Juan José Saer é um dos maiores escritores do século 20. “Glosa” é uma evidência

Roberson Guimarães

Especial para o Jornal Opção

Alguns já disseram que Juan José Saer (1937-2005) é um dos maiores escritores em língua espanhola do século XX. Discordo. É um dos maiores escritores do século XX, em qualquer idioma. Terminei a leitura de “Glosa” (7 Letras, 204 páginas, tradução de Lucas Lazzaretti), publicado no Brasil no final do ano passado. A leitura reafirma minha convicção sobre a enormidade desse argentino de Santa Fé.

“Glosa” (1985) é uma obra que tensiona as relações entre espaço, tempo e a dualidade entre o mundo físico e o imaterial, articulando essas questões por meio de uma estrutura narrativa complexa.

O romance se constrói como um labirinto de memórias e percepções, desafiando noções de realidade.

São três capítulos nomeados por quadras percorridas (As primeiras sete quadras, As sete quadras seguintes, etc.), totalizando 21 quadras. Essa estrutura espacializa o tempo narrativo, transformando a caminhada dos personagens (Ángel Leto e o Matemático) em um dispositivo para expandir 50 minutos cronológicos em 200 páginas literárias.

O ato de caminhar torna-se uma metáfora do fluxo temporal, onde passado (um aniversário não vivido), presente (a caminhada) e futuro (os personagens avançam no tempo) coexistem.

O Matemático compara o tempo a uma rua que “poderia ser percorrida em todos os sentidos”, sugerindo uma crítica à linearidade cronológica. Saer utiliza períodos longos e interrupções frequentes, espelhando a fragmentação da experiência humana. As digressões sobre memórias falsificáveis e relatos duvidosos, dissolvem fronteiras entre o vivido e o imaginado, questionando a materialidade do passado.

Juan José Saer: um dos mais importantes escritores da Argentina e do mundo | Foto: Reprodução

Espaço e tempo são personagens, não cenários

Em uma das passagens Saer constrói um debate filosófico sobre a natureza do instinto animal e suas implicações metafísicas por meio de um episódio aparentemente trivial: o suposto tropeço de um cavalo, citado por um personagem como motivo para seu atraso a um evento; a discussão sobre o cavalo que tropeçou desestabiliza a visão cartesiana de instinto como mecanismo infalível. Os personagens questionam: Pode um animal, guiado por instinto, cometer erros? O cavalo tropeçou por acaso ou por intervenção humana? Creio que Saer utiliza esse episteme narrativo para propor que o acaso é a única lei universal.

Outro ponto que destaco: Saer aborda o período da ditadura militar argentina (1976-1983) de uma forma indireta e fragmentária, integrando os efeitos do terrorismo de Estado à subjetividade dos personagens e à estrutura narrativa. A obra não adota uma perspectiva documental ou alegórica, mas ainda assim passeia pela guerrilha, pelo desaparecimento de pessoas e pelo exílio. Mais que pano de fundo, a ditadura é uma fenda narrativa. Saer a aborda através de uma poética da ausência – de explicações totalizantes, de linearidade temporal, de certezas éticas. É genial.

“Glosa” de certo modo sintetiza a metafísica saeriana onde espaço e tempo são personagens, não cenários. O texto constrói uma “terceira margem” literária, dissolvendo certezas em favor de um realismo especulativo que questiona a todo tempo os limites entre percepção e linguagem.

Roberson Guimarães, crítico literário e médico, é colaborador do Jornal Opção.

O post Juan José Saer é um dos maiores escritores do século 20. “Glosa” é uma evidência apareceu primeiro em Jornal Opção.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.