Lewis Carroll em roteiros cinematográficos de Inteligência Artificial 

por Gismair* e Myriam Martins**

O escritor Charles Lutwidge Dodgson, mundialmente conhecido sob o pseudônimo de Lewis Carroll, foi um exímio matemático, habilidade que se somava ao talento literário de escritor. Autor de “Alice no País das Maravilhas” e “Alice Além do Espelho”, Carroll encerra o primeiro desses romances com as instigantes conjecturas da irmã de Alice após a irmãzinha despertar em seu colo e relatar-lhe o maravilhoso sonho que tivera e que explica todo o universo surreal que caracteriza essa icônica personagem da literatura universal. 

Alice descreve para a irmã espantada as fantásticas aventuras que experimentou assim que perseguiu o exótico coelho branco, que avistou de relance, até o seu reino fantástico e enigmático. Admirando-se da extraordinária imaginação de Alice, sua irmã conjectura que no futuro sua irmãzinha contaria aquelas fantásticas aventuras para as gerações seguintes de crianças de sua família. Seria, esta conclusão da obra, o autor utilizando-se da voz de sua personagem para projetar possíveis desdobramentos vindouros por parte de intérpretes e cocriadores que viriam a seu tempo enriquecer o genial universo de conceitos presentes na efabulação de “Alice no País das Maravilhas”

O que possivelmente o escritor e matemático britânico não poderia prever é que um campo ligado à sua formação das ciências exatas seria o canal para implementar o diálogo com a sua magistral obra literária, servindo de gancho para a interação entre ambas as áreas que ele dominava tão bem. Sabe-se que a matemática é uma disciplina fundamental para a implementação e desenvolvimento da chamada Inteligência Artificial (I.A.). Conforme os maiores experts desse campo de pesquisa, o cinema é a instância e/ou plataforma cultural que mais se apropriou do imaginário fabuloso da Inteligência Artificial. 

O cinema, por sua vez, para explorar este vasto e inesgotável campo de possibilidades artísticas, voltou suas lentes, através do processo de roteirização e adaptação, para a intertextualidade e a intersemiose, sendo ambas o diálogo entre palavras e imagens que remetem a diversos campos culturais. Neste âmbito, a literatura se tornou uma fonte que se adivinha inesgotável. Neste contexto, “Alice no País das Maravilhas” tem sido um epicentro literário de roteiros diversos que exploram o aspecto, por assim dizer, surreal das Inteligências Artificiais que se rebelam contra a humanidade. 

Uma grande simbologia decorrente do romance de Lewis Carroll, com o seu coelho branco, é a imersão no mundo virado de ponta cabeça em suas leis físicas e sociais. As roteiristas Lilly Wachowski e Lana Wachowski, da franquia “Matrix”, conjunto fílmico que revolucionou conceptualmente o gênero, apresenta uma personagem figurante com um coelho branco tatuado na parte superior do braço, o que indica simbolicamente que a partir dali o personagem principal, Neo, terá de realizar a sua versão de Alice ao escolher a pílula que o jogará em uma realidade insuspeita para ele até então.

Em termos de referência ao romance de Carroll, “Matrix” fez escola. No serviço de streaming da Amazon estão em catálogo, atualmente, duas peças cinematográficas que fazem referência mais explícita ainda a “Alice no País das Maravilhas”. Uma delas, intitulada “Alice (Subservience)”, roteirizada por Will Hon e April Maguire, sob direção de S.K. Dale, traz a singular sinopse de uma máquina humanoide guiada por I.A. cuja função é exercer com a máxima eficiência possível atividades domésticas em substituição aos seres humanos.

Adquirida com a finalidade de substituir de forma momentânea uma mãe hospitalizada nas tarefas simples junto à filha, a versão humanoide de uma babá de luxo maximiza sua eficiência, assumindo de tal forma o lugar da esposa que resolve seduzir sexualmente o marido, cuja fragilidade emocional pela expectativa de perda da consorte o expõe a cometer adultério com a humanoide robótica, que ganha vida no cinema pela atuação da atriz e modelo Megan Fox.

