Conheça o poeta e professor da UFG que combateu a Guerrilha do Araguaia

Entrevista publicada pelo Jornal Opção nas edições de 7 a 13 de setembro e de 14 a 20 de setembro de 1997.

A Guerrilha do Araguaia é tida como a idade das trevas da história brasileira. Mas, apesar do racionamento histórico, as luzes estão saindo dos túneis. Curados de uma mudez que se pensava eterna, os militares (e seus arquivos) começaram a falar. Depois do coronel Pedro Cabral, outros militares começam a discuti-la. O arquivo do general Antônio Bandeira, cedido ao jornal “O Globo”, produziu várias revelações. A principal delas, que o jornal não destacou: o general guardou parte dos arquivos militares em sua casa.

Em abril de 1998, o jornalista Luiz Maklouf Carvalho, então na “Folha de S. Paulo”, divulgou trechos de um artigo do coronel do Exército Álvaro de Souza Pinheiro, publicado na revista “Airpower Journal”, da Força Aérea dos Estados Unidos, com uma revelação explosiva: “A Força Aérea Brasileira (FAB) bombardeou com Napalm a Serra das Andorinhas (PA) durante o combate à Guerrilha do Araguaia (1972-1975)” (o trecho entre aspas é do repórter Maklouf).

Trecho do artigo do militar: “Uma das primeiras operações efetuadas na área foi uma ação de vasculhamento na única serra existente na região, a Serra das Andorinhas, que se caracterizava por não ter cobertura vegetal. Após ser bombardeada com Napalm pela Força Aérea, a serra foi objeto de uma vigorosa ação de cerco e busca efetuada por um grande efetivo. E o resultado foi nulo porque os guerrilheiros nunca lá estiveram”.

O coronel Pedro Cabral disse ao Jornal Opção desconhecer o uso de napalm na região da guerrilha. O ex-soldado Goiamérico Felício ouviu falar, no cenário da guerrilha, em 1972, no uso de napalm.

A Guerrilha do Araguaia habita um quartinho escuro no cérebro do professor universitário Goiamérico Felício — hoje, doutor em literatura pela PUC do Rio de Janeiro. Primeiro, Goiamérico iluminou o quartinho com poesia — um tanto quanto engajada. Depois, decidiu falar ao Jornal Opção sobre sua curta experiência na região do conflito. Sua entrevista foi publicada nas edições de 7 a 13 de setembro e de 14 a 20 de setembro de 1997.

Em janeiro de 2005, no Cine Lumière, Goiamérico assistiu ao filme “Araguaia — A Conspiração do Silêncio” e, atento, comentou: “Os militares não entravam de capacete na selva. O diretor Ronaldo Duque equivocou-se”. No sábado, 29 de janeiro de 2005, voltei a ter uma longa conversa com o ex-sargento José Pereira. Ele insiste: “Os militares não estupraram ninguém e o sargento Viana, um homem de bem, não exibia orelhas na cintura”. E acrescentou: “Quero debater com Goiamérico Felício e com Zezinho do Araguaia”.

Mestre em literatura pela PUC do Rio de Janeiro, o escritor Goiamérico Felício participou da Guerrilha do Araguaia, como soldado, e conta histórias que os livros não registram, como a do sargento colecionador de orelhas e a dos oficiais medrosos

Aos 70 anos, Goiamérico Felício aposentou-se da UFG e, hoje, curte viajar de moto pelo país. Quando concedeu a entrevista, tinha 43 anos.

Goiamérico Felício, 43 anos, foi publicitário premiado. Ganhou e torrou uma boa grana. “Uma vida relativamente glamourosa é muita cara.” Em seus momentos de adepto do capitalismo, Goiamérico praticamente trocou a poesia pelas frases de efeito. Detonava a poesia para vender o capitalismo. O estalo de Vieira mudou sua vida. O bardo recolheu-se, estudou com afinco e tornou-se mestre em literatura pela prestigiada PUC do Rio de Janeiro. Aos poucos, a veia poética, anestesiada pela publicidade, desibernou-se. Agora, mais maduro e organizado, prepara o seu doutorado. Mas há um Goiamérico que nem seus amigos conhecem bem: aquele que, como soldado do Exército, participou do combate à Guerrilha do Araguaia, articulada pelo PC do B, entre 1972 e 1974.

A memória de Goiamérico Felício não é das melhores. “Fiquei bloqueado um tempão”, revela. “Fomos para o Sul do Pará e [na época] Norte de Goiás matar idealistas.” Mesmo mostrando-se pouco à vontade, Goiamérico consentiu em abrir o baú do tempo e contar, num depoimento exclusivo ao Jornal Opção, sua experiência de combate aos guerrilheiros do PC do B. No dia 31 de agosto, quando concedeu a entrevista de mais de duas horas, ele foi aconselhado por uma tia: “Menino, pára com isso”. Mesmo não racionalizando, ela queria dizer mais ou menos o seguinte: a Guerrilha do Araguaia (1972-1974) é uma ferida ainda não cicatrizada, tanto para as famílias dos guerrilheiros mortos quanto para as Forças Armadas. Medo é cautela de sábio.

O Jornal Opção investe na publicação desse tipo de depoimento porque entende que a memória de um povo não deve esconder detalhes pouco lisonjeiros. Não existe meia-história. Há, também, poucos depoimentos de soldados que participaram da guerrilha.

