Aimée de Heeran, a brasileira que namorou Orson Welles e disse: “Era muito chatinho”

Aimée de Heeren (1913-2006 — viveu 93 anos; a data de seu nascimento é um mistério) ficou conhecida como uma das mulheres mais bonitas do século 20. Chegou a ter o retrato pintado por Cândido Portinari; ela doou o quadro para o Masp. Por onde passava, entre ricos e remediados, os olhares a seguiam. No Brasil ficou conhecida como a “amante” misteriosa do presidente Getúlio Vargas, que a chamava de “a Bem-Amada”. Mas era muito mais do que isto. É o que mostra o jornalista Delmo Moreira no excelente livro “A Bem-Amada — Aimée de Heeren, a Última Dama do Brasil” (Todavia, 221 páginas).

A obra de Delmo Moreira é uma sociologia da beleza e do mundo dos muito ricos. Ao tratar especificamente de Aimée de Heeren e de seus amores, o faz sem preconceitos e moralismos, digamos, pequeno-burgueses. Há uma delicadeza proustiana na narrativa do jornalista, que sabe que, de alguma maneira, como sugeriu um escritor, a beleza pode salvar o mundo. Se, claro, pode.

Orson Welles olha, mesmerizado, para Aimée Heeren, num baile, em Veneza | Foto: Reprodução

Como a história de Aimée de Heeren e Vargas está contada à larga — por Lira Neto, por exemplo, na biografia do presidente —, narro a história do namoro entre a bela do Paraná e o mítico diretor de cinema americano Orson Welles (1915-1985). Adiante, relato alguma cosita sobre a poderosa da beleza e o poderoso da política.

O bilionário Rodman Heeren e Aimée de Heeren viviam um casamento aberto, firme no papel e livre na vida real. “Amor não tem nada a ver com casamento. Casamento é um acordo de interesses”, ela dizia às amigas casadoiras. “Outra coisa que não entendo é se separar do marido sem ter outro para casar”, acrescentava, pragmática.
O multimilionário franco-mexicano Carlos de Beistegui organizou um baile de máscaras, o Le Bal Oriental, no Palazzo Labia, em Veneza. O palácio acolhia, entre outras belezuras, a arte de Tiepolo e Rafael.

Entre os convidados para a festança estava a indefectível Aimée de Heeren. Todos e todas a queriam nos bailes, dadas a beleza, a elegância, a exuberância. Ela “chegou ao palácio de gôndola, pelo canal da Cannaregio”. Era uma rainha sem coroa, mas nobre pela beleza e pela fidalguia natural. Há a nobreza-nobreza. Há a nobreza do dinheiro. E há a nobreza do porte — este, o caso da brasileira.

Delmo Moreira conta que “as fantasias eram inspiradas na vida veneziana de outrora e, para preparar os trajes, todos haviam recebido os convites com seis meses de antecedência. Alguns usavam roupas que custaram 15 dólares [outros esbanjavam trajes de 15 mil dólares] e alguns milhões em joias, como a socialite Barbara Hutton. Pierre Cardin desenhou nada menos que 30 dos vestidos exibidos na noite. Dior apareceu com vestes criadas por Salvador Dalí; e Dalí, com criações de Dior”.

O sultão Aga Khan III e o fotógrafo Cecil Beaton eram duas estrelas da “festa do século”. Orson Welles, que não usava máscara, “vestia uma túnica de seda sobre o smoking e tinha enfiado na cabeça um turbante de vastos penachos”.

Orson Welles estava sem money e, por isso, andava pela Itália em busca de numerário para concluir o filme “Otelo”, baseado na obra de Shakespeare. Faltava dinheiro para a edição final.

No baile, com ricos e famosos flertando, Orson Welles e Aimée de Heeren se engraçaram. Os fotógrafos fizeram a festa. “Em vários cliques ele parece boquiaberto, com olhares de ressaca sobre a brasileira, coberta de joias e vestida de dourado como uma divindade oriental.”

“O casal circulou pelo salão madrugada adentro, até Aimée ouvir Welles sussurrar: ‘Vamos dançar na praça?’ Saíram do baile e não voltaram”, assinala Delmo Moreira.

Aimée de Heeren e Orson Welles deixaram os festeiros, por certo, desacorçoados. “Foram parar em Paris, onde namoraram por uma semana, tempo que ela achou razoável.”

Mesmo avessa a comentários desairosos sobre rivais e amantes, Aimée de Heeren não perdoou Orson Welles: “Ele era muito chatinho”.

