Sai em livro a poesia de Maria do Carmo Ferreira, a Emily Dickinson brasileira

O “Valor Econômico” publicou na sexta-feira, 10, uma reportagem, “A poesia de uma vida escondida”, assinada por Guilherme Pavarin, que conta a história da poeta Maria do Carmo Ferreira que, até os 85 anos, não havia publicado nenhum livro. Ela nasceu há 86 anos, em Cataguases, Minas Gerais, e mora no Rio de Janeiro.

A história de Maria do Carmo Ferreira, a Carminha, lembra a da poeta americana Emily Dickinson (1830-1886), que, tendo escrito quase 2 mil poemas, não publicou nenhum livro. Escrevia e guardava os escritos (em vida, saíram em jornais cerca de dez poemas). Num deles, disse: “Publicar — é como leiloar/ a consciência humana —/ A pobreza justificaria/Essa mesquinharia” (tradução de Aíla de Oliveira Gomes).

“Poesia Reunida (1966-2009)”, de Maria do Carmo Ferreira, sai, com 560 páginas, pela Martelo Casa Editorial (dirigida por Miguel Jubé, em Goiânia). Custa 265 reais. São três volumes: “Cave Carmen”, “Coram Populo” e “Quantum Satis”.

Maria do Carmo Ferreira: formada em Letras pela UFMG e mestre pela Universidade de Illinois. Poeta elogiada pelos concretistas, Guilherme Gontijo Flores, Ricardo Domeneck e André Seffrin

A poesia brasileira é meio Batman e Robin, quer dizer, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Por vezes, escalam Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Manoel de Barros. Mulheres? Falam de Cecília Meirelles e Adélia Prado. Há outras, como Angélica Freitas e Yêda Schmaltz.

Mas a poesia escrita por mulheres ganha — ou ganhava — pouco destaque. Excelente poeta, Maria Lúcia Alvim quase nunca é citada (a “Poesia Reunida” saiu pela editora Relicário). Maria do Carmo Ferreira merece um lugarzão entre os grandes? De acordo com a crítica, a nova crítica, sim. Sua poesia é o “cotovelo” que vai alçá-la ao palco, para colocá-la ao lado dos grandes? Sim, ao lado.

Por que esqueceram a poesia de Maria do Carmo Ferreira? Eis o problema: não olvidaram. Até 2024, rejeitava qualquer sugestão de publicá-la. Irritava-se e afastava-se dos insistentes. (Sua irmã, Celina Ferreira, também escreveu uma poesia de “altíssima qualidade”, segundo o crítico André Seffrin, no artigo “Maria do Carmo e o lirismo da intimidade cotidiana”, publicado no “Valor”.)

Murilo Rubião, Haroldo e Augusto de Campos

Em 1966, o atento editor do “Suplemento Literário de Minas Gerais”, Murilo Rubião (1916-1991), publicou poemas de Maria do Carmo Ferreira. Siderado pela qualidade de sua poesia, o contista contatou Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos. Os poetas concretistas, empolgados com a “filha” (rebelde?) de Carlos Drummond de Andrade, publicaram poemas de sua autoria na revista “Invenção”. Ficaram impressionados com a força poética da Drummond de saia das Minas Gerais.

Entretanto, depois de brilhar, Maria do Carmo Ferreira simplesmente desapareceu do mapa geográfico e poético do Brasil. Porém, nos anos 2000, admitiu a publicação de alguns poemas em blogs.

Em 2009, desapareceu pela segunda vez… e parecia para sempre. “Foi por causa da religião que havia abandonado a poesia”, assinala o “Valor”.

Quem é, afinal, essa poeta que escondia o ouro de Minas? Maria do Carmo Ferreira é formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e é mestre em literatura comparada pela Universidade de Illinois. Traduziu poemas do irlandês W. B. Yeats e de Emily Dickinson (“sua grande referência”).

Silvana Guimarães e Guilherme Gontijo Flores

Editora da extinta revista “Germina”, Silvana Guimarães, ao perceber a imensa qualidade da poesia de Maria do Carmo Ferreira, tentou convencê-la a publicar livros. “Quando eu falava do tema [publicação de sua poesia], ela me xingava, dizia que era ex-poeta e desligava o telefone na minha cara.”

