8 de março: conheça histórias de mulheres que ousaram lutar contra a ditadura em Goiás

Não existiu nenhum período histórico sem a participação das mulheres. Em cada tempo e cultura, existe um papel ditado como feminino e funções que cabem ao gênero. Ainda assim, após 60 anos da ditadura militar, poucos nomes femininos são lembrados ao relatar esse passado recente. E a barbárie também precisa ser lembrada para evitarmos cometer novamente os mesmos erros.

Retratar certos períodos da história é desafiador, como a Biblioteca de Alexandria, que foi queimada e perdeu grande parte dos escritos. A história brasileira também possui diversos fragmentos apagados e esquecidos, principalmente em relação ao período militar. A coleção de livros e documentos queimados sempre dificulta a reconstrução da história e é sempre feita pelo lado que deseja apagar o oponente.

Para guardar essas memórias e passá-las para a próxima geração, o Jornal Opção buscou mulheres que pudessem compartilhar suas histórias. E hoje, apresentamos essas jornadas de coragem e determinação. Porque, afinal de contas, o Dia Internacional da Mulher nasceu como um movimento de protesto e luta.

Isaura Lemos, Nonô Noleto, Magda Machado, Maria Cristina Moreira e Dirce Machado são prova de que “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, como já dizia a música de Chico Buarque. Elas estão de pé e seguem guiando a marcha. Por terrenos que ainda são violentos com as mulheres, elas desbravaram e exploraram o caminho.

Dirce Machado | Foto: Divulgação

Dirce Machado

Nascida em Rio Verde, Dirce Machado foi expulsa de casa com apenas 13 anos de idade por conta da sua curiosidade e interesse em leitura. Ainda jovem, já se manifestava com ideais revolucionários, e resolveu entrar em contato com o Partido Comunista do Brasil aos 14 anos de idade. Ela se revoltava contra a exploração a que sua família era submetida, como trabalhadores da terra.

Tentou viver em Goiânia por algum tempo, mas era inconformada com a vida na capital, e logo passou a atuar em Itumbiara. Ali, ela se tornou uma importante liderança na luta dos posseiros pela conquista de terras em conflitos agrários. José Ribeiro e ela eram ambos líderes políticos camponeses de filosofia comunista, que não demoraram para se apaixonar.

Dirce Machado atuou como educadora e parteira; construiu uma escola para alfabetizar a população; escrevia para um jornal local; auxiliava com os tratamentos médicos dos habitantes; e ainda teve tempo para constituir família.

Uma mulher que não perdeu o amor à vida, mesmo com a luta contínua. Ela foi perseguida, presa e torturada após o golpe de 1964, obrigada a fugir da repressão, chegou a dormir no mato junto de sua filha de colo. Assistiu à tortura de seu marido, José Ribeiro, de seu irmão César, e de camaradas de luta.

Ao fim da ditadura, Dirce recebeu várias condecorações, entre elas, encontram-se homenagens da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego), da Câmara Municipal de Goiânia, e até da Maçonaria francesa. Além disso, na década de 80, ela também foi vereadora eleita em Formoso por dois mandatos.

“Dirce Machado, a saga de uma camponesa da luta de Trombas e Formoso” é o título da biografia escrita em 2023 pelo educador popular Guilherme Martins, com os historiadores Paulo Winicius Teixeira de Paula e Paulo Ribeiro Cunha. A obra também conta com textos do histórico geógrafo goiano Horieste Gomes, da professora de Direito Helga Martins e do historiador Claudio Maia.

05.03.24 Isaura Lemos. Leoiran/opção
Isaura Lemos | Foto: LeoIran / Jornal Opção

Isaura Lemos

Vinda de uma família muito religiosa e numerosa, Isaura tem muitos irmãos, sendo que o mais velho era um padre; Ela viveu em um ambiente familiar ligado aos estudos de ciências humanas, tanto que apenas dois dos 14 filhos escolheram profissões de outras áreas.