O autor de “Cidadão Kane” é, por certo, um dos poucos gênios do cinema, ao lado de John Ford, Billy Wilder, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick e Glauber Rocha. Tendo a avaliar o cinema como arte derivativa, subjacente, não protagonista.

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A maior socialite brasileira do século 20

“Maior socialite brasileira do século 20”, de acordo com Delmo Moreira, Aimée Sotto Maior de Sá, mais tarde e para sempre Aimée de Heeren, nasceu no Paraná, entre 1907 e 1913 (obituário do “New York Times” menciona 1903 e a denominou de “a última das grandes damas”). Tudo indica que ela preferia 1913. Então, que seja 1913.

Aimée Sotto Mayor Sá com Getúlio Vargas e Alzira Vargas, em Minas Gerais: o presidente não conseguia disfarçar sua paixão pela paranaense | Foto: Reprodução

Auxiliar do presidente Getúlio Vargas, Luís Simões Lopes foi o primeiro marido de Aimée de Heeren.

No seu diário, Getúlio Vargas identificou Aimée de Heeren como “a Bem-Amada”. Iniciado em 1937, o ano do Estado Novo (1937-1945), o affair “durou pouco mais de um ano”.

No diário, o presidente escreveu: “Não sei o que ocorrerá, mas uma alegria secreta e imprudente me conduz. Deus governa e impele as almas como brinquedos”. O realista absoluto estava apaixonado.

Aimée de Heeren “era morena de olhos verdes, corpo harmônico, de um porte altivo e algo atrevido”, assinala Delmo Moreira.

Certa feita, Aimée de Heeren estava num quarto do Hotel Palace, ao lado do capitão Nero Moura, piloto de Vargas. O presidente bateu à porta e o militar escapou para a sacada do quarto do banqueiro Walther Moreira Sales. Ela abriu a porta “bocejando”.

Terminado o namoro com Vargas, que era casado, Aimée de Heeren se mudou para Paris, onde morava a irmã Vera, casada com Randal Arthur Plunkett, barão de Dunsany.

Lá se aproximou de Elsa Schiaparelli, Cristóbal Balenciaga, Augusta Bernard, Madeleine Vionnet, Coco Chanel, Christian Dior. Frequentou festa onde estava o embaixador Luís Martins de Souza Dantas, que “ajudou cerca de 800 pessoas a fugir da Europa”. Ele protegia judeus que tentavam escapar da perseguição do nazista Adolf Hitler, ditador da Alemanha.

Editora da “Vogue” em Paris, Bettina Ballard logo, como os demais, se encantou com a beleza e a elegância da brasileira. “Mme. Lopes, a nova beleza brasileira”, anotou a revista. “Aimée carregava a alegria como quem carrega um leque”, escreveu a jornalista. “Ela era cultuada e sabia disso. (…) Era tão linda, tão genuinamente agradável e exuberante, coberta de diamantes.”

Ao que falavam do passado, Aimée de Heeren advertia: “Eu olho para a frente, para não tropeçar”.

Elsie de Wolfe, Lady Mendl, a “mais extravagante anfitriã de Paris” (citada até em música de Irving Berlin e Cole Porter), passou a convidar Aimée de Heeren para seus bailes.

Ex-amante de Coco Chanel, Hugh Richard Grosvenor (Bendor), duque de Wesminster, ficou mesmerizado ao ver Aimée de Heeren — que ainda não tinha Heeren no sobrenome. Era “o homem mais rico da Inglaterra”.

Em Nova York, para onde se mudou fugindo de Hitler, que havia invadido a França, Aimée de Heeren conheceu Rodman de Heeren, Roddy, que se tornou seu segundo marido. Ele era filho do conde Arturo de Heeren, da Espanha, e da milionária Fernanda Wanamaker, herdeira da maior loja de departamentos dos Estados Unidos.

Rodman de Heeren e Aimée de Heeren se casaram em 1941. “Em janeiro de 1942, a revista ‘Time’ a elegeu uma das dez mulheres mais bem-vestidas” de 1941. Ela apareceu ao lado da duquesa de Windsor, de Thelma Chrysler Foy e de “Babe” Cushing Paley.

A única filha do casal, Cristina, nasceu em 1943. Aos 81 anos, mora na Espanha.

Terminada a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Rodman e Aimee de Heeren (o sobrenome talvez fique mais assentado na brasileira) mudaram-se para Biarritz, onde compraram a Villa La Rousarie e circularam com Wallis Simpson e Edward, ex-VII, e outros nobres e milionários.

