Uma declaração de amor às listas

Na coluna passada, falei um pouco sobre meu apego a listas, e como as faço para tudo. Coincidentemente, estava lendo a revista 451, edição 71, de julho de 2023, com a fabulosa Annie Ernaux na capa, quando me deparei com um artigo escrito pela neta do escritor Boris Schnaiderman, Luana, sobre uma lista feita pelo seu avô, que ela achou entre os escritos dele.

Coincidência bonita, quase poética, logo depois de ter escrito uma coluna toda – em quase – uma declaração de amor as listas.

Li o texto até meio “embasbacada”, porque fiquei com a emoção de que eu gostaria de ter escrito tudo que estava ali.

Se essa revista já valia a pena só por ter como capa a fabulosa Annie Ernaux, em uma reportagem encantadora sobre a profundidade e o impacto da obra dela, imagina com essa matéria tão gostosinha sobre Boris Schnaiderman, apego e amor as listas e, ao fundo, uma declaração de amor, às palavras.

Renomado tradutor e crítico literário, a publicação aborda a descoberta de um manuscrito com o índice da biografia que Schnaiderman vinha escrevendo há anos, trazendo aspectos inéditos de sua vida e obra.

Mas a lindeza dessa matéria – e por tabela esses textos que ele escrevia – é termos uma visão mais profunda, íntima e delicada do processo criativo desse que foi um dos principais responsáveis pela introdução da literatura russa no Brasil.

E fiquei pensando em como esses textos que escrevemos a próprio punho, pequenas listas (seja do que for), insignificantes anotações do cotidiano, a observância de vida acontecendo, pode tanto nos inspirar nesse processo criativo da escrita.

“Uma lista é uma conversa, só que mais organizada. Ou não.”

Sim, uma conversa consigo, com o outro, com o mundo. Sem falar que acho uma poesia bonita o ato de “ticar” o que fazer, o que foi feito. Uma pulsante de planejamentos, mas ainda mais bonito e lírico, é o que a vida acontece fora dos tantos planejamentos listados.

E acho esse um dos maiores exercícios de processo criativo: observar as pequenezas da vida cotidiana.

Nesse texto, Luana também nos diz sobre a organização de uma biblioteca. Achei de uma sensibilidade ela dizer que essa ordem “é a escrita combinatória de uma lista sem fim.”

E não é que é? Trazendo para esse ofício que gosto tanto, de livreira, tendo a concordar que é exatamente assim:  chegada de novos títulos, uma breve (nem sempre), separação de categoria (brasileira, estrangeira, lançamentos…), abrir espaço – que quase nunca existe – na prateleira para encaixar os novos títulos. Assim como as listas, uma tarefa sem fim, mas boa, muito boa.

“O (George) Steiner começou a escrever listas, dia e noite. Se a lista estiver completa, ele ganha. O pesadelo da lista incompleta: se há um item faltando, você perdeu a aposta contra a totalidade. O núcleo inviolável do particular, do específico, do irrepetível, e a importância de falar o nome de cada coisa. O nome inteiro. E olhar de perto e contar a história do começo ao fim.”

“O pesadelo da lista incompleta”: o mesmo pesadelo da livreira, de não conseguir nunca terminar uma organização da livraria. Não que isso seja ruim, mas assim como Luana considera “perder a aposta contra a totalidade” considero perdida a aposta contra a obsessão da arrumação.

Assim como ela encerra, eu também gostei das listas dele, assim como gosto das minhas, e assim como gosto de sempre ter, cada vez mais livros para catalogar, separar, guardar.

Porque como as listas dela e dele, a função livreira é sempre incompleta. Pois toda uma vida escolhendo livros para entender como é habitar o mundo, hoje me pego vivendo entre “fichamentos” de livros…

Eu tenho a mania de “caçar” a poesia na vida. E como não ver, com esse trecho bonito aqui, que pode ser tão bem encaixável com livrarias:

“As listas catalogam, separam, selecionam, organizam, nomeiam, classificam. Aconchegam, acalmam, dão sono, vertigem e poder. A organização da biblioteca é a escrita combinatória de uma lista sem fim. Enumerações entrecruzadas: ficção teoria gente viva gente morta os mais amados, aqueles autografados, mulher homem clássico contemporâneo de onde veio já lido onde é que tá quem é pronde vai. Na minha estante, a Clarice mora ao lado da Virgínia Woolf e da Katherine Mansfield. Imagina a conversa.”

Luana ainda questionou o título de um dos supostos capítulos da autobiografia do avô: “A vida num fichário.” Achei bonito demais, e mais uma vez, vi poesia nisso. E me peguei pensando, como seria um capítulo de quem viveu entre livros?

Também seria “a vida num fichário”? Porque afinal, também a vida foi um eterno fichamento, selecionamento, catalogação, separação, ajuntamento…

Nessa falta de escrever todos esses dias, como disse na coluna passada – mas não de ler ou estar rodeada de livros – afinal a função leitora/livreira está sempre aqui, me pego, de vez em quando, revisitando minhas sensações preferidas na livraria.

E essa, com certeza pode ser uma delas: a vida num fichamento.

A edição da Revista 451 citada, é realmente enaltecida pelas diversas pautas interessantes, e vale a pena ser lida, pelo primor das duas matérias citadas, e você pode encontrar na Livraria Palavrear.

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