Da romaria ao culto moderno: a revolução religiosa em Goiás

A análise das igrejas em Goiás revela um panorama histórico e sociocultural rico, marcado por profundas transformações ao longo do tempo. A presença da Igreja Católica no estado data dos primeiros colonizadores, trazendo consigo duas formas de prática religiosa: uma institucional e outra popular, que dialoga com tradições indígenas e africanas. Essa diversidade foi fundamental para o desenvolvimento de devoções e festas populares que se tornaram pilares da cultura local, como a Romaria do Divino Pai Eterno, refletindo a forte influência católica no cotidiano do interior goiano.

Nas últimas décadas, no entanto, Goiás tem vivenciado um expressivo crescimento das igrejas evangélicas, fenômeno associado a fatores como a urbanização acelerada, a liberdade individual na escolha religiosa e a facilidade de formação dos líderes evangélicos. Esse movimento provocou mudanças significativas na configuração religiosa do estado, fazendo de Goiânia uma das capitais mais evangélicas do Brasil. A pluralidade dentro do campo evangélico, com vertentes que vão do pentecostal ao neopentecostal e até grupos desigrejados, evidencia uma religiosidade cada vez mais diversificada e dinâmica.

Igrejas de estilos diferentes, lado a lado l Foto: Fabio Costa/Jornal Opção

Além das diferenças teológicas, a atuação social e política das igrejas em Goiás também passou por transformações relevantes. Enquanto a Igreja Católica teve papel histórico na fundação de instituições educacionais e de saúde, e na luta por pautas sociais progressistas, as igrejas evangélicas ampliaram sua influência política e social a partir dos anos 2000, especialmente com a criação da Frente Parlamentar Evangélica. Contudo, o historiador José Reinaldo destaca que, apesar das mudanças, há hoje mais complementaridade do que rivalidade entre as tradições religiosas, que continuam desempenhando papéis cruciais na inclusão social e na identidade cultural do estado.

Goiás tem quase 19 mil templos religiosos, mas número deve ser maior após 15 anos sem novo censo

Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, o estado de Goiás possuía 18.970 estabelecimentos religiosos. O levantamento, no entanto, não especifica as denominações, contabilizando templos de forma geral.

Entre os municípios goianos, Goiânia liderava com 2.737 templos, seguida por Anápolis, com 1.333, e Aparecida de Goiânia, com 1.211. O IBGE promete divulgar os dados atualizados do Censo de 2022 no segundo semestre de 2025.

Nos anos 2000, Goiânia chegou a ser reconhecida como a capital do pentecostalismo no Brasil, conforme estudos da Fundação Getulio Vargas (FGV). De acordo com o Conselho de Pastores de Goiânia, a cidade abriga mais de 80 diferentes denominações evangélicas, incluindo igrejas fundadas localmente, como a Videira, Batista Renascer, Luz para os Povos e Fonte da Vida. Algumas dessas congregações já expandiram suas atividades para outros estados e até para o exterior.

Igreja católica no Balneário Meia Ponte l Foto: Fabio Costa/Jornal Opção

Estimativas do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), vinculado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), apontam que há cerca de 60 templos evangélicos para cada 100 mil habitantes em Goiás. O número atual pode ser ainda maior, já que, em média, 17 igrejas evangélicas são abertas por dia no Brasil, que conta com aproximadamente 109,5 mil templos em funcionamento.

Apesar do avanço evangélico, o catolicismo ainda predomina na maioria dos municípios goianos. A exceção, segundo os dados de 2010, é Palestina de Goiás, no Sudoeste do estado, onde os evangélicos representam 45,75% da população, superando os católicos, que somam 41,95%.

O crescimento expressivo das igrejas evangélicas no Brasil pode ser atribuído a diversos fatores. Um deles é o enfraquecimento do catolicismo, que perdeu influência especialmente nas periferias urbanas formadas após o êxodo rural. Além disso, a maior proximidade e acessibilidade dos evangélicos no diálogo com as comunidades periféricas — que compõem a maior parte da população brasileira — contribuem para essa expansão.

Momentos de crise política, social e econômica também impulsionam a busca por apoio espiritual. Outro aspecto relevante é a estrutura mais flexível das igrejas evangélicas, que tem atraído especialmente os jovens, muitas vezes distantes do tradicionalismo da Igreja Católica.