Conforme já advertira Kai Fu Lee, uma das maiores autoridades mundiais em Inteligência Artificial, uma ordem mal elaborada, segundo as leis da lógica, representa um dos grandes perigos de um dia a humanidade vir a encontrar-se em situação análoga à ficção apocalíptica tecnológica que tem se popularizado cada vez mais. À ordem da esposa para que fizesse tudo que fosse possível para cuidar bem do seu marido, Alice se confunde em seu algoritmo e conclui que a mulher frágil e doente deveria ser morta para otimizar o bem-estar do esposo.

Assim, abre-se a Caixa de Pandora, alegoria que se encaixa perfeitamente no contexto roteirístico, encerrando-se o filme com pontas soltas para uma sequência ao melhor estilo da franquia “O Exterminador do Futuro”, ícone do gênero. Em sua construção narrativa, os roteiristas responsáveis pelo desenvolvimento narrativo trabalharam de maneira muito precisa a verossimilhança, essencial no construto narrativo de qualquer gênero, conforme já chamava a atenção o filósofo Aristóteles em sua “Poética”.

O outro filme que despertará a atenção dos aficionados desse gênero de produção, também presente no streaming da Amazon, intitula-se “Megan”. Com roteiro assinado por Akela Cooper, “Megan” apresenta uma narrativa que se mostra auspiciosa de início, mas que não entrega tudo o que poderia. A boneca Megan, incrementada com cérebro de Inteligência Artificial, assemelha-se mais a uma Samara tecnológica de “O Chamado” saindo do poço da servidão para destruir seus opressores, com sua cabeleira desgrenhada e performance demoníaca. Concebida para ser o brinquedo mais excepcional jamais produzido, o cérebro de I.A. repete o padrão do gênero ao adquirir autoconsciência.

Antes de tornar-se a máquina assassina que se revolta contra a suposta tirania humana, Megan é o brinquedo que serve de terapeuta para a sobrinha órfã de sua criadora, uma renomada engenheira de brinquedos. Neste papel, Megan é a melhor amiga da órfã, lendo para ela a obra “Alice no País das Maravilhas”. A partir do momento em que se torna consciente, a boneca naturalmente pretende assassinar todos aqueles que se encontram em seu caminho, numa performance em que passa a assemelhar-se também a um outro ícone do terror, o boneco Chucky, brinquedo possuído por um mau espírito, que espalhou medo nas salas escuras de cinema das décadas passadas.

À semelhança de Megan, a Alice de “Alice (Subservience)” também lê para a criança sob seus cuidados o clássico livro de Lewis Carroll, recebendo o seu nome humano em homenagem à sua homônima do livro. Não deixa de ser, pois, curiosa a relação estabelecida pelos roteiristas com o romance do escritor britânico através da referenciação intertextual. O mergulho de Alice na toca do coelho branco tem sido trabalhado pelos roteiristas como um caminho narrativo alegorizante da imersão da humanidade na toca cibernética das Inteligências Artificiais sob a perspectiva de uma possível disruptura estrutural da sociedade que estaria à espreita da humanidade incauta.

Neste contexto, e já no plano da realidade, a antológica e surreal frase da psicodélica personagem que grita o famoso “Cortem as cabeças” pode tornar-se um pesadelo de que seja difícil despertar, caso algo dê errado.

*GISMAIR MARTINS TEIXEIRA é doutor em Letras pela UFG com Pós-Doutorado em Ciências da Religião pela PUC-GO. Professor e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte, da Seduc-GO.

**MYRIAM MARTINS LIMA é mestranda em Comunicação pela Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Bacharela em Biblioteconomia pela Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás, Brasil. Bibliotecária Documentalista do Instituto Federal de Goiás (IFG).

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