Quem forjou você? 

por Giselle Vanessa Carvalho*

Muitas mulheres, públicas e anônimas, forjaram quem eu sou. Forjaram minha liberdade, meu direito à voz, minha possibilidade de escolha. Lutaram para que eu pudesse estudar, votar, dirigir, trabalhar, decidir se quero casar ou não, se quero ter filhos ou não. Lutaram para que eu pudesse existir sem pedir permissão. Tudo o que temos, enquanto mulheres, foi à custa de luta, suor, sangue e enfrentamento. É por ter clara consciência sobre isso que me soa tão perturbador o crescente movimento antifeminista. 

Entendo e respeito as feministas não militantes. No entanto, foge a qualquer compreensão, a qualquer lampejo de lucidez, mulheres que se reconhecem e se declaram não feministas ou, o pior, antifeministas. É paradoxal! É um vilipêndio à história e à sua própria liberdade.

Entenderia e respeitaria não feministas e antifeministas se essas mulheres só andassem pelas ruas com marido, pai ou tutor. Se elas só se casassem virgens (1960). Se ficassem em casa, submissas aos maridos escolhidos pelos pais, sem acesso a anticoncepcionais (1988), laqueadura (2023), estudo (1879), voto (1932), trabalho (1962), CPF (1964), conta em banco (1962), cartão de crédito (1974), carteira de motorista (1966), calças (1970), biquíni (1971), divórcio (1977). Se essas mulheres não reagissem à violência doméstica (1916, 2006) e ao assédio sexual no trabalho (2009). Se elas não abrissem empresas (1962), se não administrassem os próprios bens (1962). 

Se continuassem sem autonomia financeira, sem perspectiva, sem poder opinar (1900), inclusive na internet. Sem poder dizer “eu não sou feminista”, pois sequer a possibilidade de questionar o próprio papel na sociedade lhes seria concedida. Porque foi isso que o mundo reservou às mulheres por séculos – e ainda reserva em muitos lugares.

Então, se vocês não são propriedade de homens, têm os próprios nomes em documentos, herdam bens, são mais do que apenas esposas e mães, se têm direito à escolha – o cerne do feminismo -, vocês não são antifeministas, vocês são hipócritas! 

Se vocês reduzem a questão a uma tola guerra sobre estilos de vida, a depilar ou não as axilas, usar batom ou andar de moletom, a salto ou tênis, a feminilidade ou não, a ser dona de casa ou CEO, vocês não são não feministas, são cínicas, se valendo de malabarismo retórico para deturpar toda a importância que essa luta tem. 

Se vocês acham que feminismo é sobre pilosidade, não sobre poder, vocês são ignorantes, repetindo os mesmos discursos que, no passado, tentaram calar mulheres que desafiaram as regras impostas a elas. E fazem isso sem perceber que estão apenas perpetuando a lógica de uma sociedade que nunca quis que fôssemos donas de nós mesmas – algo que os homens sempre tiveram garantido.

Feminismo não é uma opção, é uma necessidade. Uma necessidade enquanto mulheres forem esmagadas por um sistema que, desde sempre, decidiu que nós valemos menos. Enquanto vivermos em um país onde uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas. Enquanto houver um caso de estupro a cada seis minutos. Enquanto temermos sair às ruas sozinhas. Enquanto os filhos forem responsabilidade das mães. Enquanto persistir a desigualdade salarial entre homens e mulheres. Enquanto houver casamento infantil.  Enquanto leis forem escritas para nos comedir, não para nos proteger. Enquanto precisarmos justificar nossa presença em espaços de poder, nossa competência profissional, nossa autonomia sobre nossos corpos, nossas escolhas. Enquanto a sociedade estiver pronta para nos julgar, nos controlar e nos silenciar. 

Basta um olhar mais aguçado sobre nossa sociedade para entender que o feminismo não é questão de opinião, mas de sobrevivência. Viver sem direitos, sem proteção, sem liberdade. É isso que significa um mundo sem feminismo. Basta olhar em volta para entender que sem ele nossas vidas seriam completamente diferentes – e infinitamente piores. 

Se você vive uma vida que te permite rejeitar essa luta, é porque essa luta venceu. Mas essa recusa não apaga a dívida que temos com todas aquelas que vieram antes de nós e que ainda lutam por nós. E que, sim, forjaram quem somos.

Neste 8 de março, eu celebro as que entendem a irrefutável importância do feminismo, cravada na história e no transcurso do nosso dia a dia. As que sabem que, se podemos hoje falar, estudar, votar, trabalhar, decidir, foi porque outras mulheres, muitas das quais nem conhecemos, enfrentaram o pior da sociedade para abrir caminho. A elas, meu respeito.

Às operárias que entraram em greve por condições dignas, sufragistas presas por quererem um título de eleitor, esposas que desafiaram pais e maridos pelo direito de estudar, mulheres que enfrentaram o peso do julgamento social para se divorciar, mães solo (às vezes, mesmo quando casadas) que formam a real, a verdadeira tradicional família brasileira, às que denunciam abusos quando a sociedade manda que se calem, às que não aceitam menos do que merecem, meu muito obrigada! 

À Pagu, presa e torturada por lutar por direitos; à Chiquinha Gonzaga, que ousou abrir caminhos para que as mulheres vivam da própria arte; à Simone de Beauvoir, reiteradamente atacada por questionar a construção social do que é ser mulher; à Rita Lee e Fernanda Young, consideradas subversivas por simplesmente serem livres, às tantas outras que foram insultadas e desacreditadas por desafiar padrões, meu muito obrigada!

Essas e outras mulheres forjaram quem eu sou. Quem forjou você? 

Giselle Carvalho | Foto: Guilherme Gardinni

*Giselle Vanessa Carvalho é jornalista

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