A Assembleia de Deus permanece como a denominação com maior presença em Goiânia, marcando presença tanto em bairros periféricos quanto nas regiões nobres. Outra tendência apontada por líderes religiosos é o crescimento das chamadas churches, igrejas com visual moderno e paredes escuras que atraem principalmente jovens.

O pastor Giovani Ribeiro reforça que o número de templos é reflexo do crescimento da comunidade evangélica e da busca por disseminar a mensagem de fé. “A Assembleia de Deus está presente em toda parte, levando a palavra de Deus e a mensagem de salvação”, conclui.

Igrejas precisam estar cadastradas no CNPJ, afirma Receita Federal

A Receita Federal explicou que, de acordo com a legislação vigente, todas as igrejas devem estar cadastradas no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). De acordo com o Código Civil (Lei nº 10.406/2002), organizações religiosas são consideradas pessoas jurídicas de direito privado e sua existência legal começa com o registro de seus atos constitutivos. Além disso, a Instrução Normativa RFB nº 2.119/2022 determina que entidades religiosas devem obrigatoriamente realizar a inscrição no CNPJ.

Igreja na periferia l Foto: Fabio Costa/Jornal Opção

De acordo com o órgão, esse cadastro é necessário para que as igrejas possam realizar atividades como a abertura de contas bancárias, o recebimento de doações e o cumprimento de obrigações fiscais, embora gozem de imunidade tributária, conforme a Constituição Federal.

A Prefeitura de Goiânia confirmou que as igrejas não pagam impostos municipais, amparadas pela imunidade tributária prevista no artigo 150 da Constituição Federal, que protege a liberdade religiosa. Essa imunidade se aplica a todas as entidades de caráter religioso, independentemente da denominação, e abrange a renda, os serviços e o patrimônio.

A abertura de uma igreja em Goiânia, e em muitas partes do Brasil, é um processo relativamente simples. O pastor Giovani Ribeiro explica que, para congregações filiadas à Assembleia de Deus, o processo é facilitado, pois a denominação já possui um CNPJ central, o que desburocratiza a formalização de novas congregações. Já para quem deseja abrir uma igreja independente, basta registrar o nome da instituição em um cartório, sem exigência de documentação extra, como atestado mental ou certidão de antecedentes criminais.

Brasil ainda lidera número de católicos no mundo, mas crescimento evangélico preocupa Igreja

Com cerca de 120 milhões de fiéis, o Brasil continua sendo o país com a maior população católica do mundo, concentrando aproximadamente 10% de todos os católicos. Apesar disso, a influência da Igreja Católica no país vem sendo desafiada pelo crescimento acelerado das igrejas evangélicas e pelo comportamento cada vez mais distante dos próprios católicos em relação à prática religiosa.

De acordo com reportagem da Revista Veja, intitulada Assim Caminha o Rebanho, o encolhimento da comunidade católica no Brasil e no mundo tem sido motivo de preocupação para o novo papa, Leão XIV. Uma pesquisa encomendada pela publicação revela que a maioria dos católicos brasileiros não se engaja ativamente com a igreja.

Segundo os dados, 72% dos entrevistados afirmam não frequentar a missa diariamente, enquanto 64% acreditam que não é necessário ir à igreja para cultivar a fé. Além disso, 80% não participam de atividades pastorais ou sociais organizadas pela Igreja. Um dado ainda mais preocupante para o Vaticano é que 61% dos católicos consideram a possibilidade de se tornarem evangélicos, e 55% se declaram católicos não praticantes.

O Censo de 2010 apontava que 64% da população brasileira era católica. No entanto, especialistas alertam que, mantida a tendência atual, os evangélicos poderão ultrapassar os católicos já em 2032. A projeção indica que os evangélicos representarão 39,8% da população, enquanto os católicos ficarão com 39,6%.

Culto na igreja Fonte da Vida l Foto: Divulgação

História, influência e transformações das igrejas em Goiás

A presença da Igreja Católica em Goiás remonta aos primeiros colonizadores que chegaram ao território. Segundo o historiador José Reinaldo, “a Igreja Católica chega a Goiás já com os primeiros colonizadores, europeus ou nascidos no Brasil, vindos do sudeste brasileiro”. Ele destaca ainda que existem duas formas distintas de catolicismo no estado: “uma prática institucional, sobretudo do clero letrado, e outra popular, influenciada por tradições orais vindas da Europa, que se mistura com culturas indígenas e africanas”.

