Jornalistas e escritores devem usar inteligência artificial pra escrever reportagem e literatura?

Dois estudantes de um curso de Jornalismo de Goiânia enviaram perguntas parecidas para a redação que podem ser resumidas assim: “O Jornal Opção já está usando inteligência artificial para elaborar artigos e reportagens? Seus jornalistas avaliam isto como ético?”

Antes de responder às perguntas, por sinal pertinentes, vou apresentar duas questões.

1

Traduções do “Washington Post” pelo “Estadão”

O jornal “O Estado de S. Paulo” transcreve excelentes reportagens do jornal “Washington Post” com traduções feitas com o uso de inteligência artificial, com intervenções, quando necessárias, da redação. É lícito?

Conferi duas reportagens traduzidas com base em inteligência artificial. Não sei qual o grau de interferência da redação, de alguém que conhece bem inglês e, claro, português — os idiomas pontos de partida e de chegada —, mas as traduções são consistentes. Aqui e ali, há uma arestazinha, mas, no geral, não há nenhum problema que impeça a perfeita compreensão do conteúdo dos textos.

É relevante que o “Estadão” informe ao leitor que a tradução tenha sido feita a partir de inteligência artificial. É uma atitude ética, mostra seriedade.

Mas será que a tradução feita por um especialista não teria mais qualidades e refinamento? É provável. Um tradutor expert poderia acrescentar uma informação extra, quer dizer, uma nota (uma nuance) esclarecendo determinado ponto.

2

Escritora japonesa usa inteligência artificial

O romance “Tokio-to Dojo-to” (“Torre da Compaixão de Tóquio”), da escritora Rie Kudan, alcançou tanto sucesso que acabou por ganhar o Prêmio Akutagawa, um dos mais relevantes do país de Yukio Mishima.

O júri avaliou “Torre da Campaixão de Tóquio” como dotado de uma arquitetura literária tão “perfeita que é difícil encontrar defeitos”.

Rie Kudan: escritora japonesa que usou inteligência artificial para escrever romance | Foto: Reprodução

Entretanto, durante a premiação, a famosa Rie Kudan revelou que usou “todo o potencial da IA para” escrevê-lo. A inteligência artificial, por sinal, é assunto exposto na obra.

Àqueles que a ouviam, decerto perplexos, Rie Kudan esclareceu que “cerca de 5%” de seu texto foram gerados por IA. De acordo com as reportagens que li, a escritora não esclareceu quais foram os trechos elaborados com o apoio do ChatGPT.

O que dizer? Sem ter lido o livro, é impossível avaliar o resultado. A escritora diz ter “dialogado”, de maneira eficiente, com a IA.

Tenho interesse pelo romance? Não muito, mas tenho algum. Gostaria de verificar, além da história em si, como Rie Kudan estruturou, com o apoio da IA, a obra. Como lhe deu nexo, tendo uma, por assim dizer, coautoria.

Na semana passada, eu disse a um grupo de amigos que havia relido “O Amanuense Belmiro”, do mineiro Cyro dos Anjos (1906-1994) — aqui e ali, mas não sempre, lembrou-me o romance “Oblómov”, do russo Ivan Gontcharóv —, e “Avalovara”, do pernambucano Osman Lins (1924-1978 — um gênio literário que viveu apenas 54 anos).

Os amigos ficaram perplexos e, com palavras diversas, disseram mais ou menos o seguinte: “Por que não está lendo os russos, os ingleses, os italianos, os franceses e os americanos?”

Meio sem graça, respondi que leio os estrangeiros também, mas, no momento, tenho lido autores brasileiros, tanto prosadores (os citados, e mais João Antônio, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Hugo de Carvalho Ramos, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e a adorável Lygia Fagundes Telles) quanto poetas (Jorge de Lima, Mário Faustino, Angélica de Freitas, Gabriel Nascente, Aidenor Aires, Valdivino Brás, Ronaldo Costa Fernandes, Salomão Sousa, Delermando Vieira, Régis Bonvicino). Safras antigas e novas.

