“Eu rasgo o câncer… eu curo a leucemia”, promete o pastor. É modernidade à brasileira?

Halley Margon

Nos interiores do Vaticano, sede da monarquia eclesiástica absoluta dos católicos, 133 cardeais elegeram um novo papa, Leão XIV. Dizem que o americano-peruano é progressista, discípulo de Francisco, o papa argentino.

I

Ele garante ter 1,2 milhão de seguidores, e deve ser verdade. É gente demais, claro. Ou talvez não, se considerarmos a população do planeta e seu crescimento nos últimos 50 anos — são 8 bilhões de habitantes, eram 4 bilhões em 1975, de acordo com o Worldometer.

Então, é melhor relativizar. Porque quase tudo se tornou superlativo: o número de crentes nos templos, de fãs nos shows de música, de torcedores nas arquibancadas, de entusiasmados convictos de ultradireita, tanto quanto o obscurantismo que governa os espíritos, a anulação da sensibilidade e dos sentidos.

Mas não de todos os sentidos, naturalmente, porque o paladar para as guloseimas e os manjares e os vinhos, assim como o olfato para gamas infindáveis de perfumes, esses, se sofisticaram e seguem se sofisticando talvez como nunca antes — imagine que o melhor dos vinhos degustado por Nero (para voltarmos novamente ao romano) não chegará aos pés do mais barato dos rascantes vendidos num boteco de ponta de rua.

O dono desse significativo capital de seguidores de internet e autor da promessa que titula esse artigo é um jovem pregador de Carapicuiba, no interior de São Paulo, chamado Miguel Oliveira. Aos 15 anos de idade, ele “afirma ter iniciado sua jornada religiosa aos 3 anos, após relatar uma cura milagrosa de surdez e mudez”.

Um dos que vieram a público defender a figura do novo profeta é, e não deveria mesmo deixar de ser, o influencer Pablo Marçal.

O barco, quer dizer, a arca é a mesma e há espaço bastante a ser explorado e ocupado. Na rabeira da fama repentina (entre nós, os mortais não ungidos pela graça) as imagens de dúzias de novos profetas, porque é assim que Miguel Oliveira se autodenomina, nada menos que profeta, vão aparecendo.

Aparentemente, é um ramo em franco crescimento. Nada de novo, assim funciona o mundo da mercadoria. É preciso atender a tantos públicos (ou mercados) quantos sejam possíveis, além de inventar novos — crianças, mulheres, mulheres jovens e senhoras, anciãs, pretos e brancos e pardos e amarelos.

Que venham então as mais variadas gamas de profetas mirins e missionárias púberes etc. — a construção da identidade, como se sabe, é peça sine qua non para o estabelecimento do vínculo.

II

Para o dogma católico, o fiel será salvo (da danação eterna, do fogo do inferno) graças à fé, suas boas obras na terra, ao batismo e à eucaristia.

Para os protestantes, será salvo independentemente de seus bons ou maus atos terrestres e “suas boas obras são consequências da fé verdadeira, mas não contribuem para a salvação”.

Para essas novas denominações que não param de surgir, nem de crescer (segundo o IBGE há mais de 100 mil templos evangélicos espalhados pelo país e existem entre 20 mil e 40 mil denominações ou ramificações diferentes), a graça suprema parece ser, antes de tudo, a ascensão, não mais aos céus ou ao paraíso, mas social — ou o enriquecimento acelerado para os que se destacarem na transmissão da Palavra.

A crença pode ser no divino e no intangível, mas a recompensa tem que ser imediata e material. O negócio, o pequeno negócio na maioria dos casos (como o do autônomo que formou a base eleitoral do Pablo Marçal, por exemplo), ou médio ou grande (como o do Silas Malafaia, proprietário da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e mentor de Jair Bolsonaro), precisa seguir crescendo como qualquer outro, e o que busca o crente presente aos cultos é prosperar tanto quanto o próprio pastor e sua igreja, e presenciar, ali mesmo, a exibição de milagres como o da multiplicação dos pães e exemplos comprovados de casos (cases) que deram certo por conta da Graça.

III

E, no final das contas, qual o problema que o evangelizador (o pregador, o messias, o profeta, o apóstolo — varia muito a hierarquia dos encarregados da empresa divina na Terra) seja uma criança de 5 anos de idade, um adolescente, uma púbere ou um marmanjo esperto?

Que nexos minimamente coerentes se espera encontrar nas suas leituras do livro sagrado?

Adorno: objetivos da propaganda fascista “são autoritários e irracionais” | Foto: Reprodução

Num pequeno texto sobre a propaganda fascista, o filósofo alemão Theodor Adorno diz que os objetivos dessa propaganda “são autoritários e irracionais, (e) não podem ser alcançados por meio de convicções racionais, mas somente através de um hábil despertar de ‘uma parte da herança arcaica do sujeito’ (Freud)”.

A lógica interna da propaganda fascista parece ser muito semelhante àquela que guia a pregação desses novos pastores.

Vale literalmente qualquer interpretação e o que quiser encontrar ali, o orador procura na própria cachola e lá vai estar. Alhos com bugalhos e seja o que o Senhor determinar.

A rigor, importa pouco o conteúdo das arengas, admoestações ou súplicas. Importa é que aquele que as emite esteja investido pela aura de autoridade que o crente está disposto a lhe conceder. O que vale é a fé da qual o próprio crente é portador.

Lá no palco, de todos os tamanhos, alguns tão ou mais espetaculares que o de estrela pop em Copacabana, está o seu pastor e ele, o crente, definitivamente o que quer é ser guiado. Ele tem sede de obediência (para usar a expressão do psicólogo francês Gustave Le Bon citada por Freud em “Psicologia das Massas e Análise do Eu”).

IV

Silas Malafaia e Jair Bolsonaro: aliados políticos e religiosos | Foto: Reprodução

Na vasta planície destinada aos empreendedores do Senhor e seus seguidores, as vertentes antes exploradas tanto pelo catolicismo quanto pelo protestantismo tradicional e sua variante calvinista já não atendem mais às demandas espirituais desse próspero e admirável mundo novo.

Eram demasiadamente sofisticadas e exigentes, urgia substitui-las — timidamente, por enquanto, alguns ramos do catolicismo temerosos de desaparecer tentam se adaptar, copiando dos rivais que avançam sobre o seu território algumas de suas técnicas e procedimentos.

O que agora se exige é qualquer coisa que vá mais diretamente nas veias, como uma droga sintética, como o crack.

V

Difícil saber quantos daqueles 100 mil templos de evangélicos ou das quase 40 mil denominações dão ou darão amparo político para o bolsonarismo.

Há evangélicos, assim como católicos e protestantes, que se alinham com a esquerda, ou pelo menos com Lula da Silva, do PT. Mas dificilmente será uma extrapolação apostar que a maioria despenca com gosto para a banda da ultradireita e segue Bolsonaro (ou o seu ungido), como se ele próprio fosse o Messias (e, ao menos no nome, é).

Halley Margon, escritor, é colaborador do Jornal Opção.

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