General Freire Gomes foi a pedra angular para golpe não ir adiante

O excesso de informação dos tempos atuais faz com que alguns acontecimentos chave no decorrer da história recente acabem parecendo menos importantes. A recordação de um acontecimento de poucos anos atrás mostra como o futuro do Brasil esteve atrelado ao destino de seu “primo rico” do Norte.

Em 2020, quando os Estados Unidos estavam vivendo os megaprotestos do movimento Black Lives Matter, consequência do assassinato por asfixia do negro George Floyd por policiais brancos de Minnesota, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, bateu de frente com os manifestantes: em 1º de junho daquele ano, mandou dispersar uma manifestação pacífica em Nova York e saiu da Casa Branca para atravessar a rua em frente e posar com uma Bíblia na entrada da Igreja de St. John. Os fotógrafos e cinegrafistas registraram a cena, que tinha como coadjuvante o general Mark Milley, chefe do Estado Maior.

Ciente da repercussão que havia tido o flagrante, Milley foi a público declarar que cometera um erro ao se deixar ser filmado e fotografado naquela circunstância. Motivo: dava a impressão de que as instituições militares estariam se envolvendo em uma questão política do governo de ocasião. Então, pediu perdão à Nação e ressaltou que as Forças Armadas existiam para servir somente à Constituição e nada mais. Naquele momento, com seu discurso, o general desautorizava Trump a tirar proveito eleitoral do que havia ocorrido na Igreja de St. John e encerrava uma polêmica que ameaçava enredar perigosamente a instituição que comandava.

E se o militar que controlava a maior máquina de guerra do planeta resolvesse aderir politicamente ao plano do ex-presidente (e possivelmente, o próximo) dos Estados Unidos? O que teria acontecido no Capitólio, naquele 6 de janeiro de 2021, teria tido o mesmo desenlace?

Para a maior República do mundo, o roteiro alternativo poderia ter sido o primeiro golpe de Estado de sua história. Derrotado nas eleições e acusando o sistema de tê-lo roubado, Donald Trump insinuou a seus apoiadores a ideia de uma insurreição contra o resultado das urnas, o que poderia ser concretizado a poucas centenas de metros dali, em um “protesto” no Capitólio. Com o apoio ou, ao menos, a divisão das Forças Armadas, seria um cenário jamais visto no país berço da democracia.

E, sendo os Estados Unidos a nação de maior influência sobre o Brasil em vários fatores – geopolítico, econômico e até cultural, entre outros –, como isso poderia ter repercussão no destino destas terras? Ora, se mesmo tendo no poder Joe Biden – cuja vitória sobre o aliado e “amigo” Jair Bolsonaro (PL) viu como uma fraude –, houve, como a semana passada deixou bem explícito, o planejamento de um golpe por aqui, basta fazer o exercício do jogo de causas e consequências caso o titular por lá fosse um Trump autocrático.

Mais ainda: para que a quebra da institucionalidade ocorresse por aqui, está claro que não precisaria haver nenhum apoio direto do governo dos EUA. Bastaria uma neutralidade, ou uma não interferência, no processo. A questão é que Biden não era Trump e o recado dado – e repetido algumas vezes – sobre a confiança que Washington depositava no sistema eleitoral brasileiro em geral e nas urnas eletrônicas em específico, bem como os alertas sobre algumas perdas de privilégio dos militares daqui em termo de cooperação com os militares de lá, desestimularam alguma iniciativa de fato do Alto-Comado do Exército e das demais Forças Armadas nacionais.

Haveria adesão das Forças Armadas em caso de, ao menos, vistas grossas dos EUA? Seria possível, sim, já que não lhes agradava – como não agrada – o retorno de Lula e do PT ao poder

E foi essa falta de respaldo dos companheiros de farda da ativa e das mais altas patentes que causou a decepção da cúpula bolsonarista, especialmente dos militares de pijama do governo: eles tentaram puxar a execução de um golpe já rascunhado desde a vitória eleitoral de 2018 – após a qual Bolsonaro já começa a falar que havia sofrido fraude, mesmo sendo o vencedor –, mas não “convenceram” quem deveriam convencer. Especialmente o general Marco Antônio Freire Gomes, o comandante do Exército, a força militar hegemônica sem a qual um golpe de Estado não prospera por aqui. Entende-se, daí, a irritação do então candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, o general Walter Braga Netto. Irritado, ele chegou a chamar Freire Gomes de “cagão”, por não aderir ao plano golpista.

Haveria adesão das Forças Armadas em caso de, ao menos, vistas grossas dos EUA? Seria possível, sim, já que não lhes agradava – como não agrada – o retorno de Lula e do PT ao poder e havia uma fake news em qual se escorar: o suposto sistema eleitoral fraudulento, a mesma narrativa da extrema direita do Norte. Alguns, ao que está relatado, nem precisariam de tanta saliva para toparem, como o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier.

Mas nada andaria sem o Exército. E, depois de fracassar na tentativa de suspender ou adiar as eleições e também de não conseguir nada de concreto em termos de fraude nas urnas com hackers e outros especialistas em tecnologias, restava ter o sim de quem liderava os homens de verde-oliva.

A pressão sobre o general, relatada no material das investigações da Operação Tempus Veritatis, nem mesmo era novidade. Em maio, quando foi preso Mauro Cid, o tenente-coronel e braço-direito de Bolsonaro, vieram a público seus diálogos com o ex-major Ailton Barros, expulso do Exército e bem próximo do ex-presidente. “Tem que continuar pressionando o Freire Gomes para que ele faça o que tem que fazer”, disse Barros a Cid, em 15 de dezembro de 2022. E prossegui: “Até amanhã à tarde, ele aderindo… bem, ele [Freire Gomes] faça um pronunciamento, então, se posicionando dessa maneira, para defesa do povo brasileiro. E, se ele não aderir, quem tem que fazer esse pronunciamento é o Bolsonaro, para levantar a moral da tropa. Que você viu, né? Eu não preciso falar. Está abalada em todo o Brasil.”.

Não houve pronunciamento do general. Bolsonaro preferiu escapar para a Flórida. Virou o ano e veio o 8 de Janeiro. O resto todos já sabem, embora todos precisem saber mais.

A história de Freire Gomes e seu papel no desenrolar desse enredo tétrico, por exemplo, devem ser mais bem esmiuçados. Como havia comandantes de tropas, seus subordinados, dispostos a bancar a aventura de Bolsonaro e sua corja – qual outra qualificação mais branda dar para golpistas? –, seu posicionamento parece ter sido fundamental para que o Estado democrático de Direito prevalecesse.

No fim de tudo, vale o que havia predito o general e hoje senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ainda no começo do governo do qual era o vice-presidente: “Se nosso governo falhar, errar demais, porque todo mundo erra, mas, se errar demais, não entregar o que está prometendo, a conta irá para as Forças Armadas”, disse, em abril de 2019. Errou demais e, no caso, “errar” é um imenso eufemismo.

A experiência com Bolsonaro não poderia ser mais amarga para os militares. Talvez não haja hora mais definitiva nem momento mais apropriado para que os homens das Forças Armadas ouçam e façam o que disse o jurista Sobral Pinto: “Os militares, tendo proclamado a República, julgaram-se donos da República e nunca aceitaram não ser os donos da República. Enquanto a Presidência da República e os cargos eminentes do País não voltarem para os civis e continuarem nas mãos dos militares, nós continuaremos nesta situação terrível em que nos encontramos, de falência e de corrupção.”

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