Há cerca de um ano, o jornal vem colhendo depoimentos de ex-militares de baixa patente — são os que mais falam, embora, naturalmente, saibam menos do que os oficiais. O depoimento do cabo D., inédito, é confirmado por Goiamérico nesta entrevista. “Ele não mentiu”, nota Goiamérico.

Menino fardado

Em 1972, Goiamérico Felício era um garoto magro e com certo charme. Os olhos claros impressionavam as garotas. Mas havia um empecilho à conquista: ele era soldado do 10º Batalhão de Caçadores (hoje, 42º BIM). As meninas evitavam manter relacionamentos com os recrutas. A saída para a sede de amor eram os bordéis. A poesia, então, não era uma “arma” do garoto Goiamérico. O irmão Brasigóis era o poeta titular da família Felício.

O menino Goiamérico, o recruta canhoto que atirava com precisão, não deu muita bola quando foi chamado, com outros colegas, para uma reunião com oficiais. O aviso “Vamos sair de madrugada para fazer umas manobras” não o incomodou.

No quartel, o aviso serviu para aumentar a fuzarca. “Fizemos um fuzuê danado. Era uma alegria só. Mas o sargento Moraes, um preto de dentes bem brancos, entrou no nosso alojamento e alertou: ‘Se eu fosse vocês, trataria de dormir muito bem esta noite. Vocês vão passar muitas e muitas noites sem ter uma noite inteirinha só para dormir’.”

Moraes falou de forma sarcástica, rindo. “Lembro-me bem de seus dentes brancos, até brilhantes. Parecia uma onça preta”, rememora Goiamérico. “Porém, como o sargento Moraes nada mais acrescentou, não demos muita importância.”

De madrugada, o grupo com mais de 100 soldados e poucos oficiais saiu para fazer a manobra. Foram alojados em 15 caminhões. Goiamérico preocupou-se com a demora para chegar no local dos exercícios. Ficou calado — “assuntando”, como se dizia então.

Quando chegaram em Uruaçu, hoje Norte de Goiás, um oficial explicou: “Vocês estão indo para uma missão real”. Alguns soldados não entenderam direito. Mas o recruta Élvio apavorou-se. Tentou saltar do caminhão e foi contido a murros pelos colegas. “Ai, minha noiva; ai, minha mãe”, gritava, desesperado.

Os recrutas da Segunda Companhia foram escolhidos porque estavam mais bem preparados. “Não muito, mas superior a outras”, admite Goiamérico. “Nós éramos comandados pelo capitão Maurízio. Como esse carioca era tirânico e disciplinador, conseguiu nos transformar numa espécie de força de elite.” Os jovens tinham em média 18 anos. “A minha grande diversão era chegar tarde das festas e roubar leite nos alpendres dos vizinhos.”

Morte rápida

Em Xambioá, os soldados, ainda estropiados, foram levados para acampamentos de construtoras, como a Rodonorte. Chegaram à tarde. O calor, excessivo, incomodava a todos.

Não houve tempo para descanso. Os oficiais pareciam muito preocupados e tensos. Durante dois dias, os soldados receberam uma série de orientações. Foram avisados que iriam combater terroristas antipatriotas. “A maioria dos soldados ficou aturdida e apavorada.” A palavra terrorista era a senha: todos ficaram aterrorizados.

Duas instruções permanecem bem gravadas na memória de Goiamérico. Os oficiais explicaram, detalhadamente, como reconhecer um homem branco não sertanejo. “Eram os ‘paulistas’, os habitantes da mata.” Assim eram tratados os militantes do Partido Comunista do Brasil.

Pacientemente, capitães e sargentos ensinaram os soldados a matar mais rápido. “O primeiro segredo, explicaram, era não olhar para os olhos do inimigo. Para não ter complacência. ‘Com terrorista e comunista, deve ser assim’, resumiam. A baioneta deveria ser enfiada pela jugular. Com um fio de nylon, uma pessoa pode ser morta em minutos”, diz Goiamérico.

Na prática a teoria se modificava. “Na hora do confronto, as tropas se apavoravam e saíam em disparada. Todo mundo atirava a esmo. Mesmo os experientes oficiais ficavam desnorteados”, relata, rindo, Goiamérico.

Colecionador de orelhas

Os soldados estavam armados com fuzis. “Os guerrilheiros usavam espingardas e revólveres 38”, atesta Goiamérico.

As tropas nas quais Goiamérico estava integrado tiveram apenas um confronto com guerrilheiros. Outros soldados tiveram mais “sorte”.

“Sozinho, não matei ninguém. Todos participavam. Na mata, funcionava o Grupo de Comando (GC). Cada GC tinha um sargento (comandante), um cabo (subcomandante) e cerca de oito soldados. A gente seguia rotas pela mata”, diz Goiamérico. O Exército tentava “encantoar” os guerrilheiros.

Na serraria de São Geraldo, na casa de um morador da região, quando foi buscar comida, um guerrilheiro foi delatado. “O Exército pagava cerca de mil reais [em valores atualizados] por cabeça. Com isso, os guerrilheiros começaram a ser ‘dedurados’ pelos habitantes da rota. Quando o guerrilheiro apareceu, numa clareira, foi fuzilado. Não teve nenhuma chance de reagir. No seu corpo havia mais de 40 balas. Ficamos com a consciência mais ou menos aliviada.”