Sei que é preciso ficar atento às modas estranjas — up to date —, mas tenho recaídas, quiçá sentimentais, por certos autores, como José Lins do Rego, que leio com imenso prazer. “Menino do Engenho” é belíssimo. Não estou dizendo que é melhor — superior — do que Machado de Assis, de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Graciliano Ramos, de “Vidas Secas” (que releio todo ano, sempre percebendo novas nuances, como sua poesia proseada e duramente anti-sentimental), e Guimarães Rosa, de “Grande Sertão: Veredas”.

Autores medianos, mas bons, como José Lins do Rego e Jorge Amado (que leio desde os 8 anos, não raro deliciado, o que não é de bom tom falar publicamente), contribuem para atrair e direcionar o gosto dos leitores, às vezes mas não sempre, para a obra de autores mais sofisticados, como Machado, Graciliano, Rosa, Osman Lins e Clarice Lispector e Cristóvão Tezza.

Terminei de ler “Mário Faustino — Uma Biografia (Secult, IAP e APL, 399 páginas), de Lilia Silvestre Chaves. É uma das melhores biografias que li em meus 62 anos. A professora da Universidade do Pará escreveu um livro brilhante que esmiuça, de maneira abrangente e perspicaz, tanto a obra quanto a vida do poeta, crítico literário, ensaísta, jornalista e tradutor piauiense (considerado paraense).

Mário Faustino morreu em 1962, aos 32 anos —num acidente de avião, nos Andes —, mas, como Rimbaud, “viveu” muito em pouco tempo. Como escrever — e muito bem, como faz — a respeito de um bardo que viveu “pouco” e sobre o qual não há outras biografias, nem hagiografias? Lilia Silvestre Chaves leu suas cartas para os amigos, como Walmir Ayala e Benedito Nunes (o notável filósofo e crítico literário paraense), examinou toda a sua poesia e sua crítica literária, observou com extrema atenção e sensibilidade (poética, não melodramática) as suas fotografias e nos presenteou com um texto — uma síntese — fabuloso. Exploratório, mas que abre vários caminhos.

O projeto gráfico é tão refinado e belo — uma obra de arte em si — que procurei saber, de cara, quem era seu autor. Trata-se de Paulo Afonso Campos de Melo. Merece prêmio. A obra é tão delicada e perfeita que comecei a grifar e a usar marca-texto (rosa e amarelo) — com produtos chineses — e percebi que estava manchando as páginas. Parei a leitura na hora. Fui a uma papelaria da Vila Nova, em Goiânia, e comprei um marcador permanente, de ponta fina (0,4mm), e voltei à leitura e aos grifos.

O leitor há de perguntar: “Por que a lembrança de Mário Faustino num texto sobre inteligência artificial?” Porque, na página 275, Lilia Silvestre Chaves escreve, citando o poeta poundiano (e admirador de Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e João Cabral de Melo Neto): “Mário Faustino refletia sobre a sua certeza de que ‘a cibernética, graças aos deuses, nunca poderá produzir poesia: a ária multifária de cada palavra é incomensurável; célula de átomos, incalculável, imponderável, indirigível’. Depois de haver repensado os próprios concretistas, Apollinaire, Pound e jogado com os dados de Mallarmé, o poeta de ‘Ariazul’ afirmava a sua certeza: ‘A poesia será sempre mágica, metafísica, jamais uma ciência exata, pura ou aplicada. Isto eu já sei, profundamente. Um saber para toda a existência, irretificável, confundindo-se com a própria existência, agindo sobre ela e modificando-a à sua imagem. Não há mudança possível, até a morte. Como sabes, há saberes assim, há certezas, por mais que indemonstráveis’” (o texto está inserto numa carta para Benedito Nunes, um dos grandes amigos do autor do brilhantíssimo livro “O Homem e Sua Hora”, de 1956).

