O livro que está sendo mais discutido na Argentina sobre o polêmico presidente do país é “Laboratório Político Milei — El Primer Año em Sillón de Rivadavia” (Ariel, 231 páginas), de Liliana de Riz, doutora em Sociologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, sob orientação de Alain Touraine.
Em abril deste ano, Liliana de Riz concedeu uma notável entrevista à “Ñ”, revista mensal do Clarín, que merece comentários.
A socióloga diz que se comemora a queda da inflação e o superávit fiscal como se os problemas da economia argentina estivessem, finalmente, resolvidos. O custo de vida continua alto — assim como a pobreza. O livro “Poesía Completa”, de Julio Cortázar, sai a 223,14 reais (44.999 pesos). Caríssimo para os brasileiros e, muito mais, para os argentinos. A obra faz sucesso na Argentina, onde o autor de “O Jogo da Amarelinha” é reverenciado, inclusive em cafés.
“Os problemas estruturais da Argentina são tão grandes e tão antigos que não basta uma estabilização se” o governo “não empreender as conhecidas, necessárias e sempre pendentes reformas trabalhista, tributária etc”, assinala Liliana de Riz.

A socióloga diz que, apesar do desgaste das oposições, Milei não tem forte apoio parlamentar. Por isso, os confrontos são previsíveis. Em maio, o ex-presidente Mauricio Macri, que apoia o governo “libertário”, criticou o presidente por não defender mais transparência nos negócios públicos.
Milei é um outsider do século 21
Milei é um político do passado militando no presente? Liliana de Riz sugere que não. “É um outsider do século 21 e faz coisas imprevisíveis. Não funciona seguindo critérios com os quais o avaliamos, porque se permite ser soez, usa uma ira fanática e isso se tolera.” (Quem tolera não é a autora, mas parte das pessoas.)
No livro, Liliana de Riz diz que, paradoxalmente, Milei representa ruptura e, ao mesmo tempo, continuidade. “Não é uma excepcionalidade aberrante?”, inquire o repórter Osvaldo Aguirre, do “Clarín”.
A pesquisadora diz que “não é aberrante porque sua lógica de governo, como a de qualquer populismo, seja de direita ou de esquerda, está centrada na polarização”.
“A figura de Cristina Kirchner é um espelho de Milei no modo de fazer política. Não se pode entender Milei sem o kirchnerismo. Essa continuidade reduz a cota de assombro que podemos ter ante o escândalo da criptomoeda [problema já de Milei]”, frisa Liliana de Riz.
“Tivemos duas décadas de uma cleptocracia descarada [nos governos de Néstor Kirschner e Cristina Kirschner], que foi tolerada”, postula a socióloga. Porque tolerada Liliana de Riz não diz. Mas tudo indica que os subsídios ao transporte coletivo, ao gás e à energia elétrica resultaram em apoio popular.

Sem os programas sociais, ou com eles em menor escala, a pobreza — a miséria — elevou-se. Milei governa mais para o mercado do que para a sociedade. Juan, zelador de um edifício em Palermo Soho, o definiu assim para o Jornal Opção: “É um perverso”.
À noite, nas estações de metrô, nas agências bancárias que têm caixas eletrônicas e, mesmo, nas ruas, há uma quantidade imensa de pessoas dormindo.
Um jovem me disse que é do interior, mas pede esmola em Buenos Aires. “No interior não tem turista. Os turistas dão dinheiro”, disse. Ao lado, uma mulher estendeu um lençol para vender camisas de clubes de futebol. A mais barata, do Boca Juniors, custa 13 mil pesos, quer dizer, 64 reais. Numa loja, da Avenida Corrientes, custa entre 250 e 300 reais, dependendo do modelo.
“As excentricidades deste sr. [Milei] são uma continuidade aumentada e invertida do kirchnerismo”, avalia Liliana de Riz. O empobrecimento e a desigualdade social, ao contrário do Brasil, estão em franca expansão. A miséria existia, mesmo com o apoio do governo dos Kirschner aos pobres, mas, com Milei, agravou-se.
Presidente é reconfiguração de Menem
Ignacio Zuleta, citado pelo Clarín, percebe Milei “como parte do espectro do peronismo”.
Liliana de Riz concorda com Ignacio Zuleta. “O peronismo do interior é mais conservador e encontra em Milei uma reconfiguração do que foi [Carlos] Menem” (1930-2021 — governou a Argentina de 1989 a 1999).

A socióloga enfatiza que a audácia para provocar uma mudança e criar expectativa de um futuro promissor, fundada numa liderança (com retórica) tonitruante, segue a cartilha de Juan Domingo Perón e Carlos Menem.
“Como o governo de Milei é um experimento aberto, o livro tem mais perguntas que respostas”, anota Liliana de Riz.
“A primeira pergunta é se se trata de uma mudança para uma nova ordem ou de uma transição para outro ciclo de ilusão e desencanto ao qual estamos largamente habituados”, especula a socióloga. “Milei não caiu do céu: tem a ver como se transformou a sociedade argentina e com as frustrações de quatro décadas de democracia.”
Liliana de Riz diz que há um fenômeno subterrâneo mal avaliado por todos e que já pôde ser percebido na eleição de 2017. “Naquele momento, escrevi um artigo que rastreava um fenômeno: setores populares, que antes votavam no peronismo, haviam votado em [Mauricio] Macri [o candidato da direita empresarial].”

