A bengala de Vellasco, o socialista goiano que visitou o Papa e Mao Tsé-tung e gostava de Elvis Presley

Luís Estevam

Especial para o Jornal Opção

No dia 11 de março de 1973, um corpo foi levado para sepultamento no cemitério Jardim da Saudade, nos subúrbios do Rio de Janeiro. Eram 11 horas da manhã, dia cinzento, quando o corpo de Domingos Netto de Vellasco foi acomodado no Lote 4010, Setor I, daquele cemitério.

Era um homem bem alto, observaram os coveiros. E, a julgar pela quantidade de coroas de flores, amigos e correligionários presentes, deve ter sido, de fato, um grande homem.

Os coveiros ficariam mais intrigados se soubessem que o falecido era um ardoroso cristão e, ao mesmo tempo, um acirrado líder socialista. Um homem que visitava o Papa Pio XII em Roma e também Mao Tsé-tung na China.

A notícia do falecimento de Vellasco se espalhou pelo Estado de Goiás. Em cidades da zona Estrada de Ferro houve manifestações de pesar e condolências. Principalmente em Catalão, onde seu primo João Netto de Campos estava à frente da prefeitura municipal. Era também a cidade natal do seu amigo particular e correligionário Wagner Estelita Campos.

Quatro meses após o falecimento de Domingos Vellasco, fundou-se a Academia Catalana de Letras e o seu nome foi escolhido para patrono de uma cadeira naquela entidade.

Na verdade, Domingos Netto de Vellasco foi um goiano que se destacou na literatura e na defesa da democracia. Além de escritor e teórico do socialismo, exerceu mandatos como deputado federal e senador na antiga capital, Rio de Janeiro. O seu eleitorado era esparso, residindo nos confins desconhecidos das pequenas cidades do estado de Goiás.

Papa Pio XII e Mao Tsé-tung: o religioso e o comunista dialogavam com Domingos Vellasco | Fotos: Reproduções

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Vellasco foi militar

Domingos Vellasco era, antes de tudo, um disciplinado militar. Herança de família. Seu pai, Francisco d’Abadia de Vellasco, tinha sido o primeiro goiano a se alistar, voluntariamente, na Guerra do Paraguai, obtendo o título provisório de tenente do exército brasileiro. Sua mãe, Anna Maria Netto, era descendente de tradicional família que se instalara, no século XIX, na Cidade de Goiás e em Catalão principalmente. Ambos de classe média.

Domingos Netto de Vellasco nasceu em 1899 na Cidade de Goiás, onde fez seus primeiros estudos no Liceu. Logo em seguida, seu pai conseguiu uma vaga no Colégio Militar do Rio de Janeiro e o rapaz passou a viver nos quartéis cariocas.

Na Escola Militar de Realengo, o aspirante a oficial Domingos Vellasco amargou uma triste lembrança. Foi vítima de violento trote, por parte dos veteranos da cavalaria do Exército, que o aleijou por toda a vida. Obrigado a servir de montaria, andando de quatro, foi cavalgado pelos seus colegas de farda por longo período de tempo. Com isso, deslocou a rótula do joelho esquerdo e enfrentou grave problema na coluna que o obrigou a andar de bengala o resto da vida. Apesar disso, não registrou queixa e nunca reclamou do episódio.

No posto de tenente, deu baixa nos quartéis em 1921, mas participou do movimento tenentista no ano seguinte e, dez anos depois, foi o comandante das tropas goianas que lutaram contra os paulistas, na Revolução de 1932, operando na região sul do Mato Grosso.

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Vida política do socialista

Domingos Vellasco se formou em Direito na faculdade de Niterói e começou a atuar como jornalista na imprensa fluminense, colaborando também nos jornais goianos. De início, criticava a oligarquia dos Caiado em Goiás e apoiava a Aliança Liberal tomando parte na Revolução de 1930.

Getúlio Vargas e Pedro Ludovico Teixeira: aliados | Foto: Reprodução

Com a vitória dos revolucionários, poderia ter sido indicado para interventor no Estado de Goiás. Para isso, contava com apoio político no âmbito federal. Mas, sempre preferiu o caminho democrático, conforme relatou posteriormente. Mesmo assim, aceitou ser nomeado secretário de Segurança e Assistência Pública no governo do interventor Pedro Ludovico.

Na década de 1930 continuou participando da movimentação política nacional, militando principalmente em Goiás. Naquele período, bastante incerto e conturbado, foi eleito deputado federal em 1934. Todavia, acusado de apoio ao comunista Luiz Carlos Prestes, acabou sendo detido em 1936 e amargou quase um ano na prisão por perseguição de Filinto Müller, a mando do presidente Getúlio Vargas.

Ele próprio elaborou sua defesa jurídica e foi libertado em 1937, ano em que o Legislativo foi extinto com a imposição do Estado-Novo. Cassado, ficou quase uma década no Rio de Janeiro trabalhando no mercado imobiliário. Com o fim do Estado-Novo em 1945, Domingos Vellasco fundou o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e se elegeu novamente deputado federal por Goiás.

Nas eleições municipais de 1947, o PSB elegeu para prefeito de Catalão, João Netto de Campos, primo de Vellasco. Apesar de ser um partido novo, ainda em formação, alcançou uma vitória esmagadora naquele município.

Em Catalão, depois de duas décadas sem eleições municipais, a campanha política foi acirrada e violenta. Até mesmo a esposa de Domingos Vellasco, por pouco, não se tornou vítima do embate.

