Especial para o Jornal Opção
A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é tida como uma das autoras mais talentosas da geração contemporânea, tendo suas obras traduzidas em diversos países, incluindo no Brasil, que já visitou algumas vezes e onde participou como nome de destaque em eventos como a Flip.
Filha de um professor, cresceu na cidade universitária de Nsukka, estudou medicina e farmácia por um ano e meio e, ao completar 19 anos, deixou a Nigéria e se mudou para os Estados Unidos para estudar Comunicação e Ciências Políticas. Em 2003, completou seu mestrado em escrita criativa e em 2008 recebeu o certificado como mestre de artes em estudos africanos pela Universidade Yale. Seu primeiro romance, “Hibisco Roxo”, foi publicado em 2003, tendo alcançado sucesso imediato. Autora premiada, é uma das 100 Mulheres da lista da BBC de 2021.
Contos contêm muito de autobiográfico
Essa introdução se faz necessária porque os contos do livro “No Seu Pescoço” (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Júlia Romeu) contêm muito de autobiográfico. Embora cada uma das histórias mostre temas e enredos distintos, há um elo em comum: a origem africana dos personagens e as consequências dessa origem para a vida deles. Pois as histórias transitam pela África, mostrando as dores, dificuldades e singularidades que essa terra colonizada apresenta aos que nela nascem, e pelos Estados Unidos, narrando sagas de imigrantes que buscam melhores oportunidades, mas passam por adaptações culturais que têm seu custo.

No conto que abre o livro, “Cela 1”, temos uma família de classe média nigeriana, cujos pais são professores, vivendo em relativa tranquilidade até que o filho mais novo, criado de forma muito permissiva, envereda pelo mundo do crime. Na prisão, Nnamabia vai ter que aprender a cumprir ordens, o que, de certa forma, desenvolverá sua empatia e seu senso de justiça. Aqui temos temas universais, tratados quase por acaso pela autora, mas que, paradoxalmente, são desenvolvidos com profundidade. É o caso, por exemplo, da dificuldade em criar filhos, da truculência policial, da questão da insegurança social, do machismo estrutural, da corrupção, muito presentes também no cenário brasileiro.
No conto “No Seu Pescoço” temos uma jovem imigrante que vai tentar se estabelecer nos EUA para estudar e melhorar de vida. No começo, tenta ficar com parentes, mas sofre uma tentativa de abuso por parte de um tio e então tem que procurar emprego de forma informal, encontrando amparo na lanchonete de um imigrante latino. É lá que conhece um americano que se apaixona por ela, mas as diferenças culturais serão um forte empecilho para o relacionamento, com o racismo da família travestida de condescendência e uma espécie de arrogância bem-intencionada partindo do namorado.
Nessa história, o choque cultural é revelado pelas reflexões da protagonista. Ela se escandaliza, por exemplo, com o enorme desperdício de comida nos EUA enquanto na África as pessoas passam fome, sendo que, paradoxalmente, os gordos americanos são os pobres, porque o alimento barato é calórico, mas não nutritivo. Os Estados Unidos aparecem em mais algumas críticas que são jogadas aqui e ali, no que diz respeito, por exemplo, à forma como as famílias se dispersam muito cedo, na falta de autoridade dos pais e no consumismo exagerado. Ao mesmo tempo, o país é mostrado como uma espécie de tábua de salvação, um inegável lugar de oportunidades.
No conto “Réplica” a protagonista é uma africana casada com um empresário que enriqueceu negociando com os Estados Unidos e que, por isso, tem que se mudar para lá. Apesar de viver numa mansão e gozar de certo prestígio social, a mulher sabe que está ali para que o marido possa ter outra esposa na África e que, por isso e por estar numa cultura diferente, está condenada a sentir-se só. Sua sala é enfeitada com máscaras ritualísticas que aparecem como digressões nas histórias, mas que têm um significado profundo, pois fazem um paralelo cultural e emocional com a personagem, que usa uma máscara social para caber no mundo do marido, ao alisar o cabelo para caber nos padrões de beleza branco e por aceitar viver numa cultura que não é sua porque esse é o desejo do esposo. Nesse ponto, podemos traçar outro paralelo interessante entre essa obra e o premiado livro Niktche, uma história de poligamia, da autora moçambicana Pauline Chiziane, que também fala sobre infidelidade masculina e submissão da mulher.
Já no conto “Uma experiência privada”, o espaço volta a ser o da Nigéria. Aqui, temos o encontro de duas mulheres, uma cristã não convicta e uma mulçumana, que se escondem numa pequena loja abandonada durante um conflito étnico/religioso violento. O ambiente, insalubre, poeirento e malcheiroso simboliza também o mal-estar da situação vivida pelas personagens. A mulçumana, miserável, ajudará a cristã de família rica, lhe dará o pouco que tem, um lenço, para que ela cubra um ferimento, e a permanência das duas naquele espaço gerará um convívio solidário improvável entre etnias inimigas, gerando uma reflexão da narradora: “Ela queria que Nnedi estivesse ali. Imagina os olhos cor de cacau de Nnedi se iluminando, seus lábios se movendo depressa, explicando que as ondas de violência não acontecem do nada, que a religião e as etnias muitas vezes são politizadas porque o governante fica a salvo quando os governados famintos matam uns aos outros.”
Em “Fantasma” temos novamente o campus universitário como espaço do conto, mas o tema é a vida que poderia ter sido e não foi, os sonhos abandonados, a violência que priva as pessoas de vidas dignas. No meio de dramas e dilemas muito reais vividos por um professor aposentado que não consegue receber sua aposentaria por causa do desvio de dinheiro das autoridades, um fantasma aparece para ele, como um contraponto sobrenatural num mundo materialista.
Já o conto “A historiadora obstinada” é aquele no qual aparece de forma mais explícita a questão da colonização, do aculturamento, do pecado como algo socialmente construído, não-natural, e da relação entre os colonizadores- missionários, que difere da dos oficiais pelo uso de uma violência-simbólica contra a identidade dos povos originários.
Outros contos de destaque são “Na embaixada americana”, no qual vemos a questão da violência dos regimes ditatoriais, da perseguição da imprensa e da destruição de uma família pela tirania desses regimes; Casamenteiros, que aborda a questão da sociedade patriarcal, na qual a mulher não tem vez nem voz, e do aculturamento, desta vez assumido e desejado pelo africano para caber na cultura americana; e Amanhã é tarde demais, talvez o mais poético e que também trata da questão do abuso contra a mulher.
Do ponto de vista do estilo e linguagem, as narrativas são objetivas, sem o poder da prosa poética de Pauline Chiziane, nem virtuosismos como os de Mia Couto, outro autor africano de grande talento. A autora vai jogando temas secundários como se jogasse pitadas aqui e acolá para nos dar um retrato de seu país e dos problemas enfrentados pelas pessoas que nele vivem ou que dele têm que sair. Há neles referências ao princípio do nkali, muito bem explicadas em sua palestra “O perigo de uma história única”, disponível no Youtube. Segundo tal princípio, as histórias são definidas por quem as conta, como são contadas e quando, ou seja, tudo depende do poder de quem as produz. Portanto, a História pelo ponto de vista dos colonizados só agora passa a ser questionada, e livros que abordam esse universo, como “No Seu Pescoço”, são importantes para que o leitor possa conhecer a outra versão, daqueles que foram oprimidos, escravizados e silenciados.
Simone Athayde é escritora e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.
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