O mais velhos tinha muitos livros, sobre temas que eram considerados proibidos, como fome e desigualdade. Nascida em Jundiaí e influenciada por essas leituras, aos 14 anos de idade, Isaura Lemos participou de sua primeira passeata. Aconteceu depois de um caso que chocou o país inteiro, a morte do Edson Luís Lima Souto, no Rio de Janeiro, num restaurante chamado Calabouço.

Em Campinas, aonde ela vivia, a manifestação aconteceu no Largo do Rosário. Aqui em Goiânia, seu futuro marido, Euler Ivo, participava da mesma manifestação no Lago das Rosas. “Fiquei muito estimulada a continuar, porque a gente viu que era algo pela liberdade”, relembra. Ela participava do movimento dos secundaristas, estudantes do que hoje é chamado de ensino médio.

Ela veio para Goiás com cartas de perseguidos políticos para suas famílias, uma ação discreta, mas muito importante para trazer um pouco de paz às famílias. Era um grande risco, pois essas famílias normalmente eram vigiadas, a jovem no período não tinha esse conhecimento, e participou de ações políticas consideradas “subversivas”.

“Sindicatos, associações, ou até mesmo grêmios estudantis, eram muito reprimidos, não podiam atuar, era considerado perigoso e subversivo, mesmo que fosse uma reunião de estudantes para conseguir um bebedouro”, conta ela.

E conta, ainda com tristeza, sobre a lembrança dos 61 mortos e desaparecidos da guerrilha do Araguaia, que enfrentaram um exercito, um verdadeiro massacre. “Mas nós precisávamos ajudar, cada um como podia, nesse movimento de derrubar a ditadura”, diz Isaura.

Com o marido, passaram muito tempo fugindo dos militares. Nesse período, eles auxiliavam comunidades menores com coisas hoje consideradas básicas, como saúde e água. Euler Ivo era uma liderança política fortemente monitorada e perseguida, tanto que um lavador de carros morreu por ser confundido com ele pelos agentes. Pelo mesmo motivo o casal se mudou diversas vezes e se casou em três ocasiões diferentes, utilizando diferentes nomes para fugir da perseguição.

Desde sua chegada em Goiás, Isaura atuou no Movimento Contra a Carestia, o qual buscava a redução dos preços dos produtos da cesta básica, e que culmina com a Luta pela Casa Própria. Essa, inclusive, se tornaria, a sua principal bandeira dentro da Alego, quando se tornasse deputada estadual, o apoio às famílias que buscam os programas governamentais para moradia.

Isaura foi eleita pela primeira vez para a Assembleia Legislativa em 1998 e reeleita depois disso em 2002, 2006, 2010 e 2014; tendo completado cinco mandatos.

Nonô Noleto | Foto: Arquivo Pessoal

Laurenice (Nonô) Noleto Alves

Pioneira em muitos aspectos, Nonô foi a primeira jornalista mulher do O Popular, editou o primeiro telejornal de notícias da TV Brasil Central, e ainda cobriu a Constituinte pelo jornal Folha de São Paulo e pelo Correio Braziliense. Além de ter participado da fundação do Partido dos Trabalhadores no Estado de Goiás.

Militante política e ativista dos direitos humanos, Nonô continua na cidade, participante ativa de diferentes pautas políticas. Ela pode ser encontrada no Sindicato dos Jornalistas de Goiás, ou no Bloco Não é Não (onde lutam pelos direitos das mulheres com arte e cultura). Não parece ter sido coincidência que ela nasceu exatamente no mesmo dia em que foi assinada a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A história dessa jornalista aposentada carrega um grande peso, que ela raramente demonstra por trás do grande sorriso. Quando ela tinha 15 anos de idade, o golpe chegou no Estado de Goiás, e aos 23 ela estava escondida em Jataí após a primeira prisão do marido, Wilmar Alves. Ele, que também era jornalista, foi retirado de dentro da Rádio Universitária da UFG em 1972.

Seu marido, Wilmar Alves, foi preso diversas vezes durante o período do golpe de 1964. A jornalista relata que precisou buscar pelo marido em diversos locais e ocasiões, pois viviam trocando os presos de lugar. Juntos eles se manifestavam contra o governo, com as alcunhas de “Luana” e “Fred”.

