As cigarras entendem aritmética?

Artigo originalmente publicado em 12 de dezembro de 2021

Os asteroides já tinham um centro de massa antes de os físicos inventarem o conceito da gravidade? E quantos planetas existiam antes de os humanos inventarem números para contá-los? As 150 espécies da família das cigarras (Cicadidae) têm ciclos de vida em que passam de um a 17 anos enterradas na fase jovem (ninfa), mas há muito mais espécies que passam 7, 11, 13 e 17 anos enterradas. Todos números primos! Por que nenhuma espécie escolheu passar 16 anos no subterrâneo? As cigarras entendem aritmética?

Essas perguntas têm em comum a questão filosófica subjacente: existe razão sem uma racionalidade para interpretá-la? Os três exemplos acima foram retirados do excelente livro “Intuition Pumps and Other Tools for Thinking” (2013, W. W. Norton & Company), sem tradução para o português. O autor, o filósofo americano Daniel C. Dennett, é considerado um popstar entre os pensadores por seu estilo ácido, direto e simples.

Daniel C. Dennett é precedido por milênios de filosofia na área da investigação da consciência. Seu ramo da filosofia se preocupa com as questões: “como atribuímos razão aos fenômenos naturais?”, “como sabemos que sabemos?”, “o que é essa voz interna que parece conversar conosco?”, entre outros. Mas a novidade trazida por Dennett está no método de sua investigação. Mais do que em outros filósofos, ele baseia seu trabalho na investigação científica de biólogos evolucionistas, matemáticos, neurologistas e engenheiros da computação. 

Um dos principais guias para Dennett é a evolução darwiniana. Biólogos evolucionistas buscam respostas para a pergunta: por quê. Por que, em particular, as cigarras passam 13 e 17 anos enterradas na fase jovem, mas nunca 15 ou 16? Por que essa sincronicidade impressionante surgiu em diferentes espécies da família Cicadae? E por que o período entre os episódios de reprodução sexual deve ser tão longo?

A resposta é que, ao passar um grande número primo de anos entre as aparições, as cigarras minimizam a probabilidade de serem descobertas. Se o tempo fosse curto, elas poderiam ser rastreadas como um banquete previsível por predadores que aparecem a cada dois anos, ou três anos, ou cinco anos. Se as cigarras tivessem uma periodicidade de, digamos, 16 anos, então seriam um petisco raro para predadores que aparecem todos os anos, mas uma fonte mais confiável de alimento para predadores que aparecem a cada dois ou quatro anos. Se a duração de seu período reprodutivo não for um múltiplo de qualquer número inferior, não vale a pena para predadores prever e aguardar a emergência das cigarras. 

Daniel C. Dennett escreve: “Deve ficar claro que a validade dessa explicação não depende de nenhuma hipótese que sugira que as cigarras entendem aritmética, muito menos o conceito de números primos. Nem sugere que compreender números primos é favorecido pela seleção natural. A seleção natural é cega para as motivações, mas pode explorar propriedades importantes da aritmética sem ter que entendê-la de forma alguma”. 

Assim, para Dennett, a seleção natural é um localizador automático da razão; ela “descobre”, “endossa” e “enfoca” razões ao longo de muitas gerações. As aspas são para nos lembrar que a seleção natural não tem uma mente, ela mesma não tem motivos, mas, no entanto, é competente em refinar comportamentos como se tivesse intencionalidade. Este é em si um exemplo de competência sem compreensão.

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