Alguém pediu para ele se render? “Não, não. O objetivo era matá-lo mesmo”, afirma Goiamérico. “Não me lembro o nome do guerrilheiro, mas sei que os militares também pegaram a guerrilheira Sônia.”

A história do sargento Viana é emblemática da mentalidade militar que agiu no Araguaia. “Ele era um sargentinho metido a besta. Colhemos informações de que o marido da Dina [uma das mais temidas guerrilheiras do Araguaia], o Antônio, queria se entregar. A Dina teria dito: ‘Se você se entregar, eu te mato’. Mas ele estava resolvido a escapar. Quando apontou a cabeça, anunciando que desejava se entregar, o sargento Viana o matou. Eu não estava sob o seu comando, mas ouvi a história, quando nos encontramos. Esse militar, com pouco menos de 30 anos, era assustador. Ele arrancava as orelhas dos guerrilheiros e grudava-as em seu cinturão. A imagem era horrível. As orelhas ficavam pretas, mas ele não as retirava. Dizia que eram os seus troféus”, declara Goiamérico.

A história de Chiquito chocou Goiamérico: “Ex-funcionário do Banco Central, Chiquito foi preso, mas demonstrou ter fibra, o que irritou os militares. Ele foi ouvido pelos S-2, do serviço de informação do Exército. O militar falou: ‘Reza, porque você vai morrer’. O guerrilheiro franzino respondeu: ‘Eu não preciso de reza e de Deus. Faça logo o seu serviço’. Os soldados ficaram chocados”.

Inferno das virgens

Um assunto ainda é tabu — os historiadores fazem vistas grossas —, mas Goiamérico decidiu falar sobre ele. Soldados e oficiais não apenas torturaram e mataram no Araguaia. Estupraram e seduziram dezenas de mulheres, segundo o ex-soldado.

“Quando cheguei em Xambioá, outra tropa já havia passado pela região. Deixou um rastro de destruição. Praticamente não havia mais mulheres virgens na localidade. O Exército fez uma devassa na cidade. As pessoas têm vergonha de contar as atrocidades sexuais”, garante Goiamérico. “As meninas eram vítimas indefesas. Os militares confiscavam casas, barcos e outros bens.”

Ao mesmo tempo em que pressionavam os moradores, os militares tentavam impor a tese de que os 400 guerrilheiros (eles exageravam a cifra; na verdade, não passaram de 69) eram “perigosos” e queriam entregar o país ao “comunismo internacional”. Para os soldados, os oficiais diziam (“gritavam”, é o termo mais apropriado, segundo Goiamérico): “Fiquem vigilantes”.

A população tinha mais medo dos militares. O relato de Goiamérico: “Pobres e ignorantes, eles achavam que o Exército representava o bem. Como foram maltratados, ficavam horrorizados. Uma vez, em São Geraldo, os posseiros estavam sendo queimados em suas casas por grileiros. Apavorados, eles nos procuraram e pediram apoio. Éramos autoridades. Mas nós soldados, praticamente adolescentes, estávamos mais perdidos do que eles. Combatíamos a guerra dos oficiais, não a nossa. Tínhamos um medo indescritível. Às vezes, procurávamos escondê-lo; nem sempre conseguíamos”.

Os soldados, observa Goiamérico, tinham mais medo dos guerrilheiros que de qualquer outra coisa. “Éramos bucha de canhão.”

Soldados Anônimos

Ao entrar na selva, desapareciam as diferenças entre oficiais e soldados. O cabo D. contou ao Jornal Opção que presenciou um oficial esbofeteando um soldado porque, na mata, ele se perfilou perante o mais graduado. “Era assim mesmo”, confirma Goiamérico. “Acredito que seja lenda, mas contava-se que certa feita um soldado ficou para trás, para defecar, e foi colhido pela legendária Dina. ‘Não vou matá-lo porque é apenas um soldado’, teria dito a guerrilheira. Lenda ou não, o fato é que os oficiais ficaram assustados. Então, na mata, todos éramos iguais, ‘irmãos’. Por causa disso, passamos a dizer ‘aquele sargento é de festim’ ou ‘aquele tenente é de festim’.”

Na selva, os soldados entravam praticamente anônimos: “Uma corrente com uma plaquinha trazia o nosso código. Nome e patente, nem pensar”.

A marcha na mata é fonte de perigo constante, quando se está em combate. No início de cada caminhada, os soldados levavam suas armas e mantimentos. Devido ao cansaço, começam a abandonar o que julgavam peso-morto, até alimentação — menos as armas. “Caminhávamos horas e horas, para depois descobrir que havíamos vencido apenas dois quilômetros.”

A mata desanima, diz Goiamérico. “Os soldados ou mateiros usavam facão para abrir a trilha. A gente nada sabia da mata. Um colega ficou com uma mancha roxa no rosto devido a um espinheiro venenoso.”

O cotidiano era feito de medo e de sustos. “Ao pular do helicóptero, para render outro soldado, percebi que ele estava com as pernas inchadas. Pensei: ‘Não vou voltar vivo’. Ficamos 45 dias e, extenuados, fomos trocados por novas tropas. O Exército foi matando os guerrilheiros pelo cansaço. A guerrilha não repunha ninguém, ao contrário dos militares”, narra Goiamérico.

Os soldados circulavam durante o dia. “Os guerrilheiros se movimentavam à noite, inclusive nos vigiando. Ficava aquela coisa de gato e rato. Por isso, o Exército convocou os mateiros para serem nossos guias.”