Houve uma “fragmentação” entre os eleitores pobres. Muitos deles — os “pobres com expectativas”, que em geral trabalham por conta própria (como motoristas de Uber, por exemplo) — acompanharam Macri, abandonando o peronismo.
Do outro lado, havia o que Liliana de Riz chama de “pobres resignados”, abandonados pela sociedade e ganhando migalhas dos governos. “Eram pessoas que o Estado não protegia e que sofreram ainda mais durante a pandemia” da Covid.
Por sinal, entre abril e maio, circulando pelas ruas de Buenos Aires, ouvi, de várias pessoas, que “uma coisa é o peronismo, outra coisa é o kirchnerismo”. O primeiro é mais bem avaliado. O kirchnerismo teria “corrompido” o peronismo. Ouvi também que os governos de Néstor Kirchner e Cristina Kirschner eram “bons” para os pobres. Admitem que “roubavam”, mas “não esqueciam os pobres”.
Perguntei sobre Alberto Fernández. Ninguém, nem os peronistas, tem apreço pelo peronista. “Esse não”, me diziam. Criticam o que chamam de “sua incompetência” e o fato de ter espancado sua mulher.

“Não é do bem”, me disse sobre Alberto Fernández uma bem-informada livreira da Cúspide Libros, na Feria Internacional del Libro de Buenos Aires.
A jovem me convenceu a comprar “Los Oesterheld”, livro de Fernanda Nicolini e Alicia Beltrami que conta a história do autor da historieta “El Eternauta”, que rendeu uma série da Netflix, com o ator Ricardo Darín. A cruenta ditadura dos generais da Argentina matou dez pessoas da família de Héctor Oesterheld.
Liliana de Riz diz que é preciso reformar o Estado, como queria Raúl Alfonsín, na década de 1980. “Mas Milei quer arrasá-lo. No que vai resultar, não sabemos.”
Populismo acima de qualquer mediação
A socióloga pontua que “o populismo é o meio de exercer o poder por meio de uma polarização: povo-oligarquia, povo-casta. Com essa polarização o líder está legitimado para uma tarefa acima de qualquer mediação”.

“O Congresso não existe porque o líder tem uma missão histórica para a qual as instituições não podem ser obstáculo”, analisa a pesquisadora. No Brasil, no momento, há dois populismos em guerra: o bolsonarista e o lulopetista. O bolsonarista acaba sendo pior porque, golpista, atentou contra a democracia e não respeita as instituições.
“Milei conquistou o apoio de uma massa disponível que buscou sair do pessimismo opressor e encontrar uma expectativa de futuro.” O presidente “despertou entusiasmos incríveis, porque permitiu canalizar a fúria interior, digo eu, ainda que nunca adotei a veia da explicação psicológica”, declara Liliana de Riz.
A pesquisadora destaca que “Milei diz que vai fazer — está fazendo — o que ninguém se animou a fazer antes e que é o único que sabe e que tem a coragem para fazê-lo. E muitos o percebem assim, como um personagem extraordinário”.
Nas proximidades do Rosedal, na hamburgueria Cobra, uma atendente, de pouco mais de 20 anos, me disse: “Milei é revolucionário. Mas precisa de mais tempo para pôr em prática suas ideias de mudança”.
Percebi, em oito dias na Argentina, que o país permanece dividido. Mas há muitos apoiadores de Milei entre os jovens.

Numa lanchonete-restaurante, o garçom Lautaro — fã do jogador argentino e de Neymar — sugeriu que apoia o governo do “libertário”. Mas não quis muita conversa. Olhando para os lados, fez um gesto significativo com uma mão, sugerindo que sua cabeça poderia ser “cortada” se ficasse discutindo política no ambiente de trabalho.
O anti-milerismo também é forte. Vários argentinos me disseram que o mercado internacional vai tentar “salvar” Milei como fez com o general Pinochet no Chile: injetando dólares na economia, como os primeiros 21 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI)
Nas ruas, todos os argentinos, mesmo os que apoiam Milei, reclamam do custo de vida. Os preços dos alimentos e dos aluguéis estão impraticáveis.
Estudantes de Medicina de outros países, como o Brasil, e estão abandonando o curso. Na Recoleta, um jovem peruano me disse que a família está com dificuldades para pagar as mensalidades. Reclamou também do valor do aluguel.
Uma venezuelana, motorista de Uber e casada com um enfermeiro intensivista colombiano, frisa que seu aluguel é calculado em dólar, não em peso. O automóvel que dirige é alugado. Para cobrir as despesas, trabalha 12 horas por dia. Me levou do apartamento alugado de particular — Airbnb — ao aeroporto às 7 horas da manhã.
Nos dias em que estive na Argentina, entre abril e maio deste ano, um real valia entre 192 e 202 pesos. Mas que não se entusiasme o turista. O peso é uma moeda desvalorizada e o valor dos produtos é sempre elevado. Quase não há nada barato. Quase tudo é muito caro.
Ao contrário do custo de vida, a inflação, paradoxalmente, está em baixa.
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