“Ele foi parar em Brasília e eu fui atrás dele, ia lá perguntar por ele sempre, quem não recebia visitas apanhava mais e eu acho que tinha até mais chance de desaparecer, eu vivia desesperada”.

Os dois atuaram como jornalistas juntos, e depois de ficar viúva, Nonô escreveu o romance vivido pelo casal nesses tempos: Flores no Quintal. Mais detalhes dessa história podem ser encontrados no livro de 2013, que leva o mesmo nome do poema que Wilmar escreveu quando aprisionado.

No relato literário, Nonô trabalha com o olhar feminino sobre as prisões, desaparecimentos e torturas, a partir do ponto de vista dos familiares daqueles presos políticos.

É uma obra completa, que narra a conjuntura política e a movimentação do país antes, durante e depois do golpe civil-militar. O livro traz ainda as músicas que eram cantadas nas manifestações, rádios e prisões; o contexto político e as notícias mais importantes da época; além de fotos e documentos do período.

Nonô e Wilmar tiveram três filhos, o primeiro, Olavo, tem no nome uma homenagem ao garoto Ismael Silva de Jesus (que morreu preso na cela vizinha de Wilmar três dias antes de completar 19 anos) que usava “Olavo” como nome falso e Olavo Hansen, outro companheiro, morto dois anos antes com a idade de Jesus ao partir. O segundo filho recebeu como nome a alcunha do pai, Fred, e escolheu seguir a mesma profissão. O terceiro filho é o músico Guilherme, que se destaca em Goiânia com a banda de samba Heróis de Botequim.

Atualmente, a jornalista tem cinco livros publicados: Alice, Araguacema e Cassununga, meus três amores (1996); O moço da camisa azul (1998); Flores no Quintal – Memórias de sonhos e de lutas (2015); Fraternidade em memórias (2022) – organização e texto final; e Roda de Saia (2022).

Homenagem à Maguinha, inicio do seu capítulo no livro Roda de Saia | Foto: Bárbara Noleto / Jornal Opção

Magda Machado

Descrita como uma loira alegre e cantante, quando sua história foi escrita, tomou a alcunha de sabiá. A jornalista (Nonô) conheceu a cantora no Colégio Estadual Professor Pedro Gomes, onde Magda era conhecida apenas como “Maguinha”. Nascida na cidade de Hidrolândia e criada em Piracanjuba, a jovem começou cantando no colégio e nos encontros de amigos, mas chegou a fazer sucesso pelos bares e boates da capital goiana com o grupo Vanguarda.

Nesse período, o irmão de Magda vivia cladestinamente e escondido por estar ligado à organizações de esquerda. Não demorou muito para que seu pai também fosse preso e torturado, suspeito de financiar a organização à qual o irmão estava vinculado. Depois da humilhação pública, ele entrou em depressão até a morte, pouco tempo depois. Por fim, um acidente de carro, com relatos de negligência médica, levou a vida de sua mãe.

Os artistas, cantores e compositores eram alvos de fortes perseguições. Com dois irmãos mais novos que dependiam dela, Maguinha tomou providências de abrigo para eles e fugiu do país, pois soube que sua ordem de prisão havia sido decretada.

Maguinha optou por se exilar nos Estados Unidos, até que a condição de saúde de um dos irmãos a fez voltar para sua terra natal. Após a partida do irmão, ela escolheu se exilar novamente, dessa vez das lembranças, na Europa. E ela continuou espalhando samba e bossa nova por onde passou.

As informações sobre Magda Machado foram encontradas no livro Roda de Saia, de autoria de Nonô Noleto, o livro conta a história de onze mulheres distintas em diferentes tempos da história brasileira. A cantora e seus filhos, até onde se tem notícia, continuam vivos; ela continua no exterior e eles vivem no interior de Goiás.