Beber água exigia cuidados: “A gente tomava água nos rios. Mas é engraçado: ali, no meio da mata, com tantos igarapés, às vezes a gente chegava num local e não tinha água. Numa localidade chamada Pau Preto, achamos um fosso cheio de girinos. Nunca havia visto girinos tão grandes. Jogamos pedras para afastá-los e pegamos água, que fervemos”.

A comida era basicamente enlatados. Quando acabou, a tropa passou fome. O depoimento de Goiamérico: “Ainda não vi entrevistas contando isso, mas nossa equipe passou muita fome. Por isso, invadimos as casas de vários moradores. Eles eram muito pobres. Na casa de uma mulher, numa clareira, havia feijão com cebola. Comi o que podia, sem perguntar se a dona autorizava. Até hoje adoro feijão com cebola. Uma vez, invadimos uma casa, na qual havia torresmo espremido. Comi e saiu escorrendo gordura pelos cantos da boca. De outra feita, não encontrando nada para comer, arranquei mamão verde e comi em minutos. Fiquei com os lábios partidos. Depois, masquei raízes — e meus lábios ficaram ainda mais rachados. Comi muita castanha do Pará”.

As pessoas ficavam estupefatas — num misto de admiração, curiosidade e medo. Raiva, não. “Curiosamente, aquele povo humilde conhecia avião, mas não automóvel e energia elétrica. Os choques elétricos assustavam muito por vários motivos — um deles é que as pessoas não sabiam o que estava acontecendo.”

Banana e mandioca bravas eram proibidas. “Os mateiros explicavam: ‘Olha, aquela banana madura está linda, mas intocada; macaco e passarinho não comeram porque é veneno puro’.” O cabo D. tem outra versão: “Nosso oficial garantia que os guerrilheiros envenenavam as bananas”. Essa história não é confirmada por Zezinho do Araguaia (Michéas Gomes de Almeida), um dos poucos sobreviventes da guerrilha.

Fabianos mateiros

Os mateiros eram a ponte entre os soldados e o desconhecido, a selva e seus moradores. Goiamérico diz que se lembra bem de Jonas.

O mateiro Jonas matou a mulher, os filhos e a sogra. Para escapar da polícia, embrenhou-se na selva, onde tornou-se aliado do Exército. “Ele atirava bem e agia como soldado. Extremamente simples e rude, ele se perfilava na hora da comida. Entrava na fila junto com os soldados. Tinha um respeito enorme por nós. O motivo: a nossa farda, que ele adorava. Mais tarde, pensei nele como Fabiano, o personagem de ‘Vidas Secas’, o romance de Graciliano Ramos. Eu era uma autoridade para Jonas.”

O convívio na tropa era apenas razoável. “Éramos solidários porque estávamos preocupados com a sobrevivência”, confessa Goiamérico. “Mesmo acompanhados, todos se sentiam sós. Escrever cartas não era proibido. Mas era preciso entregá-las abertas. Nenhum soldado podia contar onde estava e o que estava fazendo. Só podia dizer que estava fazendo manobras.” Goiamérico não recebeu nenhuma carta.

“Mortos eram jogados no rio”

O cabo D. contou ao Jornal Opção que os militares mataram guerrilheiros e colocaram em cima de jegues. “Os animais reagiram rapidamente. Não saíram do lugar. Estavam assustados.”

Goiamérico diz que não viu isso no Araguaia. “Eu sei que os militares levavam mortos em lanchas e jogavam dentro do rio. Amarravam pedras no pescoço das pessoas, inclusive de moradores que se recusavam a dar informações sobre os paulistas” (como os guerrilheiros eram chamados pelos moradores da região).

Goiamérico conta que os oficiais não permitiam que os soldados conversassem com os guerrilheiros presos. “Se um soldado tentasse entrar em contato com os presos era punido exemplarmente.”

Diário de uma guerra suja

Quando se está no meio de uma guerra, o pensamento dominante é: tenho que sobreviver. O soldado Goiamérico Felício diz que, durante os 45 dias que combateu a Guerrilha do Araguaia, em 1972, pensava em sobreviver e, por isso, na morte.

“Quando fui render um colega, e percebi que ele estava com as pernas inchadas, devido à leishmaniose, pensei: ‘Vou morrer’. Quando um colega, impregnado do discurso dos oficiais, gritou ‘Quero matar’, eu falei comigo mesmo: ‘A única coisa que quero é sair vivo’. Queria voltar para a casa da minha mãe. Embora com pouca consciência, sabia que os guerrilheiros eram idealistas. Mas, num determinado momento, em desespero, o que eu mais queria era matá-los logo e sair daquele inferno”, conta Goiamérico.

A maioria dos soldados se adaptou muito mal à vida na selva. Os oficiais fingiam melhor, mas pareciam muito incomodados, longe do conforto dos quartéis e de suas casas. “Vi gente possessa. Mas o controle era rígido. Uma vez, conversando com um sargento, comecei a falar, ingenuamente, que os guerrilheiros eram idealistas, que queriam mudar o Brasil.”

Paranoia e cobra

Irritado, o sargento disse: “Estou notando que você está do lado desses bandidos”. Um dia, Goiamérico estava segurando um lampião e o mesmo sargento perguntou: “‘Você está fazendo algum sinal para os guerrilheiros? Está querendo passar para o lado deles’. A maioria dos soldados era dócil e queria matar terroristas”.