Pode até ser que a inteligência artificial ajude algum escritor mediano a melhorar sua literatura, ao corrigi-la e ao dotá-la de uma gramática mais precisa, digamos. Porém, quanto à elaboração estética — num nível de Shakespeare, Goethe, Flaubert, Proust, Thomas Mann, Carlo Emilio Gadda, Lezama Lima, Vicente Huidobro, Oliverio Girondo, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto —, me parece que, ao misturar pesquisas, nem sempre bem mastigadas, dificilmente terá condições de forjar uma literatura de alta qualidade. A mistureba criada pela IA pode até pegar o melhor de vários autores, como os citados, mas certamente não conseguirá produzir uma síntese, uma novidade literária.

Não acredito, portanto, que a inteligência artificial vai criar literatura de primeira linha e inventiva, como a de Édouard Dujardin, Virginia Wolff, James Joyce, William Faulkner e Guimarães Rosa. Por isso, não tenho tanto interesse por livros escritos com a mãozona da IA. Quem nunca leu “Eneida”, de Virgilio, e “Paraíso Perdido”, de Milton, tem o direito de trocá-los pelas novidades geradas pelo ChatGP e outros? Se quiser perder tempo, abdicando daquilo que de melhor o ser humano criou, tem todo o direito.  Há, por sinal, coisas que não consigo entender, e deve ser preconceito, admito: como alguém pode achar Michel Houellebecq um “gênio literário” sem ter lido Stendhal, Flaubert, Proust e André Gide? É possível? Parece que é.

3

Uso de IA em reportagem de jornal

Retomando as dúvidas dos estudantes de Jornalismo, que se apresentam como Luiz Cláudio e Mário de Oliveira. A bem da verdade, não sei se a redação do Jornal Opção está usando inteligência artificial na elaboração de alguns textos. Se estou bem-informado, não está.

Entretanto, se algum jornalista estiver usando, mesmo sem autorização, não postulo que deva sofrer alguma reprimenda. Pelo contrário, se o uso for para melhorar a qualidade do texto, deve ser até recomendável. Assim como é importante que, no rodapé, o repórter esclareça que, ao elaborar o texto, usou IA.

A inteligência artificial é útil e incontornável. Quem ficar contra, adotando uma (o)posição radical, ficará para trás. A IA pode ajudar jornalistas em pesquisas e, mesmo, na elaboração de textos. Mas o repórter, ao usar a IA, precisa ter domínio do assunto enfocado. Porque, no caso da existência de erros nas pesquisas, como poderá corrigi-los?

O “New York Times” denunciou, recentemente, que a OpenAI, por meio do ChatGPT, divulgou pesquisas feitas em material jornalístico e as atribuiu à produção do jornal. Havia erros nos textos, mas não eram da publicação norte-americana. Eram das pesquisas da IA, que também, erram, como ficou provado.

O “Times” denunciou também que a OpenAI, via ChatGPT, fez pesquisas nos seus arquivos jornalísticos e divulgou como material original, ou seja, como fruto de suas pesquisas. Na verdade, pesquisou numa fonte confiável, que não foi citada, e não num ambiente vasto, e, por certo, inseguro.

Então, sumarizando, não sou contra o uso de IA artificial em reportagens e artigos. Sou favorável, com as reservas apontadas e com a sugestão de que se explique aos leitores que os textos foram elaborados com o uso de inteligência artificial.

Nunca usei inteligência artificial para escrever meus artigos e reportagens. Há quem pergunte se sou crítico literário. Não sou. Sou, na verdade, repórter de política, que escreve dezenas de textos (notas, que são pequenas reportagens, artigos e editorais). Em minha casa, quando sobra tempo, escrevo alguma coisa sobre literatura, mas como diletante, e não como crítico, que não sou nem pretendo ser. Na verdade, me considero muito mais um leitor interessado… em cousas díspares, como filosofia, literatura, poesia, crítica literária (adoro ensaios, como os de Silviano Santiago), ciência e história.

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