Essa diversidade, segundo José Reinaldo, gerou uma grande variedade de devoções e práticas espalhadas pelo interior goiano. “Muitas das festas populares católicas, como a Romaria do Divino Pai Eterno, foram administradas por leigos por décadas, até que a presença institucional da Igreja se consolidasse”, explica. Para ele, “o povo criou sua própria maneira de ser católico, influenciando o cotidiano, suas orações e a interpretação da realidade”.

No campo político, o historiador destaca figuras marcantes, como Dom Emanuel Gomes de Oliveira, que teve papel fundamental na fundação de instituições educacionais em Goiás. “Ele foi responsável por iniciativas que vão desde os grupos escolares do interior até a primeira Universidade de Goiás, hoje PUC Goiás”, afirma.

José Reinaldo: “Há católicos e evangélicos tanto em pautas conservadoras quanto progressistas.” l Foto: Arquivo pessoal

Crescimento das igrejas evangélicas e fatores socioculturais

Nas últimas décadas, Goiás tem registrado um crescimento expressivo das igrejas evangélicas. José Reinaldo atribui esse fenômeno a vários fatores. “Vivemos num mundo em que as pessoas se sentem mais livres para escolher seu caminho religioso. A adesão familiar, que antes predominava, foi sendo substituída pela escolha pessoal, gerando até conflitos internos nas famílias, mas hoje essa convivência está mais tranquila”, diz.

Ele também aponta o êxodo rural como fator importante: “Em 1970, metade da população goiana vivia na zona rural, onde o catolicismo era mais forte. Hoje Goiás é um dos estados mais urbanizados do Brasil, e a cidade oferece mais opções religiosas, o que influencia as escolhas”. Outro diferencial, segundo ele, é a facilidade de formação dos líderes religiosos evangélicos, que “fortalece a identidade e fomenta a adesão”.

José Reinaldo observa que, historicamente, a Igreja Católica teve uma presença política vanguardista em Goiás, com líderes como Dom Tomás Balduíno, que enfrentou a ditadura militar e adotou pautas sociais progressistas alinhadas à Teologia da Libertação. “As igrejas evangélicas, por sua vez, foram mais conservadoras, especialmente em pautas relacionadas à tradição patrilinear”, destaca.

Porém, a partir dos anos 2000, esse cenário mudou. “A criação da Frente Parlamentar Evangélica marcou a inserção crescente dos evangélicos na política, enquanto a Igreja Católica perdeu espaço político e público, embora não tenha abandonado suas pautas sociais”, comenta. Para ele, hoje as diferenças políticas estão mais relacionadas à ideologia do que à filiação religiosa: “Há católicos e evangélicos tanto em pautas conservadoras quanto progressistas.”

Igrejas evangélicas crescem nas periferias l Foto: Fabio Costa/Jornal Opção

Pluralidade dentro do campo evangélico em Goiás

Questionado sobre as tensões entre vertentes evangélicas, José Reinaldo minimiza a ideia de divisões rígidas. “A sociologia da religião hoje questiona até os conceitos de pentecostal e neopentecostal. Há uma grande diversidade, inclusive com iniciativas digitais juvenis que misturam religião, economia e empreendedorismo.” Ele destaca que a liberdade individual predomina: “Muitas pessoas se identificam como evangélicas, mas não participam de nenhuma denominação formal, os chamados ‘evangélicos desigrejados’.”

Para o historiador, a influência das religiões nas pautas públicas decorre do fato de que “a crença religiosa é um dos componentes identitários dos indivíduos”. Ele ressalta que “as religiões colaboraram muito com o progresso social, especialmente na educação e saúde, com a Igreja Católica tendo um papel fundamental em Goiás”. Porém, alerta que “o problema ocorre quando essa identidade limita o direito de outras pessoas, como no caso de um médico que negue atendimento a quem não compartilha sua religião”.

