Entrevista Lídia Jorge: “Somos inconformados com o mundo”

*Entrevista publicada originalmente na edição impressa do Jornal Opção datada de 24 a 30 de outubro de 2010

Entrevista publicada em outubro de 2010 no caderno Opção Cultural. Foto: Jornal Opção

“Οs escritores não estão satisfeitos com as coisas e por isso tentam recriá-las em seus livros. A ficção é um ato de rebeldia e os escritores não aceitam a vida como ela é, somos uns inconformados”. É assim que a portuguesa Lídia Jorge, 64 anos, vê o ofício dos ficcionistas.

Dona de uma obra elogiada, traduzida e premiada em diversos países – é tida como potencial candidata ao Nobel de Literatura -, a escritora fala de seu trabalho, contextualizando-o dentro da produção literária portuguesa contemporânea. Fala também de autores portugueses e brasileiros, citando favoritos dos dois lados do Atlântico.

E reforça o valor de José Saramago, escritor português morto este ano, único de língua portuguesa a receber o Nobel (1998) “A obra dele vai permanecer, independentemente de posições políticas”.

Ainda sobre o Nobel, Lídia Jorge afirma que o prêmio dado ao peruano Mario Vargas Llosa foi justíssimo- ao receber a notícia fresquinha, ela levantou os braços num gesto de exaltação: “Vargas Llosa é um autor ativo na leitura do mundo, aberto, capaz, generoso, dono de uma obra fundadora. O prêmio repara uma injustiça”.

A obra da autora portuguesa dialoga com o histórico e ela teve seu romance “A Costa dos Murmúrios” adaptado para o cinema. Ao contrário do que normalmente ocorre, Lídia revela que gostou muito da transposição, observando que a diretora Margarida Cardoso conservou o sonho humano contido no livro, respeitando o ritmo literário.

A escritora também fala de como os portugueses estão passando pelo processo de integração à Comunidade Econômica Europeia, analisando traumas e contradições e destacando a importância do papel da literatura na compreensão desse fenômeno e na antecipação do que virá.

A entrevista foi concedida minutos após a escritura proferir palestra no auditório da Faculdade de Lemas da Universidade Federal de Goiás (UFG), no dia 7 de outubro, dentro do Seminário Diálogos Pertinentes (ver página A-4). Participaram da conversa com a escritora, dona de imensa simpatia, os professores Rogério Santana da UFG, Edvaldo, Edvaldo Bergamo, da Universidade de Brasília (UnB), e também professor Ademir Luiz, da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Cezar Santos – A prosa ocupa mais espaço nas discussões sobre literatura. Mas na poesia, depois de Fernando Pessoa, quem a senhora destacaria como grande nome em Portugal?

Tem vários grandes nomes, inclusive alguns que sempre foram considerados como possíveis ganhadores do Prêmio Nobel. Cito Eugénio de Andrade, Sofia de Melo Breyner, António Franco Alexandre, António Ramos Rosa, este um poeta imenso, extraordinário. Neste momento, temos a Ana Luisa Amaral. São apenas alguns. Eu diria mesmo que hoje a poesia portuguesa, felizmente, sofre de uma espécie de excesso de poetas bons, de tal forma que é muito difícil fazer uma escolha. Existe uma plêiade de poetas. Evidente que a sombra de Pessoa paira sobre eles e muitos querem se desvencilhar dessa sombra e têm dificuldade. Mas a poesia continua a ser, em meu ponto de vista, o ramo da literatura mais importante de Portugal. É verdade que hoje os nomes que são falados no estrangeiro e traduzidos são os autores de ficção. Mas sempre pensei que o nosso Nobel, visto que são tão poucos, teria ficado bem num poeta português, de tal forma a tradição forte, intensa e a atualidade de grandes poetas portugueses.

Cesar Santos – O intercâmbio literário entre Portugal e Brasil melhorou, mas parece ainda ser deficiente, considerando que é a mesma língua. Como escritora que é e professora que foi, portanto diretamente envolvida na questão do livro, a sra, percebe essa deficiência de intercâmbio? Lemos poucos portugueses? Lá se lê poucо os brasileiros?

