Baixa colateral distópica: um manifesto escrito na água (?)

Rondinelli Linhares de Oliveira

“Não há artista doentio. O artista pode exprimir tudo. O pensamento e a linguagem são para o artista instrumento de uma arte”. — Oscar Wilde

Para o artista é demasiado importante que sua obra atinja outros níveis, alcance outras plagas e seja redimensionada por meio da capacidade de promover debates e discussões. Afinal, dos tantos papeis da arte, principalmente desta que há muito se convencionou chamar de contemporânea, o mais funcional e relevante é ter consistência e profundidade o suficiente para instigar e conduzir a reflexões; e estas nunca vêm de modo simples, fácil e gratuito. Paga-se com sangue, suor e muitas vezes lágrimas.

Combinar cores e materiais com a finalidade de criar ou causar sensações através de formas e sons e texturas é bem mais que uma operação técnica; é, antes ou concomitantemente, um processo sensorial, intelectual e sobretudo um resultado da leitura que o artista faz do seu ser e estar no mundo. Verbos ontológicos, o ser e o estar de cada artista forjam-se dos valores com que ele se deixa contaminar com a complexa experiência que é conviver e participar desta aventura que é a diversidade humana. Esta “contaminação” é o que faz com que aconteça o apuro de sua sensibilidade, de sua paciência e, também, da pesquisa que endossa sua produção. A tudo isto que aqui utilizo em caráter introdutório, faço-o com o primeiro intuito de justificar com essas reflexões uma verdade com a qual, apesar de parecer trivial, coloquial, clichê e outros adjetivos similares, não deixo de concordar: “Nada vem do nada”.

Desde que decidi enveredar de modo profissional pelas espinhosas trilhas da arte, minha obra requereu – ainda quando parecia ter ares decorativos – um pouco mais de substrato, tentativas de construir um corpo poético verbal ou visual formado por camadas de discursos e significados. Ao longo do percurso, tão marcado de equívocos, tropeços, descobertas, muitos nãos e algumas desventuras, fui entendendo melhor o sistema, e acessando os bastidores como funcionário público atuante em instituições difusoras das artes fui moldando minha produção e, claro, entendendo a mim mesmo. Tal entendimento reverberou em minha maneira de operar materiais e símbolos e me trouxe uma certeza inegável: sou responsável, enquanto artista das palavras e das visualidades, pelo que digo com minha obra, mas não consigo controlar ou mudar o que o público entende, interpreta e reproduz acerca do que viu. Entretanto, apesar desta clareza, não deixa de ser angustiante toda a aura sombria que tem pairado sobre minha vida como consequência das reações adversas de expressiva parcela social caxiense desde os dias que se seguiram à abertura de minha mostra “Baixa Colateral Distópica” no início de dezembro passado.

Como resposta à “Convocatória de Arte – Ocupação Galeria de Artes 2025 Caxias do Sul”, apresentei cinco propostas dentre as quais estava a “Baixa Colateral Distópica”, reunião de uma recortada série de trabalhos com temática sociopolítica que englobam linguagens como assemblagem, pintura, fotografia e instalação. Para minha surpresa, recebi algum tempo depois notificação oficial de que ela havia sido selecionada. Deu-se então o início de negociações com a Secretaria de Cultura de Caxias do Sul referentes a documentação, acerto de datas, classificação indicativa e outros pormenores. Desde o início ficou estabelecido que, dado o teor político das séries e algumas conotações de elementos religiosos contidos em alguns trabalhos, a mostra seria oferecida estritamente a um público 18 +. Durante as negociações, o transporte, a montagem e mesmo a abertura, nunca me faltou suporte por parte do núcleo de Artes Visuais liderado pela funcionária Mona Carvalho.

Oficializada a abertura em 6 de dezembro, tudo transcorria aparentemente bem. Aparentemente; porque dias antes do Natal recebi de comentário em uma publicação de agradecimento e divulgação uma mensagem clara, direta e ofensiva de uma anônima caxiense que em tom ameaçador, depois de desmerecer meu trabalho, disse que havia alguém tomando as devidas providências contra a exposição. De início, apesar da surpresa e de um leve incômodo eu quis crer que tal afronta se tratava de um blefe; até que representantes da Secretaria de Cultura me informaram via telefonema da real situação: estavam na mira de fundamentalistas religiosos (incitados por uma ação pública engendrada por um político local recém-eleito a vereador) a integridade dos funcionários e do próprio prédio do Centro Municipal de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho como também de minhas obras.

Em vídeo inflamado de cólera e publicado no Instagram, o político Hiago Morandi, representante do PL, em tom sensacionalista resume a exposição em “putaria e zombação da fé alheia”.

Sob alegação de que as obras são um antipatriotismo e expressão de intolerância religiosa, Morandi que chama a exposição de “patifaria”, anuncia que levará ao Ministério Público denúncia e que fiscalizará onde está sendo gasto o dinheiro público. Este vídeo, que foi o estopim de todo o desarranjo tomou força com os comentários revoltosos e coniventes de vultosa parcela de pessoas que se declaram religiosas, conservadoras e patriotas. Mas não parou por aí.

No encalço do vídeo de Morandi, surgiu um outro feito pelo também recém-eleito e do partido “Progressistas” Alexandre Bortoluz. O político, conhecido na região como “Bortola”, repetindo o modus operandi do companheiro Hiago fez um vídeo em que chama a exposição de “vergonha” e “putaria” e a acusa de ser oferecida a crianças e adolescentes e de ser uma afronta à pátria e à religião.