Noutra feita, Goiamérico foi parar no buraco onde eram jogados os guerrilheiros. “Fiquei no Vietnã porque dei bobeira e fiquei falando que os guerrilheiros eram idealistas. E andei aprontando.”

Numa conversa com o sargento Nazareno, Goiamérico disse: “Eu pensei…”. Antes que terminasse, o sargento rebateu: “O quê, você pensou?! Soldado não pensa. Soldado obedece”. Quando lancei o meu primeiro livro de poesia, “Funesta Festa” (uma obra engajada, para a qual Goiamérico não faz mais nenhuma festa), o sargento Nazareno entrou na fila dos autógrafos. “Eu não disse nada, mas pensei: ‘Se eu não pensasse, como estaria aqui autografando um livro para você’. Mas militar é assim mesmo: dissociado da realidade.”

Na mata, não se tinha medo só dos guerrilheiros, revela Goiamérico. “Descobrimos que a própria selva era um perigo em si. A cobra surucucu, super venenosa, apaga fogo e representa um perigo. Por isso praticamente não se acendia fogo nos acampamentos. Claro que havia também o medo dos comunistas, que era até maior. A gente dormia em rede e colocava uma espécie de cocho por cima. Por causa da chuva e da cobra-cipó. As cobras caíam em cima da gente. Era um horror. O turno de guarda era terrível. A gente dormia duas horas e ficava de sentinela por uma hora.”

Quando caía uma folha ou um bichinho corria, os soldados “gelavam”, diz Goiamérico. “O medo era incontrolável. Um dia, escutei um barulho e pensei: e agora, meu Deus?”

As doenças foram um terror para soldados e guerrilheiros. “A primeira turma que entrou na selva sofreu mais. A maleita, ou caladinha, debilitava todo mundo. Mas a minha turma recebeu várias vacinas. Tomei tanta injeção que tive que ser amparado por colegas. Me deixaram debaixo de uma árvore, meio desmaiado. Sei que fomos tratados como cobaias. Ouvi um médico afirmando, não sei se estava falando a verdade, que estávamos vacinados até contra picada de cobra. Sulfa não faltava.”

“Eu revivi”

O dia em que a tropa de Goiamérico deixou a mata foi comemorado pelos soldados. “Parecia que a gente estava ressuscitando. Mas demos azar. A hélice do helicóptero que iria nos recolher soltou e ele caiu na nossa frente. Foi uma decepção. Tivemos que fazer todo o trajeto de volta para a beira do Rio Araguaia a pé.”

Quando a tropa avistou o Araguaia, o tenente Marcondes ordenou: “Vamos enquadrar, soldado. Me respeita. Eu sou tenente”. Escaldados, os soldados responderam: “Deixa de ser babaca. Na selva, você tinha um medo danado. Agora, quer dar uma de tenente em cima de nós”.

Para comemorar a “pequena vitória” (escapar com vida), os soldados fizeram um churrasco com vacas da fazenda do Paulo, “um guerrilheiro que era médico” (os livros registram que médico era o gaúcho João Carlos Haas Sobrinho, o Juca). “Foi um dos churrascos mais gostosos que comi em minha vida. Comemorei a minha sobrevivência.”

No avião, não havia espaço para todos os soldados. A maioria teria que voltar ao acampamento a pé, numa viagem de quatro dias. “Fiquei sabendo que os soldados doentes voltariam de avião. Por isso dei uma de malandro e fingi que não estava me sentindo bem. Mas não colou. Eu estava debilitado, mas não doente. Levei, até, uma reprimenda: ‘Quer voltar para a mata, soldado?!’ Claro que eu não queria. Sarei imediatamente.” Na mata, nota Goiamérico, não havia qualquer assistência médica. “Lá, era cada um por si.”

Quando os soldados chegaram à cidade, os meninos correram: “A gente não tomava banho há muito tempo”, diz Goiamérico.

Os militares garantem que, ao lado dos amadores — a bucha de canhão —, foram enviados ao Araguaia forças de elite. Goiamérico diz que conviveu mais com recrutas. Mas encontrou os S-2 do Exército, que se diziam a elite, e considerou-os “atrapalhados”. “Um grupo de S-2 nos encontrou e esqueceu de levar um saco com metralhadoras americanas.” Goiamérico afirma que cansou de ouvir histórias de choques armados entre os próprios militares. “Os oficiais não conversavam perto da gente, mas fiquei sabendo que os chefões estavam insatisfeitos com o trabalho deles.”

As armas — fuzis e metralhadoras — eram boas. “O fuzil pesa 4,5 quilos. É uma arma de boa precisão”, avalia Goiamérico. Os helicópteros eram americanos — teriam sido usados no Vietnã. “Os rádios eram apenas razoáveis. O nosso quebrou logo. O pior é que faltava comida. Eu tinha dinheiro no bolso, dado por minha mãe, e ficava me perguntando: ‘Para que serve isso?’” Na mata, além da farda camuflada, os soldados usavam apenas bonezinho.

A fome dos soldados era bem menor do que a dos guerrilheiros. “Encontramos depósitos de comida dos ‘terroristas’. Eles tinham comida desidratada, enterrada próxima a árvores.”

