A Peste Escarlate, de Jack London: entretenimento no tamanho certo

Simone Athayde

Para quem gosta de ficção científica e de distopias, recomendo “A Peste Escarlate” (Literatura Clássica, 122 páginas), pequeno livro de Jack London, publicado em 1912, mas de atualidade impressionante ao colocar no enredo uma pandemia como fator de desestruturação para a humanidade. Usei o termo pequeno devido ao reduzido número de páginas, mas, no conteúdo e no poder da narrativa, é atraente e profundo em algumas análises que faz.

O livro se inicia com uma cena em uma estação de trem abandonada e tomada pela vegetação. Logo aparecem um velho e um adolescente que o conduz, cada qual vestido com peles de animais. Eles caminham pelo que foi um dia os trilhos do trem, até se depararem com um enorme urso que, embora ameaçador, segue seu caminho. Aí então descobrimos a ligação aparentemente inconcebível entre a linha do trem abandonada e os dois personagens que aparentam ser quase selvagens: o mundo havia passado por uma grande catástrofe provocada por um germe que matou praticamente toda a humanidade e acabou, assim, destruindo também todos os avanços tecnológicos, educativos e sociais daquela sociedade.

Os poucos sobreviventes passaram então a viver em um estado bruto, quase selvagem, vivendo da caça, da coleta e da pesca, sem cultura e sem educação, como no início da História. Com o decorrer da narrativa descobrimos que Granser, o idoso, é o avô de três netos criados nesse mundo selvagem, e que no ano de 2072 ele é o único que ainda se lembra dos dias anteriores à praga, chamada peste escarlate, que surgira 70 anos antes.

No intuito de preservar um pouco de dignidade nos atos e caráter de seus netos, Granser conta as histórias desse passado para eles, o que inicia uma narrativa dentro da principal. Como outrora ele fora professor de literatura em uma universidade, o protagonista ainda mantém certa habilidade com as palavras e o vocabulário rico, o que seus netos perderam por total inutilidade daquele aprendizado formal. O avô conduzirá os jovens e o leitor para aquele tempo que, conforme ele recorda, vivia o auge da civilização, mas no qual também havia a desigualdade social, a exploração dos pobres pelos ricos, as oligarquias que comandavam o mundo.

Com a praga mundial, o rancor dos explorados também explode em selvageria. O avô, num tom pessimista, narra a passagem do apogeu daquela civilização até sua derrocada: no mundo que sobrou, não há mais espaço para o conhecimento que não seja o da sobrevivência, mas ele deduz que o destino da humanidade será o de crescer novamente, incluindo produzir violências e dominação: “O grande mundo que eu conheci na minha infância e na minha vida adulta desapareceu. Deixou de existir. Sou o último homem que viveu os dias da peste e que conhece as maravilhas desse tempo longínquo. […] Mas estamos crescendo rapidamente e nos preparando para uma nova escalada em direção à civilização”.

Ao velho resta guardar alguns livros que seus netos não leem. Manter a esperança de que essas obras ainda possam ter utilidade também é objeto de suas reflexões que os jovens ouvem atentos, mas que não conseguem entender: “A pólvora virá. Nada pode detê-la: a mesma velha história, de novo e de novo. O homem se multiplicará, e os homens lutarão. A pólvora permitirá aos homens matar milhões, e somente desta forma, por fogo e por sangue, surgirá uma nova civilização, em algum dia remoto. E de que proveito será? Assim como a velha civilização passou, a nova também passará. […] Tanto faz se eu destruir aqueles livros da caverna — quer permaneçam, quer pereçam, todas as suas velhas verdades serão descobertas, e as velhas mentiras serão revividas e transmitidas”.

Alguns trechos do livro podem ser lidos como uma crítica ao sistema capitalista: “Nossos catadores de alimentos eram chamados de homens livres. Isto é uma piada. Nós, da classe dominante, éramos donos de todas as terras, de todas as máquinas, de tudo. Os catadores de alimentos eram nossos escravos. Pegávamos quase toda a comida que conseguiam, e deixávamos um pouco para que pudessem comer, trabalhar mais e conseguir mais comida para nós.”

Ao tentar explicar para os netos, que só conheciam o sistema de coleta, como eram os empregos e as formas de pagamento nos dias da civilização, ele fala: “Alguns poucos homens conseguiam comida para muitos. E os outros homens faziam outras coisas. Como você diz, eu falava, e recebia comida por isso, comida boa, comida bem-feita. Às vezes penso que a realização mais impressionante de nossa tremenda civilização foi a comida: sua inconcebível abundância, sua infinita variedade, seu maravilhoso sabor”.

Excluindo-se os mitos religiosos, “A Peste Escarlate” deve ter sido um dos primeiros livros a projetar um mundo pós-apocalíptico, e ao responsabilizar o fim do mundo a um germe, parece um tanto profético, pois como afirma o biologista Joshua Lederberg, vencedor do Nobel, a maior ameaça ao domínio do homem no mundo são os germes. Seguindo esse mote, a interessante série “The Last of Us”, por exemplo, utiliza como argumento uma infestação incontrolável de fungos como fator desencadeador de um apocalipse.

Nesse sentido, Jack London se antecipa na ficção por meio da voz de seu protagonista, que diz: “Houve avisos. Soldervetzsky, já em 1929, disse aos bacteriologistas que eles não tinham garantia contra alguma nova doença, mil vezes mais mortal do que qualquer outra que eles conheciam, surgindo e matando às centenas de milhões e mesmo aos bilhões. Você vê, o mundo micro-orgânico permaneceu um mistério até o fim. Eles sabiam que existia um mundo assim e que, de tempos em tempos, exércitos de novos germes emergiam dele para matar homens.” London também faz um exercício de futurologia em certas passagens do seu livro, na qual inclui o Brasil: “Em 1984 houve a Peste Pantoblástica, uma doença que surgiu em um país chamado Brasil e matou milhões de pessoas.”

Seja por ser entretenimento que pode ser consumido em pouco tempo, seja por ser literatura bem-feita, “A Peste Escarlate” merece receber um pouco do seu tempo, leitor.

Simone Athayde é escritora e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.

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