“De como ser menino é bom, mas ser menino passarinho é melhor ainda”

Soninha Santos

Especial para o Jornal Opção

Encontrei um livro na estante que, só de olhar para a capa, delicadamente pensada por Suryara Bernardi, me proporcionou uma sensação muito boa. Parei o que fazia e voltei o meu olhar para a obra, de respeito, muito respeito mesmo. A ilustração da capa, que me fez de imediato estacionar as ideias, remete a um toque de tristeza, desamparo e solidão.

O livro, capaz de despertar tamanhos sentimentos, é “Menino Passarinho” (RHJ, 96 páginas), de Sueli Maria de Regino. Trata-se de uma dessas obras que fazem a mente girar, pensar e repensar e, depois, pensar novamente.

Pensar sobre o quê?

Principalmente sobre a vida e como ela é vivida. Sobre como é viver neste mundo, vasto, diversificado mas sobretudo desigual. Saber que as diferenças precisam ser vistas (revistas), analisadas, compreendidas e refletidas. Saber que grande parte da sociedade é desprovida de tudo, até mesmo do básico necessário para viver com dignidade. Como o mundo pode ser tão desigual, hostil, dantesco para uma parte considerável das pessoas que nele habitam!

Nesse contexto de dificuldades e de provações, tudo se torna mais difícil ainda quando o personagem é uma criança, sem chão, sem casa, sem família, sem tudo.

O livro em questão, de título poético, aborda a trajetória de um menino assim, com essas características de um ser que existe e precisa sobreviver sem nada. Seu nome é Curió, e vive em completa situação de abandono e solidão. Apesar do nome de passarinho, menino que é, merecendo ser livre, vive engaiolado nas teias invisíveis do abandono. Não conhece empatia, afeto, ternura.

Suryara Bernardi: ilustradora de primeira linha | Foto: Reprodução

Contudo, essa situação de desamparo diminui quando conhece uma professora que dava aulas em um assentamento e se vê acolhido por ela. Mesmo se tratando de uma temática dura, de crítica e social, Sueli de Regino consegue abordar essas questões de maneira simples, com um texto poderoso, uma linguagem clara e poética capaz de nos levar ao encontro desse “passarinho” Curió, desejoso de voar para além daquela sua existência solitária e caótica. A professora, solidária e amorosa, representa uma dessas pessoas que perdem o sono ao pensar no abandono e na solidão de tantas crianças sofrendo, passando fome, levando uma vida que, segundo a professora que o acolhe, “nem cachorro merecia”.

É esse o mundo que a autora nos apresenta neste livro. E a visão das dificuldades e dos desafios deste mundo é tecida pela percepção dessa criança, que se encontrava abaixo da linha da pobreza e morava perto do assentamento onde a professora lecionava é que ele, de longe observava, sem coragem de se aproximar. De fato, Curió nem era daquele lugar. Não pertencia a lugar algum. Sem casa para morar, dormia sobre um pneu em uma borracharia.

O limite entre a professora e o menino vai se rompendo aos poucos, lenta e carinhosamente, para só, a partir daí, Curió começar a enxergar a vida pela primeira vez com outros olhos.

Vale a pena chegar às páginas finais do livro e descobrir de que maneira o afeto, o carinho, a segurança e, principalmente, a ternura podem mudar toda uma vida, carregada, na verdade sobrecarregada, de incerteza, sofrimento e dor.

Fechei o livro, nessa minha nova leitura, para constatar a beleza do tratamento de um tema assim tão duro, com leveza, sem qualquer tom panfletário. Com arte.

Soninha Santos, crítica de literatura infantojuvenil, é colaborada do Jornal Opção.

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