Goiamérico diz que em nenhum livro conta-se a história do consumo de drogas no Exército, durante a Guerrilha do Araguaia. “Os soldados que gostavam de droga não tinham quaisquer dificuldades para obtê-las. Eles criavam coragem depois que usavam drogas.”

Do grupo que foi para a área da guerrilha com Goiamérico todos sobreviveram.

Sexo reprimido

Nem a repressão segura a explosão sexual. No terreno da Guerrilha do Araguaia, na mata, os soldados tinham como alternativa a masturbação. “Era raro um soldado masturbar. O medo e a presença constante de gente do nosso lado impediam o prazer. Quando a gente ia defecar, três soldados ficavam próximos. Como proteção.”

Os soldados eram proibidos de bater fotografias. “As fotos da região, trabalho de reconhecimento, eram feitas pelo serviço de segurança.”

“A Guerrilha do Araguaia não existiu.” Com essa frase “ameaçadora” os comandantes militares dispensaram os soldados que estavam com Goiamérico Felício. “Vocês nada podem revelar. Entenderam?” E acrescentaram: “Vocês podem ser pegos em casa, presos e vão responder a IPM”.

Quando voltou para Goiânia, em setembro de 1972, Goiamérico foi recebido com festa. Desfilou em cima de caminhão como um herói. “Fiquei uma semana na enfermaria do quartel. Estava debilitado.” Pensaram em me mandar de volta ao combate no Araguaia, mas o coronel Emídio de Oliveira Castro disse: “Capitão, esse soldado não pode voltar. Ele deve ir direto para a enfermaria”. Mais tarde, ganhou uma missão que não lhe agradou: “Montei guarda para pessoas de esquerda serem torturadas. O sargento Thompson, um baixinho, era um torturador contumaz”.

‘Traição’ de classe

No Brasil, há intelectuais que costumam sair da esquerda para se tornarem apologistas da direita. Carlos Lacerda é o principal exemplo. Paulo Francis, quase um exemplo, estava mais para livre atirador. Goiamérico Felício saiu do combate à Guerrilha do Araguaia direto para os braços da esquerda e, depois, para a prisão.

No colégio Pedro Gomes, Goiamérico editou o jornal “Geração Nossa”, em parceria com Edson Moreira, hoje funcionário da Caixa Econômica Federal. Um filho do então deputado João Divino Dornelles, Deusimar, também participava do jornal.

Embora primário, o jornal incomodou os porões do regime civil-militar. Um dia, bem cedo, a casa de Goiamérico foi vasculhada. E ele, preso. Levaram um pôster do argentino-cubano Che Guevara e os livros “Carta ao Pai”, de Kafka, e Cavalaria Vermelha, de Isaac Bábel. “Argumentei que Bábel era anticomunista, mas o policial federal resmungou: ‘Não tente me enganar, menino. O livro fala dos vermelhos’ [comunistas]. Todos os livros de capa vermelha foram levados.”

Na Polícia Federal, Goiamérico foi interrogado pelo policial Roberto, que fazia questão de ser chamado de “doutor”. Não houve tortura física. Os escritores Brasigóis Felício, Aidenor Aires — este chefe de gabinete do governador Irapuan Costa Junior — e Gabriel Nascente começaram a agir. “Irapuan ligou para a PF, que informou que só estava colhendo depoimentos dos ‘meninos’. Fui libertado às 10 horas da noite. O Irapuan é reacionário, mas gosta de intelectuais.”

A PF não acreditava que aquele bando de garotos tinha talento para editar um jornal. Por isso a pressão para revelar quem estava por trás. “Um policial colocou uma máquina na minha frente e disse: ‘Agora, escreva alguma coisa’. Coloquei o papel e contei toda a história de minha prisão. Finalmente, eles acreditaram que a gente era capaz. Hoje, nas minhas aulas, eu digo aos meus alunos que escrever é mais transpiração do que inspiração”, relata Goiamérico.

Embora não tenha ingressado no Partido Comunista do Brasil (PC do B), Goiamérico admite que teve sua fase de tribuneiro (quem vendia o jornal “Tribuna da Luta Operária”, do PC do B).

Goiamérico está nos Estados Unidos. Mesmo tendo convite para lecionar em Miami, ele voltará ao Brasil para concluir seu doutorado em literatura.

“Garimpeiros” americanos

Os índios e os caboclos da região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia disseram aos soldados que conheciam um avião “estranho”, que, ao levantar voo, fazia “zum, zum, zum”.

Conheceram helicópteros com a chegada das tropas do Exército. Mas o avião diferente era, segundo Goiamérico, o famoso Sea Air. “Eles são muito usados onde não tem pistas. Ele aterrissa na água com extrema facilidade. Ficamos sabendo que americanos desciam na região pesquisando minérios”, assegura Goiamérico.

O “suicídio” do médico João Carlos Haas Sobrinho

O ex-cabo D. é mineiro, mas mora em Goiânia há mais de 10 anos (trabalha com porteiro num edifício do Setor Bueno). Começou a combater a Guerrilha do Araguaia como soldado e saiu do exército como cabo. Garante que ganhou 17 elogios por sua atuação.

Pessoa simples, ele diz que sempre ouviu dos comandantes que a Guerrilha do Araguaia devia ser tratada como “mistério”. Nas conversas com o Jornal Opção, ele não admite gravações. Não aceita também que seu nome seja mencionado. Seu nome de guerra era Coruja.

O empalamento de um homem chocou D., mas o fez ver que os militares não estavam brincando. “Um guia levou-nos a uma emboscada. Irritados, os militares o empalaram. Em seguida, um oficial da Polícia Militar pegou uma pistola e atirou em sua nuca.”

Como ocorreram choques entre tropas do Exército, o comando adotou as senhas e contrassenhas. “Certa vez, estando eu de sentinela, escutei um barulho estranho. Gritei: ‘Senha e contrassenha’. Repeti isso algumas vezes. Como não houve resposta, peguei o fuzil e fiz uma varredura. No outro dia, encontramos um jumento todo retalhado. Ao vê-lo, seu dono chorou como uma criança.”

Deuses da Guerrilha

Uma das histórias contadas por D. é de segunda mão. Ele não viu, mas ouviu um oficial contar. “Nas escolas, os guerrilheiros, atuando como professores, diziam aos meninos: ‘Abram as mãos, fechem os olhos e pensem em Deus’. Depois, diziam: ‘Agora abram os olhos e vejam se Deus deixou alguma coisa em suas mãos’. Os meninos abriam os olhos e as mãos estavam vazias. Os guerrilheiros modificavam a história: ‘Fechem os olhos e pensem em nós. Quando os garotos abriam os olhos havia chocolates em suas mãos.”

O ex-cabo D. confirma a versão de Goiamérico Felício de que os oficiais eram muito medrosos. “O capitão Rister era durão no quartel, mas tremeu no Araguaia. No barco, ele fez… nas calças. Via guerrilheiros imaginários. Mesmo sendo inferior, hierarquicamente tive coragem para dizer-lhe: ‘Pára com isso, homem’.”

O confronto com os guerrilheiros era esperado, mas temido. “Eles eram ousados. Uma vez, um guerrilheiro atirou em nós. Acertou um militar e o sangue espirrou no meu rosto. O militar morreu. Ficamos com a pulga atrás da orelha. Houve um início de pânico. A debandada só não foi maior porque os ataques eram rápidos e esparsos, sem continuidade.”

A história mais curiosa e estranha do ex-cabo D. é sobre o médico João Carlos Haas Sobrinho. A versão corrente — aceita pelo PC do B — dá conta de que Haas Sobrinho foi assassinado. O ex-militar D. tem outra versão: “Juca [Haas Sobrinho] estava com o Flávio [Ciro Flávio Salazar Oliveira]. Houve um chafurdo. Prendemos Flávio. Ele foi torturado e morto. Mesmo ferido, Juca reagiu. Ele gemia muito, mas não largava sua arma, um 38. Um tiro de fuzil deixou seu tornozelo em frangalhos. Depois de um período de silêncio, escutamos um tiro. Juca havia se matado”. Nas mochilas de Juca e Flávio os militares encontraram comida apodrecida.

É preciso frisar que esta é a versão do ex-cabo D. O Jornal Opção perguntou a ele: “Se Juca se entregasse, o que fariam com ele?” D. não titubeia: “A ordem era para matar”.

Ao final de uma das conversas com o Jornal Opção, D. lamentou: “Nós exageramos no Araguaia. Têm noites que acordo ouvindo gritos”. Ele conta que foi aconselhado por um magistrado a não revelar seu nome.

Coronel Pedro Cabral: memória desbloqueada

O coronel Pedro Cabral faz novas revelações sobre o local onde foram enterrados guerrilheiros do PC do B

O coronel-aviador Pedro Corrêa Cabral, hoje na reserva, combateu a Guerrilha do Araguaia como capitão. Mesmo discordando dos métodos violentos dos militares, era um oficial disciplinado e por isso atuou, na “guerra suja”, como piloto de helicóptero. Para purgar sua participação no combate aos 69 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B), ele escreveu uma história romanceada: “Xambioá — Guerrilha do Araguaia” (Editora Record). Por intermédio dele — um dos poucos militares de patente mais elevada a se abrir a respeito da guerra ocorrida no Pará e no Tocantins (na época Goiás) — ficou-se sabendo onde estão enterrados vários guerrilheiros: na Serra das andorinhas, no Pará.

Pedro Cabral: coronel da da Aeronáutica | Foto: Divulgação da Editora Record

Aparentemente, o coronel Pedro Cabral havia dito tudo à revista “Veja”. Em carta (inédita até agora) ao mestre em história Romualdo Pessoa Campos Filho — um dos principais especialistas brasileiros em Guerrilha do Araguaia, ao lado de Gilvane Felipe, que defende tese de doutorado em Paris [Gilvane Felipe interrompeu o doutorado e, hoje, 2005, é presidente do Sebrae em Goiás] —, autor do livro “Guerrilha do Araguaia — A Esquerda em Armas”, Pedro Cabral reabre a história. E que história. O Jornal Opção é o primeiro jornal do país a publicá-la.

Na carta, Pedro Cabral escreve: “A última frase do seu [de Romualdo] livro é: ‘Onde estão os corpos dos guerrilheiros do Araguaia?’ E eu respondo: estão na Serra da Andorinhas, como sempre afirmei”.

O coronel Pedro Cabral acrescenta: “Você [Romualdo] não me conhece e, portanto, não tem qualquer obrigação de reconhecer minha palavra como verdadeira. Entretanto, caso isso tenha para você o valor que tem para mim, quero lhe dizer que sou batista, isto é, um crente no Senhor Jesus, e que um crente não mente jamais. A seguir, vou lhe fazer uma revelação pela qual não desejo nenhum galardão. Faço isso, única e exclusivamente, porque desejo contribuir de alguma forma para minimizar o sofrimento dos familiares daqueles jovens que pereceram nas selvas do Sul do Pará”.

A revelação do coronel Pedro Cabral: “Não sei o que aconteceu, mas o fato é que, quando estive em Xambioá, em 1993, com a reportagem da revista ‘Veja’, simplesmente, sofri um bloqueio de memória que não permitiu que eu me recordasse do local em que os corpos foram depositados. Confesso que, à época, fiquei deveras embaraçado por não poder indicar o lugar com a precisão que eu afirmara conhecer. Pois bem, ainda no avião, regressando para o Rio de Janeiro, cidade em que morava naquele tempo, de repente tudo se aclarou, e vi com os olhos da mente, o local onde estão os corpos”.

Pedro Cabral continua: “Ao chegar em casa, falei com minha mulher sobre isso e pedi sua opinião. Ela me disse para ficar calado e não mais falar no assunto, pois, ponderou ela, ‘… as pessoas não vão acreditar nessa história de bloqueio de memória, embora tal bloqueio seja mais que natural, uma vez que é uma defesa psíquica diante da horrível e traumática missão que você cumpriu ao transportar aquela carga macabra para a Serra das Andorinhas’. Fiquei, assim, esses últimos anos, sem falar no assunto. Fiz um croqui do local. Por este desenho, qualquer piloto de helicóptero chega, com facilidade, ao local”.

Pedro Cabral faz uma ressalva: “A única coisa que não garanto é que se encontrem os restos mortais, pois a comunidade de informações pode muito bem ter estado lá, posteriormente, e limpado tudo. Todavia, creio que sempre ficam evidências por mais que se tente escondê-las”.

Na carta, Pedro Cabral esclarece que napalm, ao contrário do que a mídia divulga, não é desfolhante: “É um pó que, misturado com gasolina, forma uma geleia e compõe bombas incendiárias. Nem napalm nem qualquer desfolhante foram empregados na Guerrilha do Araguaia, embora se tivesse pensado nessas possibilidades”. O escritor Goiamérico Felício, que esteve na região como soldado, conta que ouviu várias vezes os comandantes falando sobre o possível uso de napalm.

Para Pedro Cabral, “na 3ª campanha, nenhum prisioneiro foi para Brasília, ou para qualquer outra cidade fora da região em conflito”. Está implícito que os militares mataram todos os prisioneiros. Romualdo Campos nota que Pedro Cabral esteve na região apenas durante a 3ª campanha e por isso talvez não tenha informações precisas sobre para onde foram levados prisioneiros. O historiador e o coronel concordam inteiramente num ponto: a maioria dos guerrilheiros foi trucidada.

Selva humana

Um trecho do livro de Pedro Cabral é eloquente sobre a forma como os militares tratavam os guerrilheiros, mesmo os que se entregavam, como Lúcia, Marlene, Márcio e Fernando.

Segundo Pedro Cabral, a guerrilheira Lúcia estava grávida. Seu parceiro era o agente Gabriel, infiltrado na guerrilha como João Simplício de Arruda. (Esta história não é confirmada pelo guerrilheiro Zezinho do Araguaia, que sobreviveu e mora em São Paulo. [Zezinho mora hoje, 2005, em Goiânia.])

Ao ser interrogada por um militar conhecido como Gordo, um torturador maneiroso, ela disse: “Me chamo Jana Maria de Barros”. Ela e Fernando entregaram alguns depósitos de comida dos colegas de guerrilha.

Os agentes destruíram a comida e algemaram Lúcia e Fernando. Relata Pedro Cabral: “O que atendia pelo nome de Gerson agarrou Lúcia pelo braço. Os outros dois seguraram Fernando.

— Mas o que é isso, pelo amor de Deus!? — gritou Lúcia em desespero.

— Você já vai ver o que é isso, Lucinha, sua vaca filha da puta!

— Não acredito que vocês possam fazer isso conosco, depois de tudo, de nossa colaboração!? — explodiu Fernando.

— Eu estou grávida! Tenham piedade de mim, por favor.

— Tá grávida, né, sua putinha sem-vergonha!”

Os militares atiraram primeiro na cabeça de Fernando. Estouraram seus miolos. Depois, mataram Lúcia (Jana). No livro de Romualdo, aparece a guerrilheira Jana Moroni Barroso, a Cristina.

Para entender mais

A bibliografia sobre a Guerrilha do Araguaia começa a se ampliar e a escapar do domínio da versão do Partido Comunista do Brasil (PC do B). O livro “Guerrilha do Araguaia — A Esquerda em Armas” (Editora da UFG) é resultado de uma dissertação de mestrado do professor Romualdo Campos Pessoa (integrante do PC do B, o que não invalida seu belo trabalho), da Universidade Federal de Goiás.

Jacob Gorender comenta a guerrilha no livro “Combate nas Trevas. Uma excelente síntese é “A Ditadura Escancarada (Companhia das Letras), de Elio Gaspari. “O Coronel Rompe o Silêncio” (Editora Objetiva), de Luiz Maklouf Carvalho, traz fatos novos.

O romance-memória de Pedro Cabral, “Xambioá — Guerrilha do Araguaia” é encontrado registra a infiltração no PC do B por militares.

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