Sabe aquela história que rendeu filme: “nunca te vi, sempre te amei”? É o caso. Maria do Carmo Ferreira e Silvana Guimarães nunca se encontraram — conversam por telefone — mas se tornaram almas gêmeas. Este ano, irá ao Rio de Janeiro para conhecer a poeta.

O escritor Guilherme Gontijo Flores — um dos melhores tradutores do país (de Rabelais e Shakespeare) —, ao conhecer a poesia de Maria do Carmo Ferreira, apaixonou-se a, digamos, zero vista. “O impacto sobre mim foi tão grande que reuni tudo que achei e enviei um arquivo para amigos com toda a poesia dispersa.”

Em 2021, insatisfeito com o “anonimato” da poesia de Maria do Carmo Ferreira, Guilherme Gontijo Flores acionou Silvana Guimarães. Para organizar uma força-tarefa pela publicação da autora da Zona da Mata Mineira.

Munida de coragem, dada a resistência da poeta, Silvana Guimarães entrou em contato. Chegou a pensar que iria “apanhar” pelo telefone. Mas não foi bem assim. Agora, depois de décadas de relutância, Maria do Carmo Ferreira concordou com a publicação de sua poesia. “Atribuo isso à pandemia, que a deve ter deixado fragilizada.”

Maria do Carmo Ferreira fez uma exigência: o poeta e jornalista Fabrício Marques deveria participar da operação para publicar sua poesia.

Com a autorização, Silvana Guimarães e Fabrício Marques apressaram-se a organizar a obra de Maria do Carmo Ferreira para publicação. A dupla selecionou 231 poemas e os publicou em três volumes.

Os livros contemplam as três fases da poesia de Maria do Carmo Ferreira: a concretista, a autobiográfica e a metafísica.

Silvana Guimarães e Fabrício Marques, na síntese do “Valor”, sustentam que a poesia de Maria do Carmo Ferreira pode ser resumida mais ou menos assim: “Cuidado intenso com a forma: experimentações, jogos de palavras, neologismos, cortes arrojados, elipses e uma mistura babélica de línguas”. Sua obra, enfatizam, é “atemporal”.

Ricardo Domeneck e André Seffrin

Ouvido pelo “Valor”, o poeta e crítico Ricardo Domeneck afiança: “Ela demonstra como é possível escrever poemas com forte carga emocional sobre experiências como o amor e a separação, expressar sentimentos difíceis e muitas vezes contraditórios, sem descuidar da linguagem, sem cair na autoindulgência. É poesia lírica com precisão e sem preguiça”.

O crítico literário e ensaísta André Seffrin comenta a poesia de Maria do Carmo Ferreira: “Experimental e erudita, sim, mas uma poesia da intimidade cotidiana, do mais áspero lirismo amoroso, e da memória familiar, nesse particular, um pouco à maneira de Drummond de ‘Boitempo’, uma poesia do clã”.

No poema “Trajetórias” (sobre a irmã Celina Ferreira), Maria do Carmo Ferreira assinala: “Só Deus é testemunha desse abismo/ que a separou de nós e ainda a mantém tão viva”.

André Seffrin transcreve o poema “Dívida”: “Dívida — e diga-se/ a bem da verdade —/ que me instituiu/ um ser de linguagem./ Mesmo que eu pudesse/ não poder poder/ dividir meu ser/ em dupla palavra/ de uma mesma face:/ dádiva que é dívida/ dívida eu é dádiva./ Dívida alvinegra,/ Mas alvissareira:/ meu banco de dados/ (contra, a favor?)/ de matriz arcaica./ Dívida de vida./ Vida endividada./ Dívida indevida:/ víbora esmagada.”

Ao término de seu comentário entusiástico, André Seffrin postula: “Com ela, a partir de agora, nossos poetas terão muito a aprender”.

Com quase 90 anos, a poeta, dizem os editores, “está em estado delicado”. Silvana Guimarães diz que “ela assistiu a alguns vídeos do lançamento [em dezembro de 2024] e ficou emocionada”.

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