Brasil no limbo: entre a quebra do sistema e a realpolitik

Ninguém pode dizer que os políticos – e a política, por extensão – algum dia foram vistos com bons olhos pela população. Ainda que de perto sejam “abraçados” pelas pessoas comuns, eles formam uma categoria que tem como destino existencial ser criticada – em muitos casos, esculhambada – pela opinião pública. Não que boa parte deles não mereça, mas o próprio ofício já impõe naturalmente a polêmica, por causa do modo, digamos, heterodoxo à moral de conduzir seu trabalho, em meio a votações, acordos e dissensões.

Não vai se encontrar em nenhuma quadra da história algum veículo de comunicação que tenha destacado o virtuosismo como a qualidade principal de uma legislatura ou de um gabinete ministerial. Parece até algo bem óbvio: onde há disputa por poder não se deve esperar moralidades.

Do outro lado, o eleitor brasileiro médio, por sua vez, nunca pareceu se preocupar com a questão moral, a ponto de priorizar, na hora do voto, determinado político por ele ser honesto. E os próprios políticos sabem disso: em época de campanha pela reeleição, ninguém entre eles – “ninguém” é muito pouca gente, mas entenda-se essa espécie de superlativo pelo avesso – sai pelas ruas propagando que foi honesto durante todo o mandato e prestando contas do que gastou com seu salário e como usou o dinheiro público. Ao contrário, mostra aos eleitores as vantagens que terão sendo ele reconduzido a um novo mandato como seu legítimo representante.

Como testemunho pessoal, este colunista, muito tempo atrás, participou como voluntário da campanha de um candidato a prefeito, já em segundo turno, contra um adversário sobre o qual pesava um histórico de corrupções. Na primeira reunião de estratégias, a coordenação fez uma breve sessão de “brainstorm” para captar ideias de como convencer o eleitor a votar nele e não no adversário, numa região em que este tivera uma larga vantagem no primeiro turno. Como bom neófito, dei minha sugestão: que fossem destacadas as qualidades éticas de um em comparação (no caso, em detrimento) às do outro. Veio aquela pausa prolongada no exato tamanho de um climão. Fui de neófito a noviço, no sentimento íntimo dos participantes da reunião.

Experientes em campanha, eles já sabiam que aquele discurso não colaria com o povão. Que o importante era destacar o que nosso então candidato tinha feito para as pessoas daqueles bairros e o que mais elas poderiam obter de vantajoso em caso de sua reeleição.

Em outras proporções, a mesma coisa ocorre com as candidaturas a cargos proporcionais. Não adianta: quem quer ganhar para vereador ou deputado – os políticos que vão estar mais próximos à população – precisa conquistar pelo carisma, pelas promessas ou pela “estrutura” que tem sua campanha. Se não apresentar algo que de forma explícita vá ao encontro do interesse dessas pessoas, não vai obter retorno nas urnas.

Ver os engravatados com seus colarinhos brancos passando temporadas na cadeia foi regozijador para a plebe

Muito provavelmente, esses eleitores que votam por interesse particular são os mesmos que, questionados por um repórter sobre como escolhem seus candidatos, diriam que estão de olho nas propostas e na honestidade dos postulantes. É, talvez, um horizonte utópico que eles almejem de forma autêntica, mas o qual, na prática, não se viabiliza.

Nesse sentido, o advento da Operação Lava Jato, dez anos atrás, provocou uma espécie de vingança moral contra os políticos, não pelo comportamento ilibado do eleitor em seu papel como tal, mas por satisfazer a sanha de ver poderosos se dando mal como nem nas novelas ele poderia sonhar. Ver os engravatados com seus colarinhos brancos passando temporadas na cadeia foi regozijador para a plebe, e quem vivem aqueles primeiros tempos da “lista do fim do mundo” – como ficou conhecida a relação de políticos e seus apelidos na agenda da Odebrecht – sabe bem disso.

Ao mesmo tempo, a Lava Jato cultivou no imaginário da população uma imagem totalmente negativa da política, em que composição da base de apoio, reuniões com parlamentares, nomeação de indicados por partidos aliados e escolha de nomes de confiança para o primeiro escalão passaram a ações demonizadas. Respectivamente, tornaram-se “barganha de cargos”, “negociatas em salas fechadas”, “beneficiamento de apadrinhados” e “loteamento de ministérios e estatais”. Como se isso não existisse desde os primórdios da própria política, em qualquer lugar do mundo!

Mas, sim, para a maioria da população isso não era algo “visível”: as pessoas sabiam que ocorriam essas “tramoias”, em decorrência das quais acabava por haver enriquecimentos suspeitos – inclusive o daquele vereador que dava tapinhas nas costas e até um estágio para o sobrinho universitário em troca do apoio da família. Mas, a partir de então, ficaram sabendo que o mundo da vida pública não era exatamente monástico.

Não é coincidência que a mobilização antisséptica liderada pelo então juiz Sergio Moro e seus aliados do Ministério Público – com Deltan Dallagnol e sua apresentação de PowerPoint de ensino médio à frente – tenha acontecido simultaneamente ao advento do WhatsApp. Foi por meio das redes sociais e, mais ainda, dos aplicativos de conversação que a indignação contra os políticos deixou de ser sazonal e passou a um estado de permanência.

Constata-se, porém, uma indignação seletiva: o eleitor que naquela época dizia não ter “partido A nem B”, que “não é de esquerda nem de direita”, “que só queria livrar o Brasil da corrupção”, é o mesmo que, em 2013, foi às ruas rechaçar a presença de partidos políticos nas Jornadas de Junho – aquele levante sem rumo que nasceu de justíssima reivindicação por melhoria dos serviços públicos e acabou virando um bolo amorfo de pautas ao gosto do freguês.

E é o mesmo que, logo depois, se vestiu do mesmo amarelo do “Fora Dilma” para gritar “Bolsonaro Mito”. Tudo, segundo o próprio candidato à época, “para livrar o País de tudo isso que está aí”.

Mas o que estava “ali”, então? O que havia e insistia em haver – tanto como hoje – é a política em sua essência: formação de blocos, acordos, negociação de cargos, fritura de nomes, afastamento de grupos, aproximação de outros… isso é a pura política. Como a maior parte da população ainda estava ligada em “modo Lava Jato”, queriam algo que extirpasse isso da vida pública. E viram em Jair Bolsonaro – justamente alguém que tinha o discurso contra o sistema, embora na prática tenha vivido três décadas se enriquecendo por meio dele – a força capaz de executar essa destruição cívica.

Como ficou provado ao fim dos quatro anos do desgoverno anterior e foi referendado pelo 8 de Janeiro, não há como subverter o sistema dentro da democracia, porque na verdade um é o nome do outro; por outro lado, o governo atual não consegue estabelecer um pacto com a outra metade de que é preciso retomar a prática da política como ela é, reajustando suas bases aos novos tempos das redes sociais. E é assim que o Brasil chegou hoje a um limbo institucional.

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