No mesmo vídeo o político diz que levará ao Ministério Público uma representação contrária à exposição e conclui que a prefeitura decidiu manter o Ordovás com as portas fechadas até o dia 6 de janeiro para serem “apurados os responsáveis de tal ato que afronta à pátria e à religião”.

Capitão Ramon (também vereador do PL), elemento desta trindade reacionária, fortaleceu a ação que foi levada adiante. O Ministério Público se posicionou anunciando que, em visita ao local, não se verificou a possibilidade de menores de idade acessarem o espaço dada a sinalização clara, acessível e repetida da classificação indicativa por ali e em outros meios espalhada. Contudo, sobre os outros aspectos, nada foi pronunciado ainda.

Em um primeiro momento, a Secretaria de Cultura, que até então estava sob o comando de Cristina Nora Calcagnotto, emitiu nota oficial nas redes em defesa da exposição, contrária à censura e justificando que o fechamento das portas se devia às ameaças recebidas.

Procurado pela até então secretária, que disse não querer “dar palco a este povo” e que sugeriu o encerramento da exposição com a possibilidade de, em contrapartida, futuramente eu ocupar algum espaço da agenda, manifestei minha contrariedade com a proposta e ainda assim, em função da segurança dos funcionários, do prédio da instituição e também das obras, eu concordaria sob a seguinte condição: que houvesse dois documentos específicos e detalhados sobre o motivo do precoce aborto do curso da mostra.

Um destes documentos deveria ser publicado em todos os canais oficiais da Prefeitura de Caxias e o outro seria dirigido a mim via e-mail. Fui claro quando fiz tal exigência com a justificativa de que não se encerra uma exposição antes do tempo por censura e em silêncio como se nada tivesse acontecido. Precisávamos, sim, calar a voz dos haters e extremistas que se levantaram contra a liberdade de expressão artística, eu pontuei enfático. Ela, que agora não está mais no cargo, ficou de consultar a equipe de imprensa e me ligar, mas desde então nunca mais tivemos contato.

Procurado por alguns meios de imprensa caxiense, como a Rádio Viva, a RBS TV e a Rádio Caxias, para todas esclareci sobre conceitos, pesquisas, referências, origem e o real significado da exposição; falei das sinalizações de classificação indicativa nos materiais de divulgação e no próprio espaço físico e de cada obra conter na ficha técnica um QR Code que permite ao fruidor o acesso ao que cada trabalho representa.

Têm sido dias difíceis para mim que, por curiosidade e necessidade de coletar material para ações jurídicas futuras acesso Google, Instagram, Facebook e WhatsApp. Assim como continuo sendo bombardeado por mensagens inflamadas de cólera, seguem também cerradas as portas do Ordovás.

Ainda estamos em 8 de janeiro, ainda estamos maior parte de nós sob o êxtase de virmos uma de nossas duas Torres vencer o Globo de Ouro na categoria de melhor atriz, tendo representado nas telonas a vida e luta de Eunice Paiva, viúva de um grande homem perseguido e morto pela ditadura que assolou o país. Estamos em 2025, em pleno século XXI, e ainda vemos, perplexos e desacreditados, portas de exposições sendo fechadas, artistas sendo perseguidos, livros sendo censurados, coachs concorrendo a prefeituras e sendo expressivamente bem votados, pessoas confundindo truculenta e fascistamente patriotismo com ataques a prédios que abrigam nossos soberanos poderes. Aonde vamos (se é que vamos) parar? Quando foi que a humanidade começou ou continuou dando tão errado?

O desconforto e inconformismo de expressiva quantidade de pessoas caxienses com relação à exposição “Baixa Colateral Distópica” vem do fato de que as obras, homônimas, trazem um irrevogável questionamento das crenças políticas que resultaram em um fanatismo. Encaro estas manifestações de ódio e repulsa à mostra como uma histeria coletiva motivada, também e sobretudo, pela falta de formação, de consciência e educação filosófica, literária e artística. Faltam repertório de vivência e de interpretação textual, visual, política por parte das pessoas. Neste sentido de oposição das mesmas ao que está no Ordovás (ainda sob interdição e portas fechadas, mas ocupa o espaço) fico feliz em saber que cada obra cumpriu – e tomara que continue cumprindo – o papel de inquietar, gerar questionamentos e seguir em algum nível causando mudanças.

Márcia Tiburi, em um texto intitulado “Arte e Autoritarismo”, publicado na Revista Cult de nº 230, de dezembro de 2017, por ocasião das polêmicas que levaram ao fechamento da mostra “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, aponta que “As obras de arte tornam-se insuportáveis porque dizem justamente aquilo que, por algum motivo, não se poderia dizer.”

Enquanto ainda não afastaram de mim “este cálice / De vinho tinto de sangue”, quero aproveitar o espaço e o momento deste dia em que se comemora a vitória da democracia sobre a tentativa de golpe de estado que aconteceu dois anos atrás para manifestar meu orgulho e gratidão a uma outra parcela de pessoas caxienses ligadas a produção e manifestações culturais que, individual ou coletivamente, têm dirigido palavras e atitudes de apoio a este momento nebuloso que estou vivendo. Que se faça a justiça e a parcela da população que se interessa por arte possa acessar e fruir com as obras da exposição e que cada cidadão brasileiro tome consciência e como ensinamento a reflexão do nosso bom, nunca velho e sempre certeiro Nelson Rodrigues de que “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.

Rondinelli Linhares de Oliveira é artista visual, escritor, analista em cultura.

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