Ambas as tradições, católica e evangélica, têm “papel marcante na inclusão social e superação da vulnerabilidade”, afirma José Reinaldo. Ele lembra que “a Igreja Católica chegou primeiro e deixou sua marca na fundação de escolas, hospitais e obras sociais, como as Santas Casas de Misericórdia”. Já os evangélicos “também passaram a atuar fortemente nesse campo”, mas “a prestação desses serviços básicos passou a ser responsabilidade do Estado, embora as religiões continuem importantes”.

Rivalidade entre católicos e evangélicos?

José Reinaldo rejeita a ideia de rivalidade entre as igrejas. “Não consigo pensar em rivalidade entre religiões, especialmente entre duas expressões irmãs do cristianismo. Houve momentos de hostilidade no passado, mas hoje as gerações mais novas se respeitam e convivem em fraternidade”, observa. Ele reforça que “não se pode sustentar a leitura de rivalidade, mas sim de complementaridade social”.

“O tamanho da cidade influencia a diversidade religiosa”, explica. “Nas cidades menores, as opções religiosas são mais limitadas, enquanto em Goiânia e região metropolitana há mais igrejas evangélicas.” Ele acrescenta que “Goiânia é considerada a capital mais evangélica do Brasil, embora dados recentes do IBGE ainda estejam sendo divulgados”.

Perda de fiéis pela Igreja Católica?

José Reinaldo afirma que “todas as religiões perdem fiéis atualmente, consequência das transformações sociais que afetam todas as instituições”. Ele destaca o crescimento dos “crentes sem religião”, que mantêm a fé sem filiação institucional. “Não se pode atribuir a diminuição dos católicos à falta de presença junto ao povo, porque o crescimento evangélico também tem se estagnado, exceto em periferias urbanas, onde a capilaridade evangélica avança com mais rapidez”.

“O fenômeno da conversão entre católicos e protestantes é comum hoje”, afirma José Reinaldo. “Antes a identidade religiosa era herdada da família ou do grupo étnico, mas agora prevalece a liberdade de escolha.” Ele lembra que “há mais casos de católicos que se tornam evangélicos, mas também há evangélicos que voltam ao catolicismo, e pessoas que migram entre várias religiões durante a vida, sem sofrimento ou desorientação”.

Com mais de 300 mil membros em Goiás, Igreja Fonte da Vida cresce dentro e fora do estado

A Igreja Fonte da Vida, fundada em Goiás, tem se consolidado como uma das maiores denominações evangélicas da região. Segundo o bispo supervisor Fábio Sousa, somente em Goiás a igreja já reúne mais de 300 mil membros.

Bispo Fabio Sousa: “estamos presentes em 120 cidades com cerca de 160 templos, em Goiás l Foto: Arquivo pessoal

“Estamos presentes em 120 cidades com cerca de 160 templos — e isso apenas em Goiás”, afirma Sousa. “Fora isso, ainda há os grupos que se reúnem em casas, as chamadas pré-igrejas.”

Apesar de sua origem goiana, a expansão da instituição religiosa extrapolou as fronteiras do estado. “Há algo curioso: por mais que a Igreja Fonte da Vida tenha surgido em Goiás, hoje ela tem mais templos fora do que aqui. Por exemplo, há mais templos da Fonte da Vida em São Paulo do que em Goiás”, destaca.

A diversidade de estruturas também chama atenção. “Templos de diversos tamanhos compõem nossa rede. Temos megaigrejas como a sede em Goiânia, ou as unidades em Jataí e Itaberaí, que são muito grandes para os padrões do interior”, diz Sousa. Apenas na capital goiana, são 49 templos espalhados por praticamente todas as regiões.

Segundo o bispo, a expansão da igreja passou por mudanças ao longo do tempo. “No passado, era mais fácil começar um templo da Fonte. Hoje estamos muito mais criteriosos. É necessário que haja um grupo se reunindo previamente e um pastor ou presbítero habilitado, inclusive com cursos de formação específicos.”

Sobre o crescimento do movimento evangélico, ele avalia que a força da mensagem cristã continua sendo um diferencial. “A expansão evangélica acontece porque a Igreja atende às necessidades da condição humana, com uma mensagem acolhedora. Muitas vezes isso não representa qualidade, mas sim quantidade. Mas é na Igreja que as pessoas são discipuladas. E, quando são discipuladas por princípios bíblicos, a quantidade se torna qualitativa também.”

Igreja Fonte da Vida em Goiânia l Foto: Arquivo pessoal

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