Há indícios de que a grande paixão de Aimée de Heeren tenha sido Walter John Montagu-Douglas-Scott, duque de Buccleuch. Eles se conheceram em 1967. Laís Gouthier disse a Delmo Moreira que eles circulavam “como um casal evidentemente apaixonado”.

Casada com o embaixador Hugo Gouthier, Laís Gouthier, filha do engenheiro Bernardo Sayão e tia do jornalista e escritor Sérgio de Sá (professor da UnB) — um dos construtores da BR-153, a Belém-Brasília —, foi amiga de Aimée de Heeren.

Sempre discreta sobre seus amores, Aimée de Heeren disse sobre o relacionamento com o duque de Buccleuch: “Sempre lembro de uma noite ali. Eu subindo por aquelas escadas correndo, com o duque correndo atrás” (no hotel Claridge’s)

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Chatô: Aimée ajudou a escolher quadros para o Masp

O Museu de Arte de São Paulo (Masp), construído graças à energia do tycoon Assis Chateaubriand, o Chatô, contou com o apoio de Aimée de Heeren, que tinha uma imensa rede de contatos na Europa.

“Segundo Chatô, foi Aimée quem descobriu em Paris a obra-prima do mestre do Renascimento Andrea Mantegna, ‘São Jerônimo penitente no deserto’. Estava em posse de um velho conhecido dela, o príncipe Paulo da Iugoslávia”, relata Delmo Moreira.

Aimée de Heeren e Chatô em Londres | Foto: Reprodução

Na Europa assolada pela guerra, com os ricos precisando de dinheiro vivo, Chatô comprou o quadro das bailarinas de bronze de Degas por 45 mil dólares e um retrato de Lautrec por 50 mil dólares. Pagou 200 mil dólares por um quadro de Frans Hals e meio milhão por um Tintoretto (este, adquirido em Nova York).

De acordo com Chatô — um dos amantes de Aimée de Heeren (dono de jornais e emissoras de rádio e televisão, era feio mas sedutor e charmoso) —, ela indicou “A banhista e o cão griffon”, de Renoir, e o “Retrato de jovem com corrente de ouro”, atribuído a Rembrandt. Delmo Moreira diz que, apaixonado, o jornalista e político exagerou na questão do papel da bela namorada na escolha de quadros para o Masp. Ela tinha bom gosto, é fato.

Diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, dom Clemente da Silva-Nigra disse a Aimée de Heeren que “havia localizado originais da expedição científica do barão Langsdorff” ao Brasil, no século 19, na União Soviética, em 1965. O beneditino revelou que havia material de Johann Rugendas, Aimé-Adrien Taunay, Hercule Florence, Frans Post.

Empolgada, Aimée de Heeren convenceu Chatô a apoiar a pesquisa de dom Clemente. Doente, o “rei do Brasil” decidiu acompanhar a “expedição” porque queria se tratar na União Soviética (não havia tratamento adequado; ele estava tetraplégico).

“O acervo visitado em Leningrado, onde os sobreviventes da expedição de Langsdorff montaram um herbanário de 60 mil exemplares levados do Brasil, era muito mais importante do que esperavam. (…) A coleção de Leningrado contava com 298 pranchas produzidas na expedição, das quais 67 eram paisagens de fazendas e montanhas mineiras assinadas por Rugendas, o pintor alemão que produziu a mais clássica representação do Brasil recém-independente do início do século”, conta Delmo Moreira.

O pesquisador acrescenta: “Guaches impressionantes mostravam a intimidade dos indígenas bororo que conviveram com Taunay e guerreiros Apiaká perfilados para serem retratados por Florence no Rio Arinos (MT)”.

Noutro arquivo, a Academia de Ciências de Leningrado (São Petersburgo) guardava “124 desenhos (de mamíferos, lagostins, insetos, répteis, peixes e aves) de Frans Post e dezenas de trabalhos do naturalista holandês Georg Margrave”.

Em outro arquivo foram vistas “135 aquarelas de cores vivas da pintora e naturalista Maria Sybilla Merian, que visitara a Guiana Holandesa e a Amazônia em 1686”.

Na página 134, há o registro de Chatô criticando o Hotel Moskva, de Moscou, equiparando-o “a um hotel de segunda classe em Goiânia”.

Há muito mais a dizer a respeito de Aimée de Heeren. Por isso vale a pena ler o belo, respeitoso e sério livro de Delmo Moreira.

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