e acomodar aviões maiores.

Congonhas parece destinado a crescer onde não deveria, a acomodar mais gente onde o espaço já está no limite e a ver os voos internacionais para a América Latina surgindo no horizonte — um tempero a mais na receita da saturação.

As inaugurações serão modernas, as fotografias reluzentes e os discursos otimistas; mas, no fundo, a essência não muda: o aeroporto continua sendo um gigantesco negócio, edificado sobre um risco estrutural permanente.

Talvez o verdadeiro desastre brasileiro não esteja no acidente trágico do passado, mas na escolha consciente de repetir o erro agora, embalado com o rótulo de “modernização”.

No fim das contas, Congonhas nunca foi apenas um aeroporto. Ele reflete bem como é o nosso país — onde a sobrevivência muitas vezes parece uma questão de sorte, enquanto o lucro é tratado como uma arte de Estado.

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