Domingos Vellasco (centro) com seu advogado e Belinha, sua mulher | Foto: Reprodução

Domingos Vellasco, desde 1921, foi casado com a vilaboense Irisbella Rosa Marques de Paula, conhecida como Dona Belinha. Ela sempre o acompanhou nos projetos e nas viagens que realizou.

O casal ia sempre a Catalão onde residiam familiares, diversos amigos e correligionários. De certa feita, no calor da campanha política, Dona Belinha andava pela cidade em uma charrete quando foi abordada por jagunços que planejavam sequestrá-la. Não se sabe com que intenções. Na certa para negociar ou atingir emocionalmente o líder Domingos Vellasco. Mas Dona Belinha foi decidida e agiu rapidamente. Conseguiu alcançar seu revólver na bolsa a tiracolo e começou a atirar a esmo, com tamanho alarde, que assustou os jagunços.

Pouco tempo depois do ocorrido, Vellasco foi eleito senador da República pelo Estado de Goiás. Sua presença no Senado, de 1951 a 1959, ganhou destaque nacional e internacional. Passou a divulgar o socialismo em todos os lugares e instâncias. Esteve com o papa Pio XII em Roma e com Mao Tsé-tung na China, por diversas vezes, além de estadia em vários outros países. No Chile, por exemplo, ganhou monumento público, em sua homenagem, com a legenda “o senador das Américas”.

Com o fim de seu mandato no senado, Domingos Vellasco se elegeu deputado federal pelo Rio de Janeiro, mas abdicou da representação. Foi nomeado ministro do Supremo Tribunal do Trabalho, o último cargo público que ocupou.

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Socialista cristão

Vellasco viajou muito pelo interior do Brasil, sempre apoiado em sua bengala e sempre acompanhado da esposa. Na sua bagagem, um pertence obrigatório era o violão. Gostava de executar melodias de Elvis Presley (como “Whatever Will Be”) e canções de raiz sertaneja (como “Moda da Mula Preta”). Depois das reuniões políticas quase sempre fazia a sua apresentação musical.

Era profundamente humano e humanista. Foi um exemplo de cristão, sem deixar de ser socialista, e socialista, sem deixar de ser cristão.

Elvis Presley, um dos inventores do rock, era apreciado por Vellasco | Foto: Reprodução

Verdade que, chegou a ser tachado de oportunista político em função das diferentes alianças que firmou na vida pública. Outros ainda o consideraram como seguidor de Maquiavel, os fins justificando os meios, pela utilização de várias legendas ao longo do tempo. No entanto, poucos enxergaram no genuíno ideólogo, a sua inabalável coerência e firmeza de caráter.

Não poderia ser diferente. O pensamento de Vellasco esteve ancorado numa forte convicção ideológica que ele próprio desenvolveu a partir de suas leituras. Foi um militante socialista inteiramente coerente e esclarecido.

O seu primeiro livro, “Sal da Terra”, editado em 1939, contém sete capítulos. Neles, o autor faz um estudo a respeito da atitude do cristão face ao totalitarismo tanto de direita como de esquerda. Aborda a divergência entre cristianismo e comunismo, tecendo críticas à Teoria do Valor de Marx. Defende, ainda, o fundamento cristão do direito à propriedade e reforça as “verdades perenes” da doutrina cristã.

Em 1946 publica outro livro, “Rumos Políticos”, contendo diferentes cartas a um comunista, a um católico, a um integralista e a um democrata. Aponta, em resumo, como deve ser a atividade política de um fiel cristão frente às ideologias da época.

Durante o mandato de senador, publica mais um livro, “Cristianismo Social” expondo a essência de sua religiosidade. Esclarece, de vez, o seu pensamento fazendo analogia entre o Socialismo Democrático e o Cristianismo Social, dois conceitos aparentemente contraditórios.

Em 1960, lança seu último livro, “Nova China”, relembrando os encontros com Mao Tsé-tung. Revela uma faceta pouco divulgada do ditador na poesia e confessa sua admiração pelo que estava se fazendo na China “no sentido de elevar e dignificar o homem como criatura de Deus”.

Defende o planejamento chinês como um grande salto para a frente na luta contra a fome. Faz um estudo sobre o sistema asiático de cooperativas e também sobre a miséria e o latifúndio. Conclui que a China não é, nem o paraíso e nem o inferno, conforme noticiado pela mídia da época. Esclarece que não está fazendo propaganda comunista, mesmo porque “admira também as instituições do povo americano”.

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Bengala de Vellasco

Domingos Netto de Vellasco falava inglês, francês e espanhol com grande fluência. E utilizava, em seus escritos, um português muito casto. No Congresso Nacional estão registrados mais de uma centena de discursos proferidos pelo líder socialista que atestam a sua coerência, determinação, coragem e profundo conhecimento teórico.

Domingos Vellasco e Mao Tsé-tung, na China | Foto: Reprodução

Em termos de coragem, deixou uma peça histórica, de 60 páginas, que foi publicada pelo “Diário do Poder Legislativo” em 1937, quando Vellasco elaborou a sua “Defesa Prévia”, escrita em 1936 na prisão. No texto não arredou um milímetro em suas convicções. Ao contrário, apontou irregularidades e falcatruas em diversos setores governamentais, revelando o ódio dos que manejavam o poder contra as liberdades democráticas.

Domingos Netto de Vellasco necessitou de uma bengala para apoio de seu corpo durante a vida inteira. Mas a verdadeira bengala espiritual de Vellasco foi o seu pensamento e suas convicções. Ousou unir, na teoria e na prática, o cristianismo social e o socialismo democrático.

Luís Estevam é doutor em Economia. É colaborador do Jornal Opção.

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