Maria Cristina Moreira, Cristininha | Foto: Acervo pessoal

Maria Cristina Moreira

Mais conhecida como Cristininha, a jovem estudante foi expulsa de casa cedo por conta de “filosofias comunistas”. Vinda de uma família privilegiada, sua consciência coletiva incomodava outros membros da família. Ela não demorou para se interessar pelos movimentos por direito à terra e disse até que já sugeriu os terrenos da família para ocupação quando era mais nova.

“A primeira vez que eles me prenderam, me pegaram na pracinha aqui perto de casa; queimaram minhas mãos com cigarros; era para ser só um susto, eu acho, um aviso para eu não fazer nada”, relembra.

Envolvida desde cedo com o Partido Comunista do Brasil, ela era comprovadamente monitorada, vigiada e seguida pela espionagem militar. Isso não apenas levou às suas prisões, mas também causou um grande pavor, por si e pela sua família. E não sem motivo, já que uma família que a ajudava a organizar as reuniões clandestinas foi morta pelos mesmos agentes.

“Perdoa a minha memória, mas eu já nem sei quantas vezes eu fui presa. É difícil falar sobre aqueles tempos, vem memórias muito ruins”, compartilhou sem querer entrar em detalhes das prisões.

Entre as prisões que possuem documentação feita pelos próprios agentes, são duas: a primeira, faz referência à uma manifestação estudantil contra o aumento da passagem de ônibus, no terminal do Dergo. E, a segunda, a acusa de liderança popular no saque a um caminhão de alimentos.

Após o episódio no Dergo, a jovem foi coagida, xingada, ameaçada, interrogada e informada de que estaria sob vigilância policial a partir daquele momento. O ano era 1983. Dias depois, alguns jovens e outros estudantes reuniam-se na sede do Bloco Popular, na Rua 10, quando foram informados que todos deveriam correr e deixar a sede, pois havia uma bomba no local.

As atividades políticas permaneceram sendo reprimidas, e por isso, a estudante foi novamente agredida por policiais no ponto de ônibus do café central, apenas por vender exemplares do jornal “A Tribuna da Luta Operária”. Maria Cristina estava sendo vigiada e seguida, sabiam o endereço de sua residência, conheciam seus familiares, e monitoravam a sua atuação política

Não obstante, a militante e outros ativistas encontravam-se na sede do jornal “A Tribuna da Luta Operária”, na Rua 5 do Centro de Goiânia, quando a sede foi arrombada por policiais federais, com armas pesadas, que violentamente agrediram os presentes, destruíram e levaram equipamentos e materiais da sede.

Nesse momento, além das agressões, Maria Cristina esteve com arma de grosso calibre apontada para sua cabeça, enquanto era ameaçada de morte, humilhada e coagida. Assim, permaneceu até a chegada da radialista da Rádio Difusora, que registrou o episódio. Essa foto foi divulgada no Jornal Nacional de forma emblemática sobre os horrores da ditadura militar que terminou em 1985.

Durante o período de perseguição, ela teve sua imagem veiculada em jornais locais e nacionais (impressos e de televisão) sendo taxada como “comunista” e “subversiva”. Maria Cristina compartilha que entrou em pânico recentemente, quando precisou fazer uma ressonância da cabeça. A máquina, com todo aquele barulho e minúsculo espaço, causou uma sensação de claustrofobia e trouxe memórias pesadas. “Eu saí de lá confusa e falando para o rapaz do hospital que estava em um porão da ditadura”, relembrou.

O pedido de anistia de Maria Cristina Moreira foi negado durante o governo Bolsonaro, que exaltava esse período da história. Atualmente, Maria Cristina tem o processo em andamento e continua em busca de anistia e reparação econômica por todo o sofrimento vivido.

Essas são algumas mulheres que mantêm as memórias desse tempo vivas. Além disso, até hoje elas se dedicam a fazer suas vozes ouvidas no combate às injustiças.

De diferentes formas e pontos de vista, elas concordam que a luta pelo fim das injustiças nunca terá um fim. Cristininha ainda se revolta com a violência policial e alimenta os pedintes que batem no seu portão.

“Enquanto o povo não aprender sua história e ainda tiver alguém querendo explorar o outro, nossa luta não terá fim”, afirmou Maria Cristina no fim da entrevista.

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