Não tem havido até agora uma aproximação eficaz, do ponto de vista institucional, entre portugueses e brasileiros. Nos anos 80 houve alguns movimentos espontâneos. Lembro-me de que um deles foi o criado pela jornalista portuguesa Cremilda Medina (radicada no Brazil, professora da USP), que por iniciativa própria conseguiu que um grupo de escritores portugueses viesse ao Brasil. Foi daí o meu batizado no Brasil. Vieram também pela primeira vez o Lobo Antunes, o José Saramago, foram uns 15 escritores que vieram, num momento muito importante. Pouco depois escritores brasileiros foram a Portugal. Foi um momento de aproximação muito intenso. Estava envolvida uma figura muito importante, o crítico português Alçada Baptista, e se pensou mesmo que Brasil e Portugal iriam criar um intercâmbio muito importante, inclusive com uma espécie de pacotes obrigatórios de livros que transpusessem o Atlântico para cá e para lá. Não aconteceu de fato. Houve impulsos privados que não tiveram grande sequência. E deixou se pura e simplesmente ao mercado, e o mercado não tem funcionado bem nesse domínio. Acho que, sobretudo depois da criação da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, organiza assinada entre países lusófonos, em 1996, que instiga a aliança e a amizade entre os signatários), tem havido uma aproximação do ponto de vista literário. Há editores brasileiros que se interessam por escritores portugueses e editores portuqueses que se interessam por escritores brasileiros.

Cezar Santos – Sua vinda a Goiânia neste evento que a UFG promove, sob coordenação do professor Rogério Santana, significa algo nessa maior integração, não?

Sem dúvida, e a grande relação que se tem estabelecido é do ponto de vista academico. Acho que a televisão nos da a cultura brasileira. E nós chegamos ao Brasil através da academia. É a universidade que da a conhecer alguma coisa da cultura e, sobretudo, da literatura portuguesa. Os portugueses devem imenso aos professores brasileiros que se interessam e nos projеtam, que estudam a nossa literatura, que aproximam na literatura comparada os escritores portugueses aos escritores brasileiros. Nós, em Portugal, temos um corpus critico essencialmente feito no Brasil. Isso de fato tem de ser ressaltado.

Edvaldo Bergamo – Que Portugal o leitor brasileiro pode descobrir hoje na literatura portuguesa contemporânea?

Um Portugal muito europeu. Não é mais o Portugal arcaico que está em causa, mas o Portugal historico que vive ao lado da modernidade. Não há mais lugar para aquele ideia de quando publicaram aqui o meu livro “O Dia dos Prodígios”, em que puseram na capa um português que já não existia, em cima de um burro, muito famélico, com um grande bigode, chapéu enterrado na cabeça. Rimo-nos muito então e dissemos veja só como o designer brasileiro imagina um português. É um português de 50 anos antes, um estereótipo. Hoje já não será mais induzido nesse erro. O português é um europeu como outro, mas a braços com sua tradição, com sua história. Portugal tem uma escrita de um país europeu confrontado com as questões, com os sonhos e as realidades da Europa, que vive, e nós também vivemos, o confronto com a questão da relação intramuros com aqueles que, antigamente, visitávamos e que hoje temos de aceitar como pessoas que precisam da nossa ajuda para serem felizes. Esse diálogo não es- tá fácil com o restante da Europa, que vive um problema dramático na sua identidade profunda, por- que existe uma Europa que diz que nós somos um território para todos, incluindo os diferentes, que podem ser e continuar a ser diferentes. E há uma outra Europa que diz que ela não continuará a ser dessa maneira, porque considera que quem vem não vem para ser nosso parceiro, mas para ser nosso dominador. Esse é grande debate hoje na Europa, no meu entender muito mais profundo e difícil do que o debate econômico que está na ordem do dia. O verdadeiro problema não é econômico, é antropológico.

