Superior a José Saramago, Lobo Antunes merece o Nobel de Literatura

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

O escritor português José Saramago, único autor em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, jamais foi uma unanimidade em seu país. Muitos críticos atribuem essa honraria concedida a Saramago ao fato dele ter sido um ativo militante das esquerdas.

Essa afirmação não deixa de ser verdadeira. Quando comparamos historicamente os ganhadores do prêmio Nobel de literatura, constataremos uma verdade inconteste: o número de escritores de esquerda é consideravelmente maior que escritores simpatizantes da direita.

Cabe aqui citar ocaso do escritor peruano Mario Vargas Llosa e do colombiano Gabriel García Márquez. Este, além de ser um conhecido militante das esquerdas, era amigo íntimo do ditador cubano Fidel Castro. Enquanto Mario Vargas Llosa se tornou um pregador das teses liberais pelo mundo afora. Coincidência ou não, o autor de “Conversa no Catedral” ganhou o Nobel quase 40 anos depois do criador de “Cem Anos de Solidão”

Posto isso, volto a Saramago e seu Nobel. Engrosso a fila dos que não admiram os livros do autor “Jangada de Pedra”. Lembro-me da minha experiência nada agradável quando comecei a ler o livro dele “Ensaio Sobre a Cegueira”. Desisti logo no segundo capítulo.

Relatei minha decepção com o Nobel a um amigo português, que estudou na Universidade de Coimbra. Ele partilhou da mesma opinião a respeito da qualidade dos livros de José Saramago. Entretanto, fez-me a seguinte observação: “Você errou na escolha do escritor português. A grande maioria dos críticos de meu país consideram o autor António Lobo Antunes o maior nome da moderna literatura portuguesa”. Disse isso, para logo acrescentar: “Ele é que deveria ter sido reconhecido pela Academia Sueca. Lobo Antunes é o ‘cara’. Conhecido em todo mundo, é candidatíssimo a ser o segundo escritor português a ganhar o prêmio Nobel”.

Levei a sério o conselho de meu amigo. Após uma breve consulta aos 25 romances desse autor, optei por mergulhar em “Memórias de Elefante” — seu primeiro romance. O sucesso de crítica refletiu num enorme sucesso de público. Isso possibilitou ao médico psiquiatra abandonar sua profissão para se dedicar a sua verdadeira profissão de escritor.

José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura: um escritor de segunda linha que a ideologia de esquerda empurrou para o primeiro time | Foto: Reprodução

O psiquiatra que virou escritor

António Lobo Antunes tem uma extensa obra literária, reconhecido internacionalmente. Formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, serviu nessa condição o exército português. De 1970 a 1973 Lobo Antunes foi enviado para a Guerra de Angola. O sucesso literário veio logo no seu primeiro romance que ora resenho.  Com dinheiro ganho, pôde o autor realizar um sonho de infância: ser um escritor. O sonho se tornou uma realidade no momento em que ele abandonou, por completo a psiquiatria, para se tornar o ele é há mais de quarenta anos: um escritor.

António Lobo Antunes é tido como o mais importante escritor de Portugal. Suas obras literárias, reconhecidas internacionalmente, receberam importantes prêmios no mundo da literatura. Dentre muitos destaco os seguintes: o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 1999, exortação pelo seu livro “Exortação aos Crocodilos”. Em 2007, ele recebeu o maior prêmio da língua Portuguesa, o Camões. Em 2008 foi a vez do Mexico laurear Lobo Antunes com seu mais importante prêmio literário, o Juan Rulfo.

Há mais de uma década, o nome de Lobo Antunes é citado como sério candidato ao prêmio Nobel. Venha ou não essa honraria, Lobo Antunes é de há muito um escritor respeitado nos quatro cantos do mundo. Posto isso, passo agora a analisar o mergulho que fiz em “Memórias de Elefante”.

História de uma alma atormentada

“Viver Para Contar” é o livro de memórias de Gabriel García Márquez. Nessa obra, no esplendor da senectude, Gabo, tal como Proust, faz uso da memória para relembrar sua infância e juventude. Esse período da vida desse notável escritor colombiano é fundamental para formação do imaginário que alimentou a mente do autor no momento em que ele dá vida a inúmeros personagens contidos em livros como “Cem Anos de Solidão” e o “Amor nos Tempos do Cólera”.

O viver para contar do escritor Lobo Antunes é também um livro de memórias concebidas na cabeça de um psiquiatra atormentado pelas lembranças do passado dele. Nesses momentos a força criativa do autor, em estado de depressão, atinge seu ápice. Daí ele lembrava dos tempos da guerra que participou em Angola, do casamento desfeito e da impossibilidade de ver as duas filhas que tanta ama, da incapacidade de confessar o amor incontido que ainda sente pela ex-mulher. Assombrado pela solidão e pela dor, o maior autor português da atualidade brinda os leitores com uma narrativa original, dolorida e eloquente.

Existem autores — como Shakespeare e Fernando Pessoa — que escrevem procurando serem absolutamente entendíveis por seus leitores. Por outro lado, outros escritores exigem de seus leitores esforços para entender a mensagem que querem passar. O escritor argentino Júlio Cortázar, em o “Jogo da Amarelinha”, e o irlandês James Joyce, em “Ulisses” e “Finnegans Wake”, são autores que se enquadram nessa categoria de autores herméticos. O português António Lobo Antunes é um autor que cobra algumas gotas de suor àqueles que resolvem decifrar os subterrâneos do ser dele.

Logo nas primeiras páginas de “Memória de Elefante”, percebi a dificuldade que teria para compreender aquela narrativa repleta de metáforas. Lobo Antunes recorre a passagens de outros autores para construir sua história de vida, repleta de melancolia e de lembranças pesadas relacionadas aos tempos de seu passado. 

O escritor francês Marcel Proust faz uso das memórias para construir seus romances. Entretanto, cabe aqui ressaltar a diferença das lembranças desses dois grandes autores. Proust tem lembranças agradáveis que produzem certa leveza dentro do seu ser. As lembranças de Lobo Antunes são pesadas, pois se relacionam aos tempos em que ele, como psiquiatra, viva o esplendor de seus maus resolvidos fantasmas shakespearianos. A “louca da casa” contida na narrativa de “Memórias de Elefante” é o reflexo de um espírito que vive dentro o inferno dantesco aqui mesmo na terra.

Antonio Lobo Antunes: psiquiatra que se tornou um prosador notável | Foto: Reprodução

Aqueles que conseguem penetrar no universo narrativo de Lobo Antunes descobrirão algo que só um grande escritor reserva a seus leitores: a riqueza de um mestre que constrói como o artista a intertextualidade de criador capaz de dialogar com a pintura, a música, o cinema e outras formas de manifestação artística.

Reproduzo neste espaço trechos do livro que evidencia a habilidade que tem Lobo Antunes de incorporar a narrativa do romance a pontos específicos de outros autores. Não é nada fácil construir essa intertextualidade. Somente escritores de grande cultura e sensibilidade, como Lobo Antunes e Mario Vargas Llosa conseguem enriquecer seus escritos ante ao domínio que tem dessa técnica.

Por que o Nobel para Lobo Antunes?

Ao concluir a leitura de “Memória de Elefante”, elaborei uma rápida pesquisa na extensa produção literária desse autor. Me deparei com uma produção literária de um autor, a meu juízo, mais profunda do que a de José Saramago. A complexidade do autor de “Ensaio Sobre a Cegueira” dificulta o entendimento de uma obra essencialmente política e, de certa forma, confusa.

António Lobo Antunes é, de igual forma, um autor difícil de se ler. Mas aquele leitor que consegue entender o que está por trás dessa complexidade será premiado com o entendimento da literatura como obra de arte. Certamente, a formação em psiquiatria do autor de “Memória de Elefante” — aliado à sua imensa cultura — contribuiu para que o médico que se fez escritor penetrasse nos labirintos da alma do ser humano. 

 “Los Angeles Times” definiu com exatidão a estatura desse grande escritor: “Lobo Antunes é um grande desbravador da psique humana (…) com a voz de Nabokov, pelas trilhas de Cortázar, Gógol e Dylan Thomas”.

Ao encerrar esta resenha, lembro-me de grandes escritores como o mexicano (ainda que nascido no Panamá) Carlos Fuentes, o norte-americano Philip Roth e o argentino Jorge Luis Borges morrerem sem receber essa honraria. Espero que a Academia não cometa mais um equívoco de deixar António Lobo Antunes sem o Nobel que, há muito, faz por merecer.

Riqueza da intertextualidade

1    

“Deixa lá que depois de eu morrer tu publicas os meus inéditos com um prefácio elucidativo, fulano, tal como o conheci. Chamar-te-ás Max Brond e podes me tratar na intimidade do leito por Franz Kafka.” [Intertextualidade construída pelo autor para ilustra determinada situação de que um amigo fará com seus escritos após a morte dele. Max Brond, amigo do autor publicou escritos de Kafka após a morte dele]

2      

“… nunca havia nenhuma carta para ele: sentia-se como o coronel de García Márquez, habilitado pela solidão sem remédio e pelos cogumelos fosforescentes das tripas, aguardando notícias que não chagavam, que não chegariam jamais, e apodrecendo lentamente nessa espera inútil alimentada de um vago milho de promessas.” (O autor utiliza-se da novela “Ninguém Escreve ao Coronel”, de Gabriel García Márquez. O coronel é um dos oficiais da revolução, que fica a espera de uma aposentadoria que nunca chega. Lobo Antunes usa o episódio para enriquecer a narrativa de uma carta de um personagem de “Memória de Elefante”.)

3

“Fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo até o fim do mundo, até o fim do mundo certo da certeza de que nada nos podia separar, ‘como uma onda para a praia na tua direção vai o meu corpo’, exclamou o Neruda e era assim conosco, e é assim comigo só que não sou capaz de to dizer ou digo-to não estás”. (Ao expressar seus sentimentos pela ex-mulher, Lobo Antunes enriquece a narrativa com versos do poeta chileno Pablo Neruda.)

“… — o meu bisavô matou-se com duas pistolas ao descobrir que tinha um cancro.

“ — Você não é seu bisavô, explicou o analista coçando o cotovelo, e esse seu Guermantes é apenas um Guermantes.” (Numa seção de análise, a narrativa de Lobo Antunes traz o autor certo que se encaixa com o drama do analisado. “O Caminho de Guermantes” é o nome do terceiro livro do mais importante romancista da França, ao lado de Balzac e Flaubert. Falo do grande Marcel Proust.)

Salatiel Soares Correia, engenheiro e administrador de empresas, é mestre em Energia pela Unicamp. É autor de oito livros. É colaborador do Jornal Opção.

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