Como nós somos um continente de passagem, de charneira entre dois mundos, quer pela história quer geograficamente, temos de resolver isso em conjunto e não expulsando os ciganos como acabam de fazer os presidentes Nicolas Sarkozi (França) e Silvio Berlusconi (Itália). A Europa tem de ter outra visão, outra forma de resolver esse problema. É o grande conflito e o grande desafio de que a literatura trata. A literatura que vale a pena antevê os problemas, porque, por estar na base da sociedade, é a ouvidora dos que não têm como se expressar. Ela vai se apercebendo do que será a grande expressão política em alguns anos em todas as suas vertentes.

Ademir Luiz – Apregoa-se que o português é a língua da solidão. A sra. que acaba de ser premiada na Alemanha, diria que a literatura é a melhor forma de divulgar o idioma?

É uma das formas de divulgar o idioma, não posso dizer que seja a melhor. A língua enquanto ponto de contato, a língua de comunicação, é primordial, é o primeiro patamar de divulgação. Depois vem a língua de cultura, em que a literatura assume um papel muito significante, porque é por meio dela que se passa o coração profundo dos países. De forma que sem a língua literária, não há entendimento entre os países. Há contatos de natureza comercial, mas se os países querem se entender de verdade, é indispensável a língua literária. É uma ilusão tremenda imaginar que a língua se difunda apenas como língua de comunicação, de contato. Imaginar isso é um erro político e tático. Para consolidar uma língua é preciso a língua literária, que é onde as virtualidades mais profundas se manifestam.

Cezar Santos – A crítica estabeleceu certo confronto entre José Saramago e Lobo Antunes. O próprio Antunes alimentou um pouco isso, ao fazer críticas ácidas a Saramago no Brasil. Nesse tipo de FlaxFlu, como nós chamamos aqui, a crítica não injustiçou outros grandes nomes da literatura portuguesa, como Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, Inês Pedrosa, a sra mesma, e outros?

Sim. Penso que é injusto, não falo do meu nome, mas sobretudo com Agustina Bessa-Luís, Jorge Cardoso Pires, Maria Velho da Costa e outros. Mas todas as culturas são preguiçosas, escolhem poucos nomes para entendê-los. É a forma que a comunicação social tem de polemizar em duas figuras distintas, numa contenda que é muito mais vasta, naturalmente. No meu caso, isso não me ofende em nada. Cada escritor tem seu ritmo e também o seu tempo para ser descoberto. Não são os escritores que interpretam as contendas do momento. Eles dão pistas para o futuro e melhor traduzem o testemunho de sua época. Digo isso sem querer diminuir a importância de Saramago e Lobo Antunes.

A literatura portuguesa vive um bom momento, de fato. E estão aparecendo escritores jovens. E da minha geração também, não tão falados, por exemplo, Mário de Carvalho e Mário Cláudio. Infelizmente os editores do Brasil seguem muito o cânone da mídia. Deveriam ouvir o cânone acadêmico.

Ademir Luiz- Alguns de seus livros como “O dia dos prodígios”, tratam da questão do Portugal rural que se moderniza. Essa modernização e a entrada de Portugal na Comunidade Europeia tem sido traumática para os portugueses?

Não penso que tem sido traumática, e sim tem sido uma libertação para os portugueses. Os portugueses foram capazes muito rapidamente de deixar de ser uma espécie de membro dolorido. É uma expressão do filósofo Eduardo Lourenço, que disse que nós, por muito tempo, por duas décadas, sentimos em relação ao antigo Império como uma espécie de membro-fantasma que nos doía, que decepava e continuava a sentir dor. O que nos impedia de certa forma de sentir alegria por participarmos da Europa. Acho que isso foi ultrapassado. As pessoas começaram a sentir que a Europa era nosso espaço natural, a partir de onde podem dar uma contribuição importante. Toda a nossa relação colonial passada, incluindo com o Brasil, com suas contradições específicas, nos ajuda a apresentar à Europa como um país de diálogo com o mundo europeu. E isso tem sido valorizado. Os portugueses sentem que isso vale a pena, além dos benefícios da organização europeia que nos ajuda, de alguma forma, a entrar na modernidade. Aprendemos com os europeus a estabelecer planos e tentar cumpri-los, o que é algo importante.

Cezar Santos – A mulher é protagonista na sua obra. No livro “O vale da Paixão” (“A manta do soldado”, no Brasil), sua personagem não tem nome. A sra. nega à sua heroína o principal fator de afirmação de identidade que é justamente seu nome. A sra não foi muito cruel com sua personagem? Explique essa opção.

Não fui cruel com ela, de tal forma que se notou isso. Foi uma opção que tomei. Significa que a tragédia da personagem assume uma forma tão poderosa que dispensa o nome. E ao mesmo tempo chama a ideia de que ela está sendo uma voz de ação e narradora, uma dupla voz. Penso que ela fica como uma personagem testemunha. No livro, é a passagem que ocupa maior tempo histórico, vai desde o início da ditadura até os tempos contemporâneos. Ela fica com uma voz que é uma espécie de lente de filmagem, que não precisa de nome para ser a repórter psicológica da ação dolorosa em face às transformações que o mundo tem dificuldade em aceitar como justo. Portanto, ela reclama de maneira mais forte. Ninguém fala o nome dos outros personagens, mas a gente comenta o fato dela não ter nome.

Cezar Santos – Ao colocar a mulher no centro do seu trabalho, a sra se assume como uma escritora feminista?

Não, eu me assumo como escritora mulher, feminina. As escritoras feministas são aquelas que no grupo tomam essa bandeira, o feminismo como luta. Não quero usurpar esse papel tão importante. Tivemos feministas importantíssimas. O livro escrito pelas três Marias (…).

Ademir Luiz- E sobre a voz narrativa, há diferença reconhecível entre literatura de homem e literatura de mulher?

Eu duvido. Mas compreendo ela que continue a haver em todas as boas universidades cátedras para os estudos da escrita feminina. Compreendo como um campo da observação literária. Mas minha experiência tem dito que uma mulher pode disfarçar-se, no nível da voz, como homem e o homem como mulher. A riqueza da que ficção é que nós podemos metamorfosear em outros entes e refazemos isso no nível da escrita. Eu, às vezes, sou enganada, vejo textos não assinados que julgo serem de mulheres e são de homens, e outros que julgo serem de homens e são de mulheres. Há uma capacidade de driblar os gêneros, driblar os sexos por intermédio da escrita.

Cezar Santos- A sra também escreveu livros para crianças. Fale um pouco dessa experiência. E mais fácil, é mais difícil ou é só diferente?

Para mim é mais difícil escrever para crianças. É preciso retornar a uma inocência que eu não tenho. O grande escritor para a infância em todos os tempos, Hans Christian Andersen, parece que mantém uma espécie de não conhecimento ingênuo, que é próprio da primeira infância, e que depois nunca se desmantela. Comigo esse conhecimento se desmantelou e tenho que fazer esforço para regressar a algumas imagens da infância. Fiz duas vezes porque afilhados me pediram uma história. Sentei numa cadeira baixinha ao lado deles e me deixei levar pela idade deles. Fazendo um esforço, imaginando, que podia voltar à linguagem deles. Isso foi muito difícil fazer, mas quando entrei foi fácil de escrever. Hoje me sinto um pouco mais treinada, digamos.

Ademir Luiz – Romance “A Costa dos Murmúrios” foi adaptado para o cinema. A sra considera a mídia cinematográfica uma formadora de mais leitores?

Certa mídia cinematográfica é, de fato fornecedora de leitores. Mas não está sendo de maneira geral, pelo contrário, sobretudo o cinema contaminado pelo mundo da televisão. O cinema de imagens rápidas, feito para evitar a leitura de páginas, é inimigo da literatura.

Cezar Santos – A sra gostou de filme que a diretora Margarida Cardoso fez a partir de livre “A Costa dos Murmúrios”?

Margarida Cardoso inscreve se geração de cineastas que, adaptando a literatura para cinema, o faz com um ritmo de respeito pelo ritmo literário. Portanto vai ao encontro do cinematog´rafico mais puro, que é deixar lá dentro o sonho humano. Não apenas o entretenimento humano, é o sonho, e ela faz isso admiravelmente.

Cezar Santos – José Saramago chegou a chorar de emoção quando viu pela primeira vez, ainda sem montagem final, o filme “Ensaio sobre a Cegueira”, do diretor brasileiro Fernando Meirelles. A sra gostou do filme?

Gostei imenso do filme. Estive numa sessão prévia, à qual assisti para escrever sobre o filme, e gostei muito. Fiquei muito surpresa com a aceitação que não foi, ao meu ver, a que ele merecia. Não vou dizer que o filme é melhor que livro, são dois objetos diferentes, mas acho que é perfeito. Fernando Meirelles foi estupendo, faz justiça ao Saramago.

Mas as pessoas estão treinadas a ver filmes para não pensar, a ver filmes que contam uma história e mais nada. O “Ensaio” requer bons amantes de cinema, cinéfilos, não é um filme para as massas. As pessoas saem com opressão no coração. O filme de Fernando Meirelles faz isso, assim como o de Margarida Cardoso.

São filmes que nos deixam uma opressão no coração e nós queremos fazer outro filme, continuar aquelas cenas, acaba-las de outra forma, criarmos nossa própria obra de arte. É isso que os grandes livros e filmes fazem

Ademir Luiz- A solidão, sobretudo a solidão da mulher, é um dos temas de sua obra. Nessa sociedade de comunicação rápida, a solidão ainda é um grande problema, seria o mal do século, digamos?

A solidão é uma nova solidão agravada.

Por tanta gente ter acesso a dizer a palavra eu, e fazer sua narrativa, pensa-se que essa solidão está quebrada. Mas não, porque as grandes metrópoles criam espaços que ensejam novas formas de solidão.

Cezar Santos – Quando the informei que Mario Vargas Llosa acaba de ser anunciado ganhador do Prêmio Nobel, a sra, vibrou, teve uma reação de total entusiasmo. Por que essa reação?

Sim, fiquei muito emocionada. Sempre falei de dois nomes que achava injustiçados pelo Nobel. Um era Vargas Llosa e o ouro é Milan Kandera. E isso por uma visão estranha, pelo fato de durante anos 60 e 70terem combatido visões marxistas.

Ademir Luiz – A sra, acaba de dar uma ótima palestra na Faculdade de Letras da UFG. Qual o papel da academia no estabelecimento dos cânones literários? É mais definidor que do que a imprensa para a opinião pública?

Penso que continua a ser a academia a definidora de cânones. Mas com o tempo a mídia faz seu cânone, mas é volátil. Com escritores bastantes superficiais, rápidos, que se impõe na mídia por uma série de conjunturas misturados com grandes escritores. Com o tempo, o cânone da literatura é o que fica.

Rogério Santana – Como a sra. vê o Brasil na projeção da literatura portuguesa e em especial na sua? Que peso tem a leitura no Brasil da sua obra?

Quando jovem eu li os autores Erico Verissimo, José Lins do Rego, com toda aquela parafernália mas li, e Jorge Amado. Conheci o Brasil antropológico com esses autores. Foi a partir deles que fiz minha docência literária. Li também Autran Dourado. Depois, li muito Clarice Lispector, Nélida Piñon e Lígia Fagundes Teles. São as minhas escritoras de formação, porque são um pouco mais velhas que eu e as li como grande novidade. Eu as li como comparsas, como minhas companheiras. Por isso sinto a literatura brasileira muito próxima, às vezes mais próxima que a literatura africana, que joga muito numa linguagem estilística muito localizada.

Cezar Santos – A sra. tem uma obra significativa, com romances, contos, teatro, traduzida em várias línguas. Essa obra lhe de independência financeira? Pode se dedicar apenas ao ofício de produzir ficção?

Deu-me, só que quando eu tinha possibilidade, de ficar com essa independência, tive o acréscimo de problemas e, portanto, não pude só escrever. Mas desde há uns 15 anos eu só escrevo. De certa forma, num país pequeno como Portugal, considero-me feliz. Não vivo só da escrita, mas a escrita me dá uma folga financeira que tem sido muito positivo para minha vida. O que tem me permitido, por exemplo, só publicar quando quero publicar, quando os livros estão terminados.

Cezar Santos – Do que trata seu próximo livro e quando a sra. pretende publicá-lo?

Tenho dificuldade de falar de um livro quando não o terminei. Sinto uma espécie de azar. Quando falo em voz alta, sinto que desaparece certa alegria que tenho com ele.

Cezar Santos – Alguém disse que falar antes de concluir faz o livro desandar.

Exatamente. Há um dito: os pássaros enjeitam o ninho se alguém mexe nos ovos. Prefiro que meus ovos fiquem quietinhos no ninho e esperar o que acontece. Talvez o publique em 2011.

Ademir Luiz – A morte do Saramago gerou debate sobre os verdadeiros méritos dele como escritor. Isso foi muito forte no Brasil. Também ocorreu em Portugal?

Não gerou debate porque esse debate já estava feito. Mas houve uma tomada de posição, quem dissesse que sua literatura não prestava e que seu Nobel fora por determinadas políticas dele. O verdadeiro debate foi em relação ao livro “A morte  de Caim”, que suscitou polêmica com a Igreja. Eu soube dessa polêmica aqui, e não só aqui, mas penso que é injusta. Digo que um dos grandes méritos do Saramago foi que ele escreveu sempre, como tema e forma, livros a que a população portuguesa não pôde ficar indiferente.

O mundo não ficou indiferente a Saramago. Quando ele emitia uma opinião, as pessoas tremiam. Ele foi muito amado e também muito odiado. Eu penso que foi mais que odiado. E a literatura dele que fica fará com que muitos que dizem, por pura prepotência, que não vale a pena lê-lo, um dia o leiam. A obra de Saramago fala por si. Foi um escritor que até o final de sua vida teve energia e genialidade para criar verdadeiras fábulas que desmontam ideias feitas. E fez isso com tal capacidade e jactância literária que mostram o escritor imenso que ele foi.

Cezar Santos –  Cite alguns nomes brasileiros, vivos e mortos, que a sra. destaca.

Teve momento em que os brasileiros dominaram completamente a literatura de expressão portuguesa, como no tempo de Jorge Amado. Em outra escala, Clarice Lispector, José Lins do Rego, Guimarães Rosa; mais para trás, Erico Veríssimo. Hoje o Brasil tem Lígia Fagundes Telles. Um escritor de quem se fala muito

pouco, Ignácio de Loyola Brandão. Tem o Rubem Fonseca. É injusto quando se esquece o Bernardo Carvalho. Raduan Nassar, um escritor de uma originalidade imensa. A Nélida Piñon. Entre os mais jovens, Luiz Rufatto.

Cezar Santos — Acompanha brasileiras da nova geração, como, por exemplo, Verônica Stigger, Beatriz Bracher, Elvira Vigna?

Meu Deus, não! Acompanho Patrícia Melo, Adriana Lisboa, de quem gosto imenso, é do meu time literário pela elaboração. E tem uma jovem autora de um livro chamado “Suíte Dama da Noite” [Manoela Sawitzki] que achei admirável, magnífica, na linha da Adriana Lisboa. O livro trata da solidão e a certa altura eu fiquei de rastos, pois fala da violência sobre o corpo, por que é uma mulher que se violenta sexualmente a si própria. Só senti alguma coisa assim quando li “Santuário”, de Faulkner. Me parece que a autora teve certa dificuldade porque é jornalista e é bonitinha, se